Sobre "holdings familiares e o problema da invalidade, parte I: fraude à lei e simulação"
Este é um artigo para endossar os estudos dos professores Flávio Tartuce e Maurício Bunazar para que o bom operador se atente aos limites trazidos pelo cliente na formação de uma holding familiar
segunda-feira, 9 de outubro de 2023
Atualizado às 08:56
A comunidade de profissionais que atuam com holdings familiares entrou em alvoroço e alguns até em indignação com a série de três artigos intitulada "As 'holdings familiares' e o problema da invalidade", produzida pelos professores Flávio Tartuce e Maurício Bunazar.
Na condição de quem vem atuando com esse sistema ao longo de mais de uma década e dedicando os últimos cinco anos a ensinar outros profissionais os caminhos para essa atuação, me vi obrigado a comentar os artigos e já antecipo àqueles que esperam ler críticas e posicionamentos divergentes, que não os encontrarão aqui. Registro desde logo que concordo em quase tudo com as teses traçadas.
Logicamente, há pontos que desejo tecer considerações antíteses, mas o eixo dos temas guardam minha concordância e, por essa razão, minha maior contribuição ao universo jurídico talvez seja nos alertas àqueles que atuam (ou desejam atuar) com holdings familiares sobre os cuidados que devem se cercar e com os expedientes que devem se abster de praticar, sob pena de lançar seus clientes ao limbo da estrutura eivada de invalidade.
Para isso, farei a abordagem da mesma forma, em uma série de três artigos, onde comentarei cada um dos três estudos realizados pelos professores Tartuce e Bunazar.
Começamos, então, ao apontamento da "fraude à lei e simulação".
Antes de começar, vale justificar a razão de estarmos realizando este estudo, que não é autônomo e também não se propõe a ser antagônico ao estudo original. Além da alta qualidade técnica das abordagens dos estudos originais e da delicadeza dos pontos trazidos, não é menos importante a relevância que os Professores Flávio Tartuce e Maurício Bunazar têm para o universo jurídico, que inclusive gozam da mais profunda admiração do autor deste artigo.
No que tange ao conteúdo do artigo, não há maneira melhor de resumir a abordagem dada que aquele feito pelos próprios autores na abertura do segundo artigo da série, a saber:
Em nosso último texto, publicado neste canal, começamos a estudar os problemas de invalidade das chamadas "holdings familiares", sobretudo no modelo que tem sido efetivado no Brasil, que busca efetivar o total esvaziamento patrimonial dos bens dos membros da família por meio de sua destinação para essas pessoas jurídicas.
Naquele trabalho inicial foram destacados dois problemas de invalidade na constituição dessas pessoas jurídicas, ambos dizendo respeito à violação de normas cogentes ou de ordem pública e que, por isso, são causas de nulidade absoluta, a mais grave das invalidades.
O primeiro problema - e talvez o mais grave de todos, em nossa visão compartilhada - é o de que a constituição dessas sociedades patrimoniais pode configurar negócio jurídico indireto voltado à fraude a leis imperativas, a gerar a sua nulidade (art. 166, VI, do Código Civil). O segundo problema jurídico está associado à presença de simulação, vício social do negócio jurídico que, pelo vigente Código Civil, ocasiona igualmente a nulidade absoluta do negócio jurídico (art. 167).
O artigo comentado diz que nos últimos anos houve uma "busca mais intensa por mecanismos de planejamento sucessório" e com isso, passaram a ser implementadas as holdings familiares. Aqui sim, temos uma ponderação conceitual, na qual defendemos a ideia que Holding Familiar não é instrumento de planejamento sucessório, mas que ela pode ser utilizada para evitar a sucessão patrimonial (esta sim regulada em nossa lei civil), dando lugar exclusivamente à sucessão de comando daquilo que denominamos ser a instituição da família.
Para isso se materializar, defendemos que jamais haja o esvaziamento patrimonial da família. Entendemos que isso, de fato, é um equívoco jurídico e, via de regra, busca lesar os interesses de terceiros ou a famigerada blindagem patrimonial que, ao meu sentir, sequer tem abrigo no direito brasileiro. Vamos explicar essa relação.
A palavra Hold, que na língua inglesa também significa "portabilidade" ou "detenção" de algo, no direito societário norte-americano para designar o sócio (ou acionista) de uma empresa dá lugar à palavra shareholder que, na tradução literal, seria o portador de uma ação. Portanto, a atividade holding significa participação societária.
A mera participação societária, por sua vez, não é uma atividade econômica e menos ainda uma atividade empresária. Pela leitura dos arts. 981 c/c 966 do código civil surgem os ensinamentos de que sócio não realiza atividade, sócio é apenas um investidor (quando muito presta algum serviço à sociedade), sociedade só existe se realizar atividade econômica e que empresária é a sociedade e não o sócio.
Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.
Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
Aliás, o que corrobora esse entendimento é a existência do art. 2º, §3º da lei 6.404/76, de maneira que, apesar de termos a livre iniciativa como princípio da economia (art. 170, parágrafo único, da Constituição), é preciso que haja em nosso ordenamento uma lei permitindo que a participação societária fosse erigida à condição de atividade econômica, para que pudesse ser considerada objeto de uma empresa.
CF, art. 170, parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
Lei de S/As, art. 2º. § 3º. A companhia pode ter por objeto participar de outras sociedades; ainda que não prevista no estatuto, a participação é facultada como meio de realizar o objeto social, ou para beneficiar-se de incentivos fiscais.
Até então, holding enquanto atividade econômica (fictícia é claro) e partido dessas explicações, estava presente na Lei de S/As, no dispositivo acima. Contudo, em 2008, o termo holding, exprimindo participação societária, veio ao ordenamento pátrio na lei 11.727/08:
Art. 31. A pessoa jurídica que tenha por objeto exclusivamente a gestão de participações societárias (holding) poderá diferir o reconhecimento das despesas com juros e encargos financeiros pagos ou incorridos relativos a empréstimos contraídos para financiamento de investimentos em sociedades controladas.
Até esse ponto, temos o suficiente para conceituarmos holding de forma mais assertiva, como sendo:
"a palavra da língua inglesa utilizada no direito societário em âmbito internacional para designar 'participação societária' e trata-se de uma atividade econômica fictícia, criada pela lei para elevar a mera participação societária à condição de objeto social de uma empresa."
Holding familiar, por sua vez, não é um instituto jurídico, mas uma estratégia de negócio, que pode ser empregada da maneira como melhor definirem os interessados.
Este autor é membro de uma comunidade de profissionais que nasce a partir do treinamento profissional por ele ministrado, chamada Time Holding Brasil que, no momento em que este estudo é produzido, conta com mais de 5.000 membros e está presente em todas as Unidades da Federação. Essa informação é importante porque ali está concentrado um enorme número de profissionais que vêm atuando de maneira muito honesta, sem atalhos ou "esquemas", buscando soluções jurídicas eficientes para ajudar às famílias de seus clientes.
Para os membros do Time Holding Brasil, Holding Familiar é utilizada como sendo um "sistema de Planejamento Patrimonial da Família, que passa pela despessoalização e institucionalização do patrimônio" e, bem distante do esvaziamento, busca mecanismos que levam à perpetuação e crescimento desse patrimônio dentro da família.
Até aqui, estamos em plena congruência com os professores Tartuce e Bunazar. Vejamos o que os mesmos dizem no estudo em análise:
Dentre as suas funções, vantagens e utilidades, tem-se apontado uma maior possibilidade de conter os conflitos entre os membros da família, sem afetar a sociedade controlada, que continua produzindo riquezas, mantendo os seus funcionários e, supostamente, pagando os tributos. E, de fato, muitos advogados têm oferecido, sobretudo na internet e pelas redes sociais, serviços para montagem dessas estruturas, bem como cursos de formação de outros profissionais para a prestação de serviços jurídicos relativos às "holdings familiares".
E os nobres juristas prosseguem com aquilo que poderia ser um certo ponto de divergência, mas não vemos assim, vemos como uma seríssima advertência a cuidados sobre o que não deve ser feito:
Todavia, como temos advertido, existem sérios problemas de invalidade que acometem essas constituições negociais, sobretudo no caso do modelo que busca o total esvaziamento patrimonial dos bens dos membros da família e sua destinação para essas pessoas jurídicas.
Divergimos aqui, tão somente no uso do "sobretudo". A ausência deste advérbio já seria suficiente para qualificar exatamente onde está o equívoco que concordamos: "no caso do modelo que busca o total esvaziamento patrimonial dos bens dos membros da família e sua destinação para essas pessoas jurídicas".
Segundo aqueles autores, há dois problemas de invalidade, vamos abordá-los:
Pois bem, o primeiro problema - e talvez o mais grave de todos - é que essas constituições negociais representam um negócio jurídico indireto [...].
Mas veja que o problema, de fato, segundo os próprios autores, não por haver um negócio jurídico indireto, mas se este for ilícito, como bem observam adiante:
Da própria definição de negócio jurídico indireto verifica-se que ele pode ou não ser ilícito, ficando tal qualificação a depender do fim visado. Em sendo esse fim ilícito, estar-se-á diante de negócio jurídico indireto em fraude à lei, que, por disposição expressa de lei, é nulo (art. 166, VI, do Código Civil).
Por essa razão, não vamos aqui nos debruçar sobre a existência ou não de negócio jurídico indireto, mas se há e quando há finalidade ilícita. Vejamos como segue o artigo em estudo:
Ora, nos casos das "holdings familiares" que visam ao total esvaziamento patrimonial da família há claro desrespeito às normas cogentes ou de ordem pública alusivas à sucessão legítima, tratadas pelo Código Civil a partir do seu art. 1.784.
Aqui há duas informações importantes: os casos em que os autores mencionam haver desrespeito às normas cogentes ou de ordem pública, mormente os "casos das 'holdings familiares' que visam ao total esvaziamento patrimonial da família"; bem como as normas que estariam em desrespeito e, por conseguinte, eivando o negócio jurídico de nulidade, mormente aquelas "alusivas à sucessão legítima, tratadas pelo Código Civil a partir do seu art. 1.784".
Notemos até aqui que, de fato, os profissionais sérios que lidam com Holding Familiar deveriam estar aplaudindo os professores Flávio Tartuce e Maurício Bunazar e não fazendo qualquer crítica. Eles estão absolutamente corretos. Assim como defendemos em nosso treinamento profissional, em nossos artigos e em nossas manifestações nas redes sociais:
- Holding familiar não pode e não deve jamais ser utilizada como mecanismo para atender interesses escusos de alguns clientes, que visem promover esvaziamento patrimonial (ou ocultação patrimonial); e
- Holding familiar não se presta para elidir o direito à herança; a tentativa de desrespeito à sucessão legítima, invariavelmente, levará o sistema a padecer por nulidade.
Ainda dentro desse mencionado "primeiro problema" queremos destacar os ensinamentos do próprio professor Flávio Tartuce (In Manual de Direito Civil - Volume Único (p. 300). Edição do Kindle)
[...] a sentença que declara a nulidade absoluta tem efeitos erga omnes, contra todos, diante da emergência da ordem pública. Os efeitos declaratórios dessa decisão são também ex tunc, retroativos ou retro-operantes, desde o momento de trânsito em julgado da decisão até o surgimento do negócio tido como nulo.
Essas lições nos levam a ser mais enfáticos nos ensinamentos que esposamos alhures, pois o esvaziamento patrimonial com fins de lesar a sucessão legítima de um, tende a criar problema exatamente àquele outro a quem se desejou beneficiar, pois todo o ato nulo será desfeito e retroagirá ao momento anterior à sua celebração.
No que tange ao "segundo problema", assim discorrem os autores:
O segundo problema jurídico que diz respeito à constituição das "holdings familiares" está associado à presença de simulação, vício social do negócio jurídico que, pelo vigente Código Civil, ocasiona igualmente a nulidade absoluta do negócio jurídico (art. 167). Geralmente, a constituição dessas pessoas jurídicas envolve a integralização de capital que não traduz a realidade - o que, aliás, é muito comum em nosso País -, caracterizando a simulação relativa objetiva prevista no § 1º, inc. II, do artigo citado, uma vez que o negócio jurídico constitutivo contém declarações e cláusulas que não são verdadeiras.
[...]
Essa manobra serve, por exemplo, para facilitar as doações de cotas ou de ações para certos membros da família, em detrimento de outros.
[...]
é comum o membro da família que participou da constituição da pessoa jurídica pretender o reconhecimento da sua invalidade, por vários motivos, sobretudo porque percebe posteriormente que foi prejudicado pelo esvaziamento patrimonial engendrado.
É um equívoco o bom operador das holdings familiares ver qualquer afronta dos autores nesse estudo. Mais uma vez, neste segundo problema, encontramos outro alerta claro que o emprego da holding familiar para simular um patrimônio inferior ao que realmente é, no intuito de reduzir ou aniquilar a participação adequada de qualquer pessoa na sucessão legítima tem como repercussão sua nulidade absoluta.
Aqui sim, entendemos que não é o caso de nenhum reparo, mas de uma consideração importante no trecho que diz: "geralmente, a constituição dessas pessoas jurídicas envolve a integralização de capital que não traduz a realidade - o que, aliás, é muito comum em nosso País -, caracterizando a simulação relativa objetiva".
Para o reparo que pretendemos fazer, é muito importante dizer que nossa base se forma exatamente nos ensinamentos do Professor Maurício Bunazar na linda obra "A invalidade do negócio jurídico", de onde colhemos a lição que a autonomia privada tem como limitador a norma de competência:
A autonomia privada, contudo, embora pressuponha a liberdade, com ela não se confunde. Isso porque, enquanto a liberdade é algo transcendente ao direito, a autonomia privada é um poder tipicamente jurídico.
[...]
Dessarte, a autonomia privada pode ser conceituada como poder do agente de criar normas jurídicas, sendo, pois, fonte do direito. O principal instrumento do exercício da autonomia privada é o negócio jurídico, havendo, mesmo, quem identifique as expressões autonomia privada e autonomia negocial.
Esse poder do agente de inovar a ordem jurídica é regulado e, consequentemente, limitado por normas jurídicas de competência.
As normas jurídicas de competência são as que disciplinam o exercício do poder de criar normas jurídicas, determinando, entre outros aspectos, a quem cabe esse poder e, principalmente, os limites a que está submetido.
Da violação das normas jurídicas de competência decorre uma sanção típica, qual seja, a invalidade do preceito normativo.
A invalidade do ato jurídico preceptivo pode, portanto, ser considerada a consequência do exercício irregular da autonomia privada, é dizer, do exercício da autonomia privada em desconformidade com alguma regra de competência. (Bunazar, Maurício. A invalidade do negócio jurídico (pp. 29-30). Edição do Kindle.)
Então vejamos. o Estado tem interesse que pessoas físicas levem para dentro de pessoas jurídicas a maior quantidade de bens que puderem. Bens dentro da pessoa jurídica ajudam a mover a economia, pois passam a ser empregados no exercício da atividade delas, diferente do que acontece com as pessoas físicas, que apenas guardam seus bens ou usam apenas para o seu próprio deleite.
Para assegurar essa política de Estado, temos em nosso ordenamento diversos momentos em que há contornos ao que seria a regra para que o particular consiga exercer esse ato sem ônus, sobretudo no campo tributário. Um bom exemplo inicial é a imunidade tributária prevista no art. 156, §2º, I da Constituição para que não haja ITBI na operação de integralização do capital social.
Art. 156, §2º. O imposto previsto no inciso II:
I - não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;
O Estado brasileiro tem interesse que o cidadão leve seu imóvel para dentro da empresa, por isso cria a norma imunizante, para que ele possa fazer isso sem que seja tributado com o ITBI.
A integralização de capital social é um ato de alienação do bem empregado para isso.
A lei 7.713/88, ao tratar do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica, estipula em seu art. 3º, caput e §2º, que sobre a diferença positiva entre o valor de transmissão e o custo de aquisição desse bem incide imposto de renda.
