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A operação "Alta Pressão" e as consequências jurídicas da outorga de poderes amplos e genéricos pelo administrador a terceiros

Segundo o artigo 1.018 do Código Civil "ao administrador é vedado fazer-se substituir no exercício de suas funções", razão pela qual são imprestáveis os instrumentos de mandato que outorgam poderes amplos e genéricos para prática de gestão, inquinando de nulidade, insuscetível de convalidação, os negócios jurídicos celebrados em expressa afronta legal.

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Atualizado às 14:04

A operação "Alta Pressão"

O site O Antagônico1 publicou no dia 19 de setembro de 2023 matéria intitulada "A PC do Pará. O 'Rominho'. Os Carros. Os Agiotas. A Prisão em Santa Catarina", a reportagem noticia o cumprimento do Mandado de Prisão Preventiva deferido nos autos do processo criminal nº 0816059-45.2023.8.14.0006, pelo juízo da 2ª Vara Criminal de Ananindeua, em desfavor do Sr. Romulo Robson Cortez de Morais, que foi capturado e preso no Estado de Santa Catarina na mesma data da matéria.

Rômulo Morais é investigado pela Delegacia Especializada em Investigação de Estelionato e outras fraudes - DEOF, órgão integrante da Polícia Civil do Estado do Pará, pelo suposto cometimento, de forma continuada (art. 71 do CP), do crime de estelionato (art. 171 do CP), contra inúmeras vítimas no Estado do Pará, em prejuízo, que segundo a reportagem de "O Antagônico", ultrapassa as cifras de "R$ 35 milhões de reais".

A Operação "Alta Pressão", nome dado pela DEOF:

É um conjunto de atos, que elucidam várias manifestações de comportamentos criminosos, até então, do indiciado de RÔMULO ROBSON CORTEZ DE MORAIS, tomando conhecimento que até então foram apresentados 33 (TRINTA E TRÊS) BOLETINS DE OCORRÊNCIAS POLICIAIS na DEOF, e mais 21 (vinte e um) em outras Delegacias, com pelo menos, 54 (cinquenta e quatro vítimas) vítimas, e pelo menos, 60 (sessenta) veículos automotores envolvidos em ilícitos. 

No que pese os aspectos criminais do caso narrado, o que será objeto de análise deste artigo, será o aspecto empresarial revelado  no bojo da operação "Alta Pressão", onde se noticia que embora  conste no banco de dados da Receita Federal do Brasil que a sociedade empresária Maltta Multimarcas LTDA possua como única sócia e administradora a Sra. Rebeca Evelyn Cortez de Morais Cavalcante, a administração e gestão da mesma eram realizadas por  Rômulo Morais.

Inicialmente cumpre informar que tais fatos são confirmados tanto por Rebeca Evelyn como por Rômulo Morais, em depoimentos prestado à Polícia Civil do Estado do Pará no bojo do Inquérito Policial n° 00610/2023.100107-3, onde foi  questionado à Rebeca Evelyn se seria Sócia e Administradora da sociedade empresária Maltta Multimarcas LTDA, esta respondeu que "sim. Mas não tinha nenhum tipo de gerência, ou atividade na empresa quanto a sua atividade fim".

Por sua vez, Rômulo Morais declarou à autoridade policial que: "eu sou procurador, mas resolvo tudo lá, minha sobrinha. proprietária da empresa, mas nunca foi lá, só me passou a procuração. a gestão da empresa fica sob minha responsabilidade".

Desta forma, superado este ponto passa-se à análise do foco central deste artigo. 

Pode o administrador da sociedade limitada se fazer substituir outorgando poderes amplos e irrestritos de gestão à terceiros? 

No bojo do Inquérito Policial foram apresentadas diversas procurações outorgadas por Rebeca Evelyn à Rômulo Morais, as quais outorgava amplos, genérios e irrestritos poderes para que Rômulo Morais praticasse atos de gestão e administração da sociedade empresária Maltta Multimarcas LTDA, e é aí que nasce o imbróglio.

O artigo 1.060 do Código Civil (CC) determina que: "a sociedade limitada é administrada por uma ou mais pessoas designadas no contrato social ou em ato separado", que lido em conjunto com o artigo 1.018 do mesmo código, "ao administrador é vedado fazer-se substituir no exercício de suas funções, sendo-lhe facultado, nos limites de seus poderes, constituir mandatários da sociedade, especificados no instrumento os atos e operações que poderão praticar", conduz-nos à inafastável conclusão de fraude no documento que outorga amplos, genéricos e irrestritos poderes para que terceiros pratiquem atos de gestão de sociedades empresárias.

O parágrafo único do artigo 49-A do CC, assegura que "a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos", contudo, no artigo subsequente (art. 50 do CC), o mesmo código informa que em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, pode o juiz, "desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso."

Segundo o §1º do artigo 50 do CC, "desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza".

