A reforma tributária do consumo e o setor financeiro
Como a experiência internacional do IVA sinaliza possíveis tratamentos tributários a serem adotados no regime específico para os serviços financeiros.
terça-feira, 10 de outubro de 2023
Atualizado às 08:02
Desde que a Câmara dos Deputados aprovou a Proposta de Emenda à Constituição 45/19 (PEC 45), que estabelece a reforma tributária do consumo, diversos setores da economia têm discutido os possíveis impactos das novas regras sobre suas atividades, principalmente com relação à carga tributária a ser suportada pelos contribuintes, já que a definição das alíquotas dos novos tributos (Contribuição sobre Bens e Serviços - CBS - e Imposto sobre Bens e Serviços - IBS) deverão ser definidas por lei Complementar posterior.
Para o setor financeiro, a incerteza é maior. Isso, porque, apesar da previsão de que o novo sistema não poderá elevar o custo das operações de crédito, a PEC 45 determina que os serviços financeiros1 estarão sujeitos a um regime de tributação específico, que terá suas próprias alíquotas, base de cálculo e regras de creditamento específicas, distintas do regime geral da CBS e do IBS.
Como esse regime será estabelecido posteriormente, por lei Complementar, os players ainda não possuem clareza sobre os possíveis impactos que a reforma tributária poderá ter sobre o setor financeiro. O que se tem disponível, até o momento, é uma Nota Informativa publicada pelo Ministério da Fazenda no fim de março deste ano2, analisando possíveis modelos de tributação das atividades financeiras, que pode ser o ponto de partida para compreender a visão do governo sobre esse ponto.
Com isso em mente, preparamos este texto com o objetivo de refletir, com base na experiência internacional com o Imposto sobre Valor Agregado (IVA - tal qual a CBS e o IBS), os possíveis tratamentos tributários que podem ser dados aos serviços financeiros no regime específico determinado pela reforma.
De acordo com o trabalho desenvolvido pelo Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) -responsável pela elaboração do texto original da PEC 45 - concluiu-se que, há dois principais tipos de serviços prestado por instituições financeiras: (i) serviços bancários baseados em comissões e tarifas e (ii) serviços de intermediação financeira, baseados em margem3.
O CCiF compreendeu que as taxas e tarifas cobradas na primeira modalidade refletem o valor agregado pelos insumos incorridos pela instituição financeira para prestação daquele serviço - o que permitiria o cálculo do valor agregado para fins de tributação de acordo com a sistemática padrão da CBS e do IBS. Por esse motivo, durante os debates para apresentação do texto substitutivo à PEC 45, foi estabelecido que o regime específico apenas não será aplicado justamente para os serviços de instituições bancárias remunerados por tarifas ou comissões.
Nos serviços baseados em margem/spread (como operações com crédito, títulos e valores mobiliários, instrumentos financeiros e derivativos, câmbio, etc), por sua vez, chegar ao valor adicionado de cada operação é não apenas custoso, como quase impraticável, visto que a receita decorrente do lucro gerado em cada operação intermediada é influenciada por diversos fatores, tais como, a taxa geral de inadimplência, o montante do depósito compulsório, as despesas administrativas, o prazo da operação, a qualificação do contratante, etc.
Justamente por isso que a maioria dos países que adotam o IVA para tributar o consumo isentam a cobrança do imposto sobre os serviços financeiros4. Na UE, por exemplo, diversos serviços financeiros são isentos (artigo 135º das Diretivas do IVA).
Por outro lado, a concessão da isenção tem como consequência negativa a sobretributação das empresas contratantes dos serviços financeiros, que não podem se creditar do IVA pago nas etapas anteriores de aquisição de insumo pelas instituições financeiras, gerando, assim, o aumento indireto do custo desses serviços.
Com o objetivo de discutir esse problema, a Comissão Europeia realizou uma Consulta Pública para obter opiniões e diferentes pontos de vista por parte dos interessados sobre o atual tratamento tributário dos serviços financeiros, assim como opções para possíveis alterações na legislação do IVA em vigor.
A Consulta Pública foi finalizada em março de 2021, e se esperava que até o final de 2022, fosse apresentada uma proposta legislativa com base nos resultados obtidos pela referida consulta.
Mesmo que essa proposta legislativa ainda não tenha sido anunciada, foram apresentados 53 Position Papers pelos interessados no âmbito da Consulta Pública, que, em sua maioria, apresentaram três principais modelos de solução para a tributação desses serviços pelo IVA. E, além desses regimes, em sua Nota Informativa, o Ministério da Fazenda apresentou outras quatro alternativas possíveis - o que é relevante para se pensar no possível posicionamento do Governo Federal acerca das futuras discussões para proposição do regime específico da CBS e do IBS sobre esses serviços.