Art. 3º O imposto incidirá sobre o rendimento bruto, sem qualquer dedução, ressalvado o disposto nos arts. 9º a 14 desta lei.
§ 2º. Integrará o rendimento bruto, como ganho de capital, o resultado da soma dos ganhos auferidos no mês, decorrentes de alienação de bens ou direitos de qualquer natureza, considerando-se como ganho a diferença positiva entre o valor de transmissão do bem ou direito e o respectivo custo de aquisição corrigido monetariamente, observado o disposto nos arts. 15 a 22 desta lei.
Ora, ora. se o Estado tem mesmo interesse em fazer com que as pessoas físicas invistam em suas pessoas jurídicas, incorporando ao patrimônio delas os seus bens, precisava o legislador adotar providências para que isso pudesse acontecer, já que, se a pessoa física fizesse essa alienação pelo valor atual, geralmente superior ao custo de aquisição (sobretudo quando falamos de bens imóveis, que raramente desvalorizam), ela teria que pagar imposto de renda e optaria por não realizar essa transação.
Assim, a lei 9.249/95 criou a faculdade à pessoa física de escolher entre o valor que esteja em sua declaração de bens e direitos da declaração de imposto de renda e o valor de mercado.
Art. 23. As pessoas físicas poderão transferir a pessoas jurídicas, a título de integralização de capital, bens e direitos pelo valor constante da respectiva declaração de bens ou pelo valor de mercado.
Agora sim, se a pessoa tem um carro que comprou há 3 anos por R$ 100.000 (e que hoje vale R$ 70.000) e deseja usá-lo para integralizar capital social, ele pode fazê-lo pelo valor de mercado, pois não supervaloriza suas quotas sem necessidade.
Por outro lado, se essa mesma pessoa também tem um imóvel que adquiriu há 20 anos por R$ 100.000 (e por este valor está em sua DIRPF) e que hoje vale R$ 700.000, ele pode usá-lo para integralizar o capital social da empresa pelos R$ 100.000 sem precisar apurar ganho de capital e ter que pagar imposto de renda.
O lindo na construção dessa política de Estado é que as normas vão se organizando, inclusive, para corrigir as eventuais distorções. Nesse caso, uma vez recebidos os bens, nada impede que a pessoa jurídica ajuste sua contabilidade através de uma técnica contábil de avaliação a valor justo e consiga fazer isso sem que haja impacto tributário. Para assegurar isso, a lei 8.981/95, em seu art. 32, teve incluído em uma reforma de 2014, um §5º, que estabeleceu:
Art. 32, §5º. Os ganhos decorrentes de avaliação de ativo ou passivo com base no valor justo não integrarão a base de cálculo do imposto, no momento em que forem apurados.
Obviamente, o eventual ganho de capital será apurado se e quando o bem vier a ser alienado pela empresa, o que faz parte das regras do jogo.
Vemos até aqui, portanto, que a integralização de capital social com um bem pelo seu valor de DIRPF, ainda que dissonante do valor de mercado dele, aprioristicamente não revela qualquer afronta a uma norma de competência.
Contudo, quando essa faculdade serve de mecânica para se esvaziar o patrimônio de alguém para gerar uma lesão à sucessão legítima, aí sim, estamos diante de uma outra norma de competência que está sendo afrontada e, em nosso entender, o artigo em estudo tem absoluta razão em seus apontamentos de invalidade.
Podemos concluir esse primeiro artigo com três indicações muito claras ao leitor, sobretudo àquele que pretende atuar (ou já atua) com holding familiar:
- não se proponha a utilizar a Holding Familiar como mecanismo para atender interesses escusos de clientes que visem promover seu esvaziamento patrimonial (ou ocultação patrimonial) com a finalidade de lesar terceiros;
- não se proponha a utilizar a Holding Familiar para elidir o direito à sucessão legítima, sob pena de, neste ou no caso anterior, levar todo o sistema que deveria atender interesses honestos das famílias a padecer pela nulidade; e
- não se contente com as menções aqui trazidas, leia o artigo em estudo na íntegra, pois o mesmo traz importantes reflexões para o bom operador do direito não incorrer em erros que coloquem em risco seus clientes.