Desta forma podemos concluir por um possível desvio de finalidade da sociedade empresária Maltta Multimarcas LTDA, na medida que restou confesso tanto por sua sócia e administradora, quanto por seu procurador, que quem praticava os atos de gestão da sociedade empresária era terceiro não integrante do quadro societário, em expressa afronta aos artigos 1.018 e 1.060 do Código Civil.

Munido desta Procuração Pública, Rômulo Morais assinou diversos documentos em nome da sociedade empresária, inclusive Certificados de Registro de Veículo - CRV, para transferência de propriedade de veículos juntos aos órgãos de trânsito Estadual, tendo sua assinatura reconhecida e referendada por Cartórios locais.

Superado este ponto, resta responder a indagação se os documentos assinados por Rômulo Morais munido desta Procuração Pública com poderes ilimitados seriam válidos ou inquinados de nulidade? 

O que diz a Doutrina e a Jurisprudência sobre o assunto 

O Superior Tribunal de Justiça - STJ no julgamento do Recurso Especial 1.747.956 - SP (2018/0144705-0), em acordão da relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão, em julgamento ocorrido em 15 de junho de 2021, entendeu pela a proibição da criação de "administradores-delegados" ou "administradores de segundo grau", declarando a imprestabilidade de Procuração com poderes amplos e genéricos para realização de atos de gestão, por expressa violação ao artigo 1.018 do Código Civil brasileiro, in verbis:

A referida norma preconiza a intransmissibilidade do cargo de administrador, órgão da sociedade que exterioriza as suas ações no mundo real - presentando-a (representação orgânica ou institucional) - e que detém os poderes de gestão, ou seja, todos os poderes necessários à consecução do objeto constante do contrato social. 

Nesse sentido é o escólio de Marcelo Fortes Barbosa Filho2 (2015, p. 969)

A lei faculta-lhes a constituição de mandatários, incumbidos de atuar em nome e por conta da sociedade (pessoa jurídica), que os auxiliem a desincumbir todos os seus deveres de maneira mais eficiente possível. Os mandatários, evidentemente, não poderão ostentar poderes superiores aos dos próprios administradores e exige-se, também, que sua atuação seja fundada sempre em poderes especiais de representação. Resta imprescindível a elaboração de instrumento particular ou público de procuração, em que deverá permanecer especificado, com os pormenores suficientes, o âmbito dos atos e operações em que a representação se operará validamente. 

Cotejando-se os termos da Procuração Pública outorgada a Rômulo Morais, lavrada pelo Cartório do 4º Oficio de Notas da Comarca de Belém/PA,  ao Livro 278-P-SS, folha 202, ato 128, verifica-se que Rebeca Evellyn conferiu-lhe poderes "para em conjunto ou separadamente, independente da ordem de nomeação representarem, quaisquer assunto referente a empresa outorgante", não havendo qualquer individualização dos atos que deveriam ser praticados, limitando-se à transferir poderes genéricos para a sua administração - o que é descabido por força do artigo 1.018 do Código Civil, o que, nos termos do entendimento do STJ, torna o documento imprestável para prática de atos.

Portanto, considerando o que dispõe o artigo 166 do Código Civil, segundo o qual "é nulo o negócio jurídico quando: I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz; e VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa", cumulado com artigo 169 do mesmo código, "O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo", somos levados à concluir pela nulidade, insuscetível de convalidação, dos documentos de transferência de veículo firmados por Romulo Morais, quando na Procuração Pública não contivesse menção específica do veículo a que este estaria incumbido de transferir em nome da sociedade empresária. 

Derradeiras: a responsabilidade dos Notários e Oficiais de Registro 

Por fim, vale destacar que os notários e oficiais de registro, nos termos do artigo 22 da lei 8.935, de 18 de novembro de 1994, "são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros" cuja  "responsabilidade civil independe da criminal", nos termos do 23 da referida Lei, razão pela qual se deve apurar criminalmente o porquê do Tabelião ter lavrado Procuração Pública em expressa violação do artigo 1.018 CC.

Além do que, as vítimas lesadas que tenham tido a propriedade de seus veículos transferidos com reconhecimento por autenticidade do Certificado de Registro de Veículo - CRV firmados por Rômulo Morais, utilizando-se de Procuração Pública que não discriminava detalhadamente o veículo e os poderes que este foi outorgado a praticar, também poderão demandar judicialmente pela responsabilidade civil do Cartório para que lhes indenizem pelos danos provocados em razão da omissão no ato de verificação do instrumento procuratório,  se continha os poderes suficientes e necessários para prática do ato.

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1 Disponível em https://oantagonico.net.br/a-pc-do-para-o-rominho-os-carros-os-agiotas-a-prisao-em-santa-catarina/, acesso em 09 de outubro de 2023.

2 BARBOSA FILHO, Marcelo Fortes. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Cezar Peluso (coord.). 9ª ed. Barueri, SP: Manole, 2015, p. 969

William Ramos

VIP William Ramos

Advogado sócio-funfador do Escritório Ramos & Valadão Sociedade de Advogados, Mestrando em Direito e que há 8 anos atua ajudando empresas a evitar riscos e reduzir as chances de perder dinheiro.

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