Esses regimes podem ser assim resumidos:
Principais modelos apresentados na Consulta Pública da comissão europeia
- Manutenção da isenção, mas com opção de o contribuinte recolher o IVA em cada operação: permite que as operações com consumidores finais não sejam tributadas, o que não aumentaria o custo do crédito para pessoas físicas e, ao mesmo tempo, permitiria que as instituições financeiras aplicassem o IVA apenas nas operações com outras empresas contribuintes do imposto (transações B2B), que poderão deduzir o valor do IVA suportado na operação financeira como crédito em sua atividade;
- Substituição da isenção pela aplicação de alíquota zero: o custo do crédito não seria majorado, já que não haverá imposto acrescido ao preço da transação e, ao mesmo tempo, nas operações B2B, as empresas poderão deduzir o valor do IVA suportado na operação financeira como crédito em sua atividade; e
- Manutenção da isenção com introdução de uma taxa percentual fixa de recuperação dos créditos: seria definido um percentual de presunção de operações realizadas com outras empresas contribuintes do IVA, permitindo-se o crédito correspondente.
Principais modelos apresentados na nota informativa do Ministério da Fazenda
- Método de subtração: a base de cálculo do IVA seria apurada pela diferença entre as receitas financeiras e a despesas financeiras totais (o que pode incluir perdas). Como a base não será calculada a cada transação, a atribuição de crédito aos adquirentes dos serviços financeiros seria apurada a partir de uma fórmula;
- Método aditivo: a base de cálculo do imposto seria obtida a partir da soma de elementos que definem ou aproximam o valor agregado no âmbito da instituição financeira. Em Israel, por exemplo, a base de cálculo é a soma dos lucros e salários; e
- Método do fluxo de caixa: todas as entradas seriam tratadas como vendas tributáveis (gerando a cobrança do imposto), enquanto todas as saídas seriam tratadas como despesas da empresa que toma o serviço financeiro (gerando crédito do imposto). O problema desse modelo seria o de liquidez, causado pelo adiantamento do imposto e o lapso temporal para o aproveitamento do crédito; e
- Contas de recolhimento de impostos: a fim de solucionar o problema de liquidez mencionado acima, nesse regime, as instituições financeiras administrariam uma "conta de recolhimento de impostos", na qual seriam registrados os impostos devidos e os créditos ao logo do tempo, corrigidos pela taxa de juros, de forma a permitir o diferimento dos pagamentos.
Como se vê, cada modelo apresenta peculiaridades e soluções distintas. Nesse contexto, sabendo que a PEC 45 deu ampla liberdade ao legislador para determinação do regime específico de tributação dos serviços financeiros, todas as entidades que realizam serviços financeiros devem estar atentas a esses paradigmas internacionais e práticos para que possam ter cada vez mais clareza sobre os possíveis impactos da reforma tributária nas suas atividades e, a partir disso, participar do processo legislativo, assinalando quais os caminhos mais palatáveis e praticáveis para o setor.
Da mesma forma, o Congresso Nacional deve levar em conta esses exemplos no momento de debate e proposição desse regime específico, já que se pode extrair dados concretos relevantes quanto aos efeitos fiscais, econômicos e administrativos/empresariais de cada um dos métodos já adotados em outros países e estudados internacionalmente.
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1 Nos termos das alíneas "a" e "b" do inciso I do artigo 10 da PEC 45/19, consideram-se serviços financeiros: "a) operações de crédito, câmbio, seguro, resseguro, consórcio, arrendamento mercantil, faturização, securitização, previdência privada, capitalização, arranjos de pagamento, operações com títulos e valores mobiliários, inclusive negociação e corretagem, e outras que impliquem captação, repasse, intermediação, gestão ou administração de recursos; e b) outros serviços prestados por entidades administradoras de mercados organizados, infraestruturas de mercado e depositárias centrais, e por instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, na forma de lei complementar;"
2 Disponível em: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/centrais-de-conteudos/publicacoes/notas-informativas/2023/marco/nota-informativa-sre-tributacao-indireta-de-servicos-financeiros.pdf/view.
3 Santi, Eurico Marcos Diniz de, Machado, Nelson [coordenadores]. Imposto sobre bens e serviços / Centro de Cidadania Fiscal: estatuto, PEC45, PEC Brasil solidário, PEC110, notas técnicas e visão 2023. / Bernard Appy. Nelson Machado. - São Paulo: Editora Max Limonad, 2023, pp. 548.
4 Inclusive, os serviços financeiros foram reconhecidos, em relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), como uma das "common exemptions", referindo-se a isenções geralmente aplicáveis à maioria dos países - OECD (2020), Consumption Tax Trends 2020: VAT/GST and Excise Rates, Trends and Policy Issues, OECD Publishing, Paris. Disponível em: https://www.oecd-ilibrary.org/taxation/consumption-tax-trends-2020_152def2d-en.
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*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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Luiz Roberto Peroba Barbosa
Advogado e sócio do escritório Pinheiro Neto Advogados.
Matteus Borelli
Associado da área tributária de Pinheiro Neto Advogados