Proteção de dados pessoais no uso de imagem e voz por organizações da sociedade civil
A proteção da imagem e voz nas atividades das OSCs é um delicado equilíbrio entre os direitos individuais e o bem coletivo, exigindo cuidado e respeito às nuances de cada situação para garantir uma atuação responsável e alinhada com os princípios da LGPD e dos direitos da personalidade.
terça-feira, 26 de setembro de 2023
Atualizado em 27 de setembro de 2023 11:00
As organizações da sociedade civil (OSCs) apresentam grande diversidade nos seus objetivos organizacionais, atuando nas áreas de saúde, educação, cultura, meio ambiente, assistência social, religião, entre outras associadas à defesa de direitos difusos e coletivos. Para atingirem as suas finalidades estatutárias, as OSCs realizam oficinas e cursos de formação, promovem campanhas e eventos, fazem registros fotográficos de suas atividades, produzem conteúdo audiovisual, entre diversas ações que envolvem a captura e uso de imagens de terceiros. Além disso, por atuarem em contextos de impacto social, os OSCs respondem, muitas vezes, a situações emergenciais e de crises humanitárias, atendendo grupos sociais em situação de vulnerabilidade ou que demandam uma proteção especial.
Tendo em vista esse cenário, este artigo apresenta alguns cuidados que devem ser tomados pelas OSCs quando da divulgação da imagem e voz de terceiros, para que não ocorram violações ao direito de personalidade e à proteção de dados pessoais.
O direito de imagem encontra-se no rol dos direitos da personalidade1, que recaem sobre o ser humano e lhe dão uma existência social, enquanto sujeito de direito capaz e autodeterminado. A imagem protegida pelo direito tem sido entendida sob três aspectos: como "imagem-retrato", "imagem-atributo" e "imagem cultural".
A "imagem-retrato" representa as características exteriorizadas de uma pessoa identificável, que a definem como única, tais como sua aparência física, voz, gestos e expressões dinâmicas de sua personalidade. Essa imagem pode ser retratada por meio da fotografia, pintura, escultura, vídeos e filmes, entre outros meios de comunicação. Já a "imagem-atributo" diz respeito às características subjetivas e imateriais, por meio das quais a personalidade do indivíduo é representada no meio social, como seus traços psicológicos e morais. É o caso da imagem do jogador Pelé, conhecido como "rei do futebol" por suas habilidades no esporte, dando seu apelido à lei 9.615/98 (lei pelé), importante instrumento de regulamentação dos direitos de imagem dos atletas profissionais.
Há, ainda, quem argumente a existência de uma "imagem cultural", associada à "imagem-atributo", porém de caráter coletivo, pois vinculada às características culturais e morais comuns à determinada etnia2. Por exemplo, a imagem de povos indígenas, em suas manifestações culturais coletivas, o que até ensejou a edição de uma portaria, pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas - FUNAI (Portaria 177/06), que sustenta que o direito sobre as imagens baseadas em manifestações culturais e sociais coletivas de povos indígenas brasileiros pertence à etnia representada.
A proteção à imagem foi tutelada pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, X, que garante, ainda, a "indenização pelo dano material ou moral decorrente da sua violação". Isso porque embora o direito de imagem não possua caráter patrimonial, o seu titular possui o direito de usar e dispor de sua própria imagem de forma onerosa ou não, obstando a sua reprodução indevida por terceiros. Como ninguém pode abrir mão de sua própria imagem, por esta ser inerente à própria existência do ser humano, individual e coletivamente determinado, cabe apenas ao seu titular o ato voluntário e livre de permitir o uso de sua imagem por terceiros, estando ciente de seus usos.
O Código Civil garante, em seu artigo 20, que a utilização da imagem de uma pessoa pode ser proibida, a seu requerimento, se lhe atingir a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se for usada para fins comerciais sem a autorização do seu titular (salvo se necessário à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública). Com relação à indenização por dano moral decorrente do uso indevido, a doutrina e jurisprudência dominante têm entendido que, para configurar o dano moral, é preciso verificar, no caso concreto, se a utilização de imagem sem autorização do titular fere a sua honra, boa fama ou a respeitabilidade. Tal dano é presumido, no entanto, quando do simples uso da imagem não autorizada de terceiros com intuito lucrativo, conforme entendimento do STJ por meio da Súmula 403, de 2009: "independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais"3.
