O ônus probatório da defesa em investigação que contém interceptação telefônica
A interceptação telefônica só será admitida quando esgotados outros meios disponíveis para a continuidade das investigações.
terça-feira, 24 de outubro de 2023
Atualizado às 08:23
A interceptação telefônica é meio probatório secundário ou acessório dentro de uma investigação criminal, pois, de acordo com o artigo 2º, inciso II, da lei 9.296/96, essa modalidade de colheita de provas só será admitida quando esgotados outros meios disponíveis para a continuidade das investigações.
Art. 2° Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses:
II - a prova puder ser feita por outros meios disponíveis;
Como o artigo 5º, inciso XII, da Constituição Federal dispõe que é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, pode-se afirmar que a interceptação telefônica é o meio mais gravoso ou ofensivo de colheita de provas dentro da investigação criminal, uma vez que, em regra, o Estado estará violando uma garantia constitucional para intervir na vida privada da pessoa investigada e de terceiros que não possuem qualquer relação com o apuratório.
Portanto, será inconstitucional quando o Estado utiliza de interceptação telefônica para produzir uma prova que poderia ser feita por meios menos gravosos. Isto é, para que a medida invasiva seja constitucional, deve estar demonstrado à progressão na colheita de provas. Exemplo: constatando-se que a investigação poderia obter a prova necessária à formação de tese acusatória por meio de quebra de sigilo bancário, mas se utilizou da interceptação telefônica para angariar a mesma prova, de acordo com o artigo 2º, inciso II, da lei 9.296/96, como a prova poderia ser produzida por outros meios disponíveis, será nula a prova colhida em desacordo com a referida legislação.
É inadmissível a manutenção da prova resultante de interceptação oriunda de injustificada quebra do sigilo telefônico, por falta de qualificação do agente e indicação de indícios razoáveis da sua autoria ou participação em infração penal, da inadequada fundamentação das autorizações judiciais, conforme exige o parágrafo único do art. 2º da lei 9.296/96, por violar os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana, além do excessivo período (660) dias, aproximadamente, da quebra do sigilo. (HC n. 88.825/GO, relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em 15/10/09, DJe de 30/11/09.)
No julgamento do HC 191.378/DF, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 15/9/11, DJe de 5/12/11, onde se analisou tese de ilegalidade na decretação da quebra dos sigilos bancário e fiscal, fundamentado exclusivamente em relatório de inteligência financeira produzido pelo COAF, foi concedida ordem de habeas corpus, para declarar nulas as quebras de sigilo bancário, fiscal e de dados telefônicos, pois autorizadas em desacordo com as normas de regência:
Não se admite a quebra do sigilo bancário, fiscal e de dados telefônicos (medida excepcional) como regra, ou seja, como a origem propriamente dita das investigações. Não precedeu a investigação policial de nenhuma outra diligência, ou seja, não se esgotou nenhum outro meio possível de prova, partiu-se, exclusivamente, do Relatório de Inteligência Financeira encaminhado pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF para requerer o afastamento dos sigilos. Não foi delineado pela autoridade policial nenhum motivo sequer, apto, portanto, a demonstrar a impossibilidade de colheita de provas por outro meio que não a quebra de sigilo fiscal. Não demonstrada a impossibilidade de colheita das provas por outros meios menos lesivos, converteu-se, ilegitimamente, tal prova em instrumento de busca generalizada.
Em outro caso semelhante, a egrégia Sexta Turma do STJ concedeu ordem de habeas corpus, para anular o recebimento da denúncia apresentada com violação ao artigo 93, IX, da Constituição Federal. Confira trechos do voto exarado pelo eminente Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura:
Aduza-se, por outro lado, que a escolha desde logo da quebra do sigilo de dados, ao invés da interceptação telefônica, não muda o contexto do vício de origem, porque meio de justificação da medida era absolutamente ilegal em virtude de não ter vindo alicerçado
Por tudo o que restou delineado, não vejo outra saída que não considerar nulo o procedimento de invasão de dados telefônicos autorizado pela decisão de fls. 258/259 dos autos deste writ, devendo ser igualmente anulados os demais procedimentos dali derivados diretamente, nos termos do art. 157 e parágrafos do CPP, cabendo ao Juiz do caso a análise de tal extensão, já que nesta sede de via estreita não se afigura possível averiguá-la (HC n. 137.349/SP, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 5/4/11, DJe de 30/5/11.)
Na análise do RMS 25.174/RJ, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 19/2/08, DJe de 14/4/08, onde se analisou a proporcionalidade da decretação do afastamento dos sigilos bancário e fiscal do jurisdicionado, por considerar desproporcional a medida interventiva, foi dado provimento ao recurso que vindicava o desentranhamento da prova colhida sem a observância dos requisitos legais.
A proteção da privacidade do cidadão, na qual se inserem os sigilos bancário e fiscal, envolve uma garantia constitucional relativa, somente afastada pelo critério da proporcionalidade e da efetiva necessidade da medida de constrição.
No caso, não foram eficientemente comprovados os motivos pelos quais os recorrentes poderiam sofrer a invasão ao seu direito de privacidade, sendo de bom senso nesta situação resguardar a regra geral e protetora do sistema de garantias fundamentais.
Esse entendimento foi referendado pelo STF, onde se analisou caso que contestou decisão de Comissão Parlamentar de Inquérito, que deferiu quebra de sigilos bancários, fiscais e telefônicos de forma desproporcional, ou seja, alicerçada em formulações genérica, sem a devida indicação da causa provável:
A quebra do sigilo inerente aos registros bancários, fiscais e telefônicos, por traduzir medida de caráter excepcional, revela-se incompatível com o texto da Constituição, quando fundada em deliberações emanadas de CPI, cujo suporte decisório apóia-se em formulações genéricas, muitas vezes padronizadas, que não veiculam a necessária e específica indicação da causa provável, que constitui pressuposto de legitimação essencial à válida ruptura, por parte do Estado, da esfera de intimidade a todos garantida pela Carta Política. (MS 23964, Relator(a): CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 30/8/01, DJ 21-06-2002 PP-00098 EMENT VOL-02074-02 PP-00366)
Portanto, considerando que o artigo 1º da lei 9.296/96 estabelece que a interceptação telefônica dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça, a autorização judicial para a utilização da medida invasiva deve ser fundamentada em elementos concretos que comprovam a indispensabilidade da medida.
Sendo assim, diante das inúmeras teses apresentadas ao STJ, que postulavam pela declaração de ilegalidade de decisão que autorizou a interceptação telefônica, adotou-se o entendimento de que quando a argüição tem como base a ofensa ao artigo 2º, inciso II, da lei 9.296/96, é obrigação da defesa provar, fundamentadamente, que existiam meios menos invasivos de colheita de provas para a elucidação dos fatos:
Anota-se, ainda, que é a defesa quem deve demonstrar a possibilidade de produção probatória pela acusação por outros meios, sem a necessidade da quebra do sigilo telefônico. (AgRg no RHC n. 169.330/RJ, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 20/3/23, DJe de 24/3/23.)
Sendo assim, o STJ só irá conhecer do pedido de violação ao artigo 2º, inciso II, da lei 9.296/96, quando a defesa comprovar documentalmente que os órgãos de persecução criminal poderiam utilizar de estratégia menos invasiva.
Isso quer dizer, por exemplo, se em investigação por crime de lavagem de dinheiro oriunda de crime contra a ordem tributária for deferida interceptação telefônica antes da quebra de sigilos bancários e fiscais, é obrigação da defesa demonstrar ao julgador que, por se tratar de crimes financeiros, a quebra de sigilos bancários e fiscais era a medida proporcional a ser adotada no início da investigação.
Em outro exemplo, onde a investigação tem como meta a colheita de provas sobre eventual malversação praticadas por executivos de uma grande corporação que possui ações comercializadas na bolsa de valores, como a comunicação entre os colaboradores da corporação é, em regra, feita por e-mail, se a interceptação telefônica for deferida antes da quebra dos sigilos telemáticos, de acordo com o artigo 2º, inciso II, da lei 9.296/96, não houve proporcionalidade na medida. Isto é, a defesa deverá comprovar ao juiz que nesse tipo de investigação corporativa, a quebra dos sigilos telemáticos é mais eficaz do que a interceptação telefônica.
Portanto, caberá ao operador do direito fundamentar a sua pretensão de declaração de nulidade da prova advinda da interceptação telefônica com uma contraprova suficiente para demonstrar a desproporcionalidade da medida.
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Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
lei 9.296, de 24 de julho de 1996.
Decreto-Lei nº. 2.848 de 7 de dezembro de 1940.
HC n. 88.825/GO, relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em 15/10/09, DJe de 30/11/09.
HC n. 191.378/DF, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 15/9/11, DJe de 5/12/11.
HC n. 137.349/SP, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 5/4/11, DJe de 30/5/11.
RMS n. 25.174/RJ, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 19/2/08, DJe de 14/4/08.
MS 23964, Relator(a): CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 30/08/01, DJ 21-06-2002 PP-00098 EMENT VOL-02074-02 PP-00366.
AgRg no RHC n. 169.330/RJ, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 20/3/23, DJe de 24/3/23.
RHC n. 74.191/AC, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 24/10/17, DJe de 30/10/17.
REsp n. 152.455/SP, relator Ministro Hélio Mosimann, Segunda Turma, julgado em 20/11/97, DJ de 15/12/97, p. 66371.
RHC n. 39.927/SP, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 16/12/14, DJe de 3/2/15.
EDcl no AgRg no REsp n. 1.731.559/PE, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 8/11/22, DJe de 16/11/22.
AgRg no AREsp n. 1.789.984/PR, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 18/5/21, DJe de 24/5/21.
AgRg no AREsp n. 2.037.992/SC, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 6/9/22, DJe de 13/9/22.
AgRg no HC n. 533.348/CE, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 1/10/19, DJe de 10/10/19.
AgRg no HC n. 732.049/SC, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 14/6/22, DJe de 21/6/22.
AgRg no RHC n. 96.964/RN, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 17/12/19, DJe de 3/2/20.
AgRg no AREsp n. 1.633.445/MG, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 26/5/20, DJe de 3/6/20.
AgRg nos EAREsp n. 1.789.984/PR, relatora Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 8/9/21, DJe de 17/9/21.
Ricardo Henrique Araujo Pinheiro
Advogado especialista em Direito Penal. Sócio no Araújo Pinheiro Advocacia.