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Reforma trabalhista: incertezas geradas pelo Poder Judiciário

José Pastore title=José Pastore e Eduardo Pastore

Este artigo apresenta inúmeras evidências de que as interpretações desencontradas dos vários órgãos do Poder Judiciário deixam empregados e empregadores inseguros para utilizar as regras de modernização que foram trazidas pela reforma trabalhista.

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Atualizado às 13:31

A reforma trabalhista ainda não pegou na sua inteireza. Inúmeras inovações introduzidas pela lei 13.467/17 continuam sendo pouco utilizadas por empregados e empregadores. Até hoje reina certa insegurança em relação ao uso da homologação de dispensa sem sindicato, à redução do intervalo intrajornada, ao tempo à disposição do empregador, à remuneração do trabalho in itinere, à infraestrutura do teletrabalho, às verbas não salariais, à quitação anual, à ultratividade e à arbitragem trabalhista, entre outros. Afinal, são quase seis anos. O que explicaria essa lentidão? Uma das hipóteses diz respeito à insegurança dos empregados e empregadores em relação à conduta do Poder Judiciário.

O quadro no âmbito do STF

De um modo geral, o STF tem legitimado as regras da reforma trabalhista. Entre os principais apoios estão a validação da prevalência do negociado sobre o legislado, a terceirização irrestrita, o teletrabalho, o fim da ultratividade, maior liberdade para os hiperssuficientes, desnecessidade de aprovação de sindicatos nas dispensas coletivas, validade da negociação individual na jornada de 12 por 36, atualização dos débitos trabalhistas, validação de cláusulas negociadas coletivamente que se distanciam das regras legais (Tese 1046), manutenção dos honorários de sucumbência para as partes (com exceção dos referentes a outras ações judiciais) e outras. Além disso, a Corte pôs fim à ADIn 1625, que tramitava desde 1997, considerando válida a denúncia da Convenção 158 da OIT.  

Inovações sensatas como essas ajudaram a simplificar a contratação de trabalho. Mas, o próprio STF fez reparos às regras da lei 13.467/17. Entre os pontos mais importantes estão a decisão de inconstitucionalidade da parametrização dos valores por danos morais, a invalidação da norma que exigia a participação de representantes das partes na elaboração de súmulas e enunciados elaborados pela Justiça do Trabalho, o pagamento dos honorários periciais e advocatícios por beneficiários da justiça gratuita, a dispensa da participação dos sindicatos nas demissões imotivadas de trabalho individuais, plúrimas ou coletivas e nas homologações de acordos extrajudiciais de trabalho. Recentemente, o STF considerou constitucional a contribuição assistencial obrigatória para empregados sindicalizados e não sindicalizados.

O quadro no âmbito dos demais órgãos do Poder Judiciário

O quadro no âmbito da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho é muito diferente. Em vários campos verifica-se atualmente uma verdadeira queda de braço entre esses órgãos e o STF. Inúmeros juízes, magistrados e ministros do TST vêm resistindo à terceirização para atividades fim, alegando os mais variados motivos1. Em outra área, os magistrados exigem a aprovação dos sindicatos laborais no caso de dispensa coletiva. Há ainda situações em que a Justiça do Trabalho não aplica o princípio do negociado sobre o legislado, entendendo que certos direitos trabalhistas têm caráter alimentar e não podem, por consequência, ser objeto de negociação coletiva. Isso leva a Justiça do Trabalho a aplicar este princípio de modo diferente, a depender dos casos2. Tem sido comum também a consideração de vínculo empregatício em relações de trabalho autônomo de profissionais liberais e trabalhadores por aplicativos, contrariando até mesmo decisões do STF3. Em 2022, o TST decidiu aplicar a lei 13.467/17 apenas a casos novos, ou seja, a fatos ocorridos após sua vigência, e não antes disso4.

Além disso, há o caso da manutenção de inúmeras súmulas e orientações jurisprudenciais que conflitam com regras da reforma trabalhista5. Estão nesse caso, a título de exemplo, a Súmula 90, que trata das horas in itinere, a Súmula 277, que reconhece a ultratividade, a 450, que obriga as empresas a pagar em dobro as férias atrasadas, e a 331, que trata de atividades-meio e fim na terceirização6.