Com o advento da lei geral de proteção de dados pessoais - LGPD (lei 13.709/18), o direito à proteção de dados pessoais passou a ser incorporado à concepção de direitos da personalidade, uma vez que a personalidade engloba o conjunto de características que distinguem uma pessoa das demais. A LGPD estabelece claramente que todo tratamento de dados pessoais deve ter uma base legal nos termos do artigo 7º ou do artigo 11, dependendo se os dados pessoais em questão são apenas dados pessoais ou incluem dados pessoais sensíveis. Podendo a imagem ser considerada um dado pessoal, dependendo do contexto em que é capturada, existem algumas bases legais que podem justificar o seu uso. Destacamos as seguintes: (i) consentimento do titular de dados, (ii) execução de um contrato ou (iii) legítimo interesse do agente responsável pelas decisões do tratamento de dados pessoais (controlador).
A determinação da base legal adequada para o tratamento de dados pessoais implica considerar o tipo de dado coletado, o titular dos dados, a forma de coleta, a finalidade e o contexto em que os dados estão inseridos.
O consentimento pode ser a base legal apropriada quando, por exemplo, uma Organização de assistência social promove um evento comunitário com o objetivo de arrecadar fundos e conscientizar sobre a importância da solidariedade e, durante o evento, capta em fotografias e vídeos das atividades, a imagem de voluntários e membros da comunidade para serem utilizadas em suas ações de divulgação e prestação de contas.
A execução de contrato pode ser a base legal quando uma Organização que atua na promoção da igualdade de gênero promove campanha de conscientização mediante a contratação de atrizes e mulheres reais para transmitir a mensagem e educar a sociedade sobre os direitos das mulheres. A escolha desta base legal é a mais adequada, uma vez que a imagem, dizeres e afirmações fornecidas pelas pessoas constituem os elementos essenciais da atividade principal delineada no contrato firmado com as mulheres retratadas na campanha. Em outras palavras, sem a utilização desses componentes, a própria essência da campanha fica comprometida e inviabilizada.
Por fim, o legítimo interesse do agente responsável pelas decisões do tratamento de dados pessoais pode ser a base legal quando uma Organização de preservação ambiental realiza uma campanha de limpeza de praias, registrando fotos e vídeos das atividades dos voluntários e suas interações com o ambiente marinho. A organização utiliza essas imagens e vídeos em suas ações de conscientização sobre a importância da conservação dos ecossistemas marinhos, baseando-se em seu legítimo interesse em proteger o meio ambiente e engajar a sociedade em práticas sustentáveis.
No entanto, é importante levar em consideração que, no contexto de algumas OSCs, a divulgação de imagens no âmbito de alguns de seus projetos pode levar à geração de inferências sobre dados pessoais sensíveis (gênero, classe social, deficiência, entre outros) devido à associação da imagem do titular à missão social da OSC. Tendo a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental de toda análise de captação da imagem, e considerando o propósito das atividades das instituições, é necessário refletir sobre o teor de dados pessoais sensíveis para o seu tratamento relacionado à captura e uso de imagens de pessoas identificáveis. Ao adotar essa abordagem, a entidade assegura uma postura responsável e respeitosa ao lidar com dados pessoais sensíveis, em sintonia com o objetivo primordial das OSCs de impulsionar transformações benéficas na sociedade. Ao mesmo tempo, preserva os direitos essenciais e a privacidade dos envolvidos.
Nesse contexto, as hipóteses legitimadoras para o tratamento da imagem se tornam mais restritas, uma vez que o legítimo interesse não constitui base legal para o tratamento de dados sensíveis pois não consta como opção legitimadora no art. 11 da LGPD. Ao analisar as possíveis relações existentes entre a organização e o titular de dados, e compreendendo que grande parte das imagens será coletada como resultado das ações promovidas pelas OSCs, e não como objetivo principal da operação, o consentimento se apresenta como base legal mais adequada e para o tratamento desses dados4.
Tal consentimento para autorizar um determinado tratamento de dados pessoais deve ser entendido como um exercício da autonomia privada da pessoa que terá a sua imagem e voz captada e veiculada. Nesse sentido, o consentimento representa, primeiramente, uma condição de acesso, na esfera privada, à imagem, por meio do poder de autodeterminação de seu titular (que autoriza ou não a sua captação). Por outro lado, o consentimento também é a regra que garante legitimação para a circulação desta imagem na esfera pública (que autoriza ou não a sua publicação)5. Por isso, o termo de autorização de uso de imagem, nome e voz, que veicular dados sensíveis tem que estar amparado no consentimento coletado de forma livre, inequívoca, informada, expressa, destacada e para uma finalidade específica. A autorização deve ser entendida de forma estrita, não podendo abarcar finalