A decretação da nulidade absoluta com base na certidão de inscrição na dívida ativa e a necessidade do distinguishing
É fundamental garantir que os contribuintes tenham o direito à ampla defesa respeitado, ao mesmo tempo em que se promove o cumprimento das obrigações fiscais. O "distinguishing" surge como uma ferramenta valiosa nesse processo, permitindo que os tribunais avaliem cada caso de forma justa e individualizada.
segunda-feira, 2 de outubro de 2023
Atualizado às 14:13
Resumo
O presente artigo tem como objetivo examinar a questão da não decretação da nulidade absoluta com base na certidão de inscrição na dívida ativa e a necessidade do "distinguishing" no contexto jurídico. A certidão de inscrição na dívida ativa é um documento essencial na recuperação de débitos fiscais, mas sua mera apresentação não deve, automaticamente, resultar na nulidade de atos processuais ou na desconsideração de alegações defensivas. O "distinguishing" surge como uma ferramenta crucial para discernir entre casos em que a certidão de inscrição deve ser determinante e aqueles em que outros fatores devem ser considerados. Este artigo aborda as implicações legais, precedentes e argumentos a favor e contra a aplicação estrita da nulidade absoluta, bem como os critérios para a correta aplicação do "distinguishing" em processos relacionados à dívida ativa.
Introdução
A certidão de inscrição na dívida ativa é um instrumento importante para a Administração Tributária na busca pela arrecadação de tributos. No entanto, sua utilização indiscriminada pode levar a sérias consequências, incluindo a decretação de nulidade absoluta de atos processuais e a negação do direito à ampla defesa. Neste artigo, exploraremos as nuances dessa questão e a importância de um princípio jurídico conhecido como "distinguishing" na tomada de decisões judiciais.
Da ponderação de um princípio de garantia constitucional com uma regra
Na teoria de Robert Alexy, a ponderação desempenha um papel fundamental na resolução de conflitos entre princípios, e, entre estes, com as regras no contexto da aplicação do direito.1
- Princípios como normas abstratas: De acordo com Alexy, os princípios são normas abstratas que devem ser aplicadas na maior medida possível observando as possibilidades jurídicas e reais existentes. Eles são mais flexíveis e abertos do que as regras, pois não especificam condutas concretas, mas sim objetivos a serem alcançados.
- Regras como normas descritivas: Por outro lado, as regras são normas mais específicas e descritivas. Elas estabelecem condutas concretas a serem seguidas em situações particulares e possuem maior rigidez em comparação com os princípios.
A ponderação é o método proposto por Alexy para resolver conflitos entre princípios e, entre estes, e as regras. Quando uma regra deixa margem para dúvidas ou quando há um conflito entre regras ou entre princípios, a ponderação é utilizada para encontrar a solução apropriada.
- Resolução de conflitos: Os princípios podem colidir entre si, ou podem colidir com as regras. Essas colisões ocorrem quando, por exemplo, a aplicação de um princípio pode entrar em conflito com a aplicação de outro princípio ou de uma regra específica. Quando isso acontece, a ponderação envolve a análise de vários fatores, como a importância relativa dos princípios em questão, a intensidade dos valores em jogo e as consequências da decisão.
- Correção de distorções: Os princípios, como normas abstratas que refletem valores fundamentais, desempenham um papel importante na correção de distorções que podem surgir da aplicação estrita de regras ou da colisão entre regras e princípios.
Ao caso em tela, a regra 185 do Código Tributário Nacional - CTN, não pode criar um princípio, dado que princípios é que criam as regras e não o contrário. Ou seja, não pode o juiz se valer de regras para justificar princípios, haja vista o nível de abstração do segundo, como nos ensina Dworkin.2
Assim, uma inscrição na dívida ativa não pode gerar um princípio de nulidade absoluta de fraude à execução ou a credores sem a prova de que a alienação de um bem foi feita em conluio com o comprador e que essa mesma alienação provocou a insolvência do devedor.
Nulidade absoluta e certidão de inscrição na dívida ativa
A nulidade absoluta é uma sanção grave no campo do direito, e sua decretação deve ser feita com cautela. A mera apresentação de uma certidão de inscrição na dívida ativa não pode, por si só, levar à nulidade absoluta de um ato processual ou à negação do direito de defesa do contribuinte.
É necessário considerar as circunstâncias individuais de cada caso e aplicar o princípio do "distinguishing" para determinar se a certidão de inscrição deve ser determinante ou se outros fatores devem ser considerados.
O papel do "distinguishing" na análise jurídica
O "distinguishing" é um princípio que permite aos tribunais distinguir entre casos semelhantes com base em diferenças factuais ou legais relevantes.
No contexto da certidão de inscrição na dívida ativa, o "distinguishing" desempenha um papel fundamental na tomada de decisões judiciais justas. Ele permite que os tribunais considerem se a inscrição na dívida ativa é o único fator relevante que justifica a nulidade absoluta ou se existem outras circunstâncias que merecem ser ponderadas.
Argumentos a favor e contra a aplicação estrita da nulidade absoluta
Existem argumentos convincentes tanto a favor quanto contra a aplicação estrita da nulidade absoluta com base na certidão de inscrição na dívida ativa.
Os defensores da aplicação estrita argumentam que isso é necessário para garantir o cumprimento das obrigações fiscais e proteger os recursos públicos.
Por outro lado, os críticos argumentam que essa abordagem pode prejudicar o direito à ampla defesa e levar a injustiças.
Critérios para o uso adequado do "distinguishing"
Para garantir o uso adequado do "distinguishing" no contexto da certidão de inscrição na dívida ativa, é importante estabelecer critérios claros. Isso inclui considerar a natureza da dívida, a conduta do contribuinte, a existência de erros administrativos e outras circunstâncias que possam influenciar a decisão judicial.
Da decretação de nulidade absoluta em função da inscrição da dívida ativa e aplicação dos precedentes do STJ
A tese em foco debruça-se no exame da regra 185 do CTN em relação a uma aquisição de um imóvel onde o comprador não tinha conhecimento de havia uma inscrição de dívida e sobre o imóvel não havia averbação de penhora.
A questão envolve a sua aplicabilidade para decretar a nulidade absoluta com base em fraude, no caso de qualquer alienação de imóveis, incluindo, as sucessivas em face do REsp 1.820.873/RS, julgado em 25 de abril de 2023 e REsp 1.141.990/PR-2018, senso o primeiro da lavra da lavra do Ministro Benedito Gonçalves e o segundo da lavra de Luiz Fux, onde se definiu que qualquer alienação de imóvel onde exista uma inscrição de dívida ativa em nome do vendedor, afasta-se a súmula 375 do STJ, para que nas execuções fiscais não aja mais espaço para a análise à averbação da penhora e má-fé para o fim último de caracterizar a fraude absoluta.
Os precedentes acima citados do STJ, se forem aplicados sem devido distinguishing, ocasionará insegurança nas decisões judiciais, além de violarem o direito fundamental da propriedade garantido no artigo 5º da Constituição Federal.
Em primeiro lugar, deve-se considerar que não existindo uma Certidão de Dívida Nacional inevitavelmente trará uma insegurança e imprevisibilidade a terceiros de boa-fé.
Sob outro prisma, a questão deve ser analisada sob a ótica da propriedade, o que confere ao caso relevância social e econômica, dado o seu impacto no cenário de compra e venda de imóveis.
Isso ocorre visto que qualquer terceiro de boa-fé que tenha adquirido um bem imóvel por meio de uma sucessão de alienações pode vir a ser prejudicado.
Assim, antes que seja decretada a nulidade absoluta com base na certidão de Inscrição na Dívida Ativa é necessário comprovar que de fato inexiste outros bens que bastem para a satisfação do credor.
Nessa linha de raciocínio, o instituto das alienações fiduciárias sucessivas clama por um tratamento diferenciado, uma vez que, em contrapartida ao disposto no artigo 185 do CTN, somente com o registro da penhora é que as alienações posteriores poderiam ser declaradas ineficazes.
Em resumo, diante da complexidade das operações de alienação de imóveis em série, a legislação deve ser sensível às particularidades desse cenário e garantir a proteção dos direitos dos compradores subsequentes, tornando o registro da penhora uma peça-chave para a eficácia e a segurança dessas transações.
Com efeito, quando o imóvel é adquirido de terceiro contra quem sequer ocorreu o lançamento do tributo ou há execução pendente, resta certo que o terceiro não possui o animus nocendi, pois ele sequer tem conhecimento sobre uma possível inscrição na dívida ativa.
O precedente do REsp 1.820.873 trouxe contornos perigosos para a aplicação do artigo 185 do CTN, repercutindo de forma significativa no campo das alienações sucessivas.
Consequentemente, as aquisições posteriores do bem por terceiros que não sejam o primeiro comprador passaram a ser consideradas de má-fé, sujeitando esses compradores subsequentes aos efeitos decorrentes dessa condição, ou seja, suas alienações passaram a ser qualificadas como fraudulentas.
Ademais, os referidos precedentes afastaram a aplicação da súmula 375 do STJ, que impunha a Fazenda comprovar o registro da penhora na matrícula do imóvel e má-fé de terceiros.
Esse afastamento da jurisprudência consolidada com base na súmula 375 do STJ gerou impactos significativos no campo jurídico, uma vez que a Fazenda agora não precisa apresentar prova documental do registro da penhora para contestar a validade das alienações subsequentes.
Nesse contexto, mais uma vez o direito de propriedade se vê prejudicado nos casos de alienações sucessivas de bens imóveis.
Portanto, atualmente, mesmo diante de situações em que foram tomadas precauções mínimas, como a obtenção de certidões negativas, a presunção de fraude à execução prevalecerá de forma absoluta, sobrepondo-se ao direito à propriedade do terceiro de boa-fé.
Como observado por Scavone, renomado estudioso do tema, essa evolução jurisprudencial levanta sérias questões sobre a segurança jurídica nas transações imobiliárias envolvendo alienações sucessivas.
Scavone, sobre o tema ensina:
"De fato, providenciou-se todas as certidões, tomando as cautelas devidas, não pode ser considerado de má-fé"3
Entretanto, antes de aplicar o precedente do REsp 1.820.873 ou REsp 1.141.990/PR-2018, representativos da controvérsia, é imperativo o distinguishing, a qual consiste em uma construção argumentativa onde a ratio dos precedentes não podem ser aplicados em face de elementos diferenciados que o envolvem e como será demonstrados a seguir.
O tribunal deve partir do pressuposto de que nenhum caso é idêntico ao outro, portanto é indispensável que o julgador justifique a decisão e o motivo da aplicação de determinado fundamento, exprimindo onde reside a semelhança ou a diferença existente entre os casos, conforme a lição de EDINGER4
No acordão prolatado nos Resp 1.820.873/RS não se registra que o Executado tivesse bens outros que pudessem quitar a dívida fazendária, o que atenderia a norma extraída do parágrafo único da regra 185 do Código Tributário Nacional
Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa.
Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica na hipótese de terem sido reservados, pelo devedor, bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida inscrita. (Artigo com redação dada pela Lei Complementar 118, de 9/2/05).
Em contrapartida, fazendo-se o distinguishing com o acórdão do Resp 1.820.873/RS (25.4.23) com um caso concreto onde o Executado tenha um número de bens que bastem para satisfazer o credor, a norma contida na decisão do Recurso Especial acima citado não serve como paradigma, como é também inaplicável a norma constante no Resp n. 1.141.990/PR, na hipótese em que o Executado tenha vendido o único bem depois da citação na execução fiscal.
Importa ressaltar que a existência de penhoras não configura, de maneira alguma, um impedimento à alienação, uma vez que se trata meramente de informação relativa aos atos constritivos, os quais não obstam a venda de bens.
Diante dessa distinção, é imperativo que se restrinja a aplicação dos acórdãos do Superior Tribunal de Justiça relacionados aos casos concreto onde o terceiro não tenha conhecimento de que haja uma inscrição de dívida ativa contra o vendedor
Tal restrição possibilitará um tratamento diferenciado para situações que envolvam sucessivas alienações de bens móveis.
Nesse contexto, torna-se necessário proceder ao "distinguishing" conforme estabelecido no artigo 792, §2 do Código de Processo Civil.
Conclusão
A não decretação da nulidade absoluta com base na certidão de inscrição na dívida ativa e a necessidade do "distinguishing" são questões complexas que exigem uma abordagem cuidadosa e equilibrada.
É fundamental garantir que os contribuintes tenham o direito à ampla defesa respeitado, ao mesmo tempo em que se promove o cumprimento das obrigações fiscais.
O "distinguishing" surge como uma ferramenta valiosa nesse processo, permitindo que os tribunais avaliem cada caso de forma justa e individualizada.
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1 ALEXY, Robert, TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA, 3ª. edição, forense, 2011.
2 DWORKIN, Ronald, O IMPÉRIO DO DIREITO, editora Martins Fontes, 3ª.edição, 2014,
3 SCAVONE, Junior, Luis Antonio. Direito Imobiliário, Teoria e Prática, 15,ed. Rio de Janeiro, Forense, 2020, p.786
4 EDINGER, Carlos. Distinguishing: Raciocínio analógico. Revista de Processo Civil, São Paulo, v.42, n.266, abr, 2017, Disponível https: // academia.edi/32533525/ Distinguishing
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ALEXANDRE, Ricardo, Direito Tributário, editora jus podium, 17ª. edição, revista e atualizada, 2023
ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica, 3ª edição, Forense.
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito, 3ª edição, Editora Martins Fontes, 2014.
EDINGER, Carlos. "Distinguishing: Raciocínio Analógico." Revista de Processo Civil, São Paulo, v. 42, n. 266, abril de 2017. Disponível em: https://academia.edu/32533525/Distinguishing.
SCAVONE, Junior, Luis Antonio. Direito Imobiliário, Teoria e Prática, 15ª edição, Forense, 2020, p. 786.
PAULSEN, Leandro, Tratado de Direito Penal Tributário Brasileiro, editora Saraiva, São Paulo, 2022