Da mesma forma deixaram de ser revogadas as orientações jurisprudenciais que exigem a equiparação de salários entre empregados da tomadora e da prestadora de serviços foi superada pela lei 13.467/17, mas ainda não foi revogada. O mesmo ocorre com súmulas e (orientações Jurisprudenciais -  OJs) sobre equiparação salarial, banco de horas, honorários de sucumbência na Justiça do Trabalho, intervalo intrajornada, intervalo interjornadas e participação nos lucros e resultados, entre outros exemplos.

Decisões desse tipo deixam empregados e empregadores inseguros e sem saber como as suas decisões individuais e coletivas serão interpretadas pelo Poder Judiciário.

No âmbito dos Tribunais Regionais do Trabalho, a insegurança se repete. Muitos desembargadores usam indicadores para corrigir débitos trabalhistas diferentes do estabelecido pelo STF7. É comum dispensarem os honorários de sucumbência em casos em que esses são devidos. Variam bastante, também, as sentenças sobre vínculos empregatícios nos casos em que a reforma trabalhista deixou clara a sua inexistência.

O Ministério Público do Trabalho, igualmente, tem oscilado em suas decisões e recomendações. Cita-se como exemplo a cobrança da contribuição assistencial constante de acordos e convenções coletivas. Numa Nota Técnica, o MPT amparou a cobrança da referida contribuição, uma vez aprovada pela assembleia8. Em outra circunstância, deixou a regra vaga.

A própria OAB tem resistido à adoção de normas aprovadas pela reforma trabalhista. A título de exemplo, cita-se a ADI 6069 proposta contra a reforma trabalhista que trata da reparação do dano moral.

Na mesma linha, as associações profissionais de juízes, advogados e professores de direito do trabalho contestam a reforma trabalhista por meio de notas técnicas, manifestações e artigos9.

Todas essas contradições nas interpretações e aplicação da lei geram receio para o uso das várias inovações trazidas pela Lei 13.467/2027. Daí o pouco uso de várias normas que estão em vigor.

O Juiz Octavio T. Calvet resumiu a situação ao afirmar que a Justiça do Trabalho vem gerando uma insegurança jurídica nunca antes imaginada, por defesa ideológica de um passado que jamais voltará em vista das grandes transformações ocorridas no campo da contratação do trabalho e bem contempladas pela nova proteção trabalhista trazida pela Lei 13.467/2017. [Essa] insegurança é agravada por grande parte da advocacia trabalhista, que formula teses de conteúdo baseado em princípios que afastam o sentido original da lei na esperança de encontrar um juiz que seja sensível àquela causa10.

Tais considerações resumem bem a enorme transformação que precisa ocorrer no Poder Judiciário Trabalhista  para que se tenha o mínimo de segurança jurídica nas suas decisões. Terão de ser modernizados também os currículos do direito do trabalho que é ensinado nas universidades brasileiras.

Mas, a lentidão no uso das novas regras trabalhistas não é novidade. Reformas provocam incertezas para os que detêm o poder e os privilégios. Estes se organizam e resistem o quanto podem, enquanto os beneficiários assistem atônitos a ações e decisões desencontradas.

Por isso, a caminhada será longa - e não está livre de retrocessos - para se chegar a um ambiente que garanta as proteções do trabalho nas novas formas de contratação geradas pelo avanço tecnológico e novos modos de produzir e vender bens e serviços.

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1 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tst/786774796; https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tst/1278661750  (restrição da terceirização da atividade fim, ainda que autorizada pela lei e pelo STF)

2 https://lopescastelo.adv.br/tst-acordo-coletivo-de-horas-in-itinere-sem-contrapartida-e-invalido/ (relativização do princípio do negociado sobre o legislado)

https://portal.trt11.jus.br/index.php/comunicacao/8232-justica-do-trabalho-reconhece-vinculo-de-emprego-entre-motorista-e-empresa-deaplicativo#:~:text=Um%20motorista%20de%20aplicativo%20de,trabalhistas%20devidas%20pela%20dispensa%20imotivada; https://ww2.trt2.jus.br/noticias/noticias/noticia/justica-do-trabalho-de-sao-paulo-reconhece-vinculo-empregaticio-entre-motorista-e-aplicativo-de-transporte (algumas Turmas do TST entende que há vínculo de emprego)

4 "TST decide que reforma vale apenas para processos novos, O Globo, 20/06/2018 2ª Vara do Trabalho de Divinópolis/MG, PJe: 0010976-93.2019.5.03.0098 (aplicação parcial da Reforma Trabalhista)".

5 Modernização trabalhista e as Súmulas e OJs do TST: necessária revisão da jurisprudência em conflito com a Lei 13.467/2-17 e Lei 13.429/2017 e decisões do STF, Brasília: CNI, 2022. Exemplos: Súmula 90 - horas in itinere; Súmula 114 - afasta a aplicação da prescrição intercorrente na Justiça do Trabalho; Súmula 277 - que reconhece a ultratividade; Súmula 450 - empregador é obrigado a pagar em dobro a remuneração de férias, inclusive o terço constitucional, sempre que o pagamento seja feito fora do prazo de dois dias antes do descanso do trabalhador; súmula 331 - limita a terceirização à atividade-meio da empresa.

5 Da mesma forma deixaram de ser revogadas várias orientações jurisprudenciais, intervalo intrajornada, intervalo interjornadas, participação nos lucros e resultados, dentre outras.

6 Da mesma forma deixaram de ser revogadas várias orientações jurisprudenciais, intervalo intrajornada, intervalo interjornadas, participação nos lucros e resultados, dentre outras (Há ainda súmulas que limitam a terceirização de atividade-fim.).

7 Recurso Extraordinário (RE) 1.269.353. A Lei 13.467/17 determinou que o passivo trabalhista das empresas, quando estas fossem condenadas a pagá-lo, de veria ser corrigido pela Taxa Referencial. O Supremo Tribunal Federal fixou tese determinando que os débitos trabalhistas das empresas deveriam ser corrigidos pelo IPCA-E, na fase pré-judicial, e, a partir do ajuizamento da ação, a taxa Selic. Mesmo diante dessa decisão do STF, não raro, parte dos magistrados trabalhistas, mesmo após a decisão do STF, entendiam que os débitos trabalhistas, uma vez que possuidores de natureza alimentar, deveriam ser corrigidos pelo IPCA.

8 https://mpt.mp.br/pgt/publicacoes/notas-tecnicas/nota-tecnica-conalis-mpt-n-2-de-26-de-outubro-de-2018/@@display-file/arquivo_pdf

9 Natália Xavier, "Backlash": as reformas na legislação trabalhista brasileira e jurisprudência do STF. https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/211198/2022_xavier_natalia_backlash_reforma

Brito Jefferson: 12 pontos onde a reforma trabalhista foi maléfica ao trabalhadortrabalhador https://www.migalhas.com.br/depeso/264129/12-pontos-onde-a-reforma-trabalhista-foi-malefica-ao-trabalhador

Sindicatos e juízes do Trabalho defendem revogação da reforma trabalhista; indústria rebate https://www.camara.leg.br/noticias/870801-sindicatos-e-juizes-do-trabalho-defendem-revogacao-da-reforma-trabalhista-industria-rebate/ Fonte: Agência Câmara de Notícias

Bruel Matheus - Frantz : A (in)validade da reforma trabalhista à luz da dignidade da pessoa humana em Kant e da vedação ao retrocesso social

https://revista.defensoria.rs.def.br/defensoria/article/view/358

10 Octavio T. Calvet, A Justiça do Trabalho precisa pedir perdão, e mudar, Consultor Jurídico, 06/06/2023.

José Pastore

VIP José Pastore

Professor de relações do trabalho da USP e membro do CAESP - Conselho Arbitral do Estado de São Paulo.

Eduardo Pastore

Eduardo Pastore

Advogado trabalhista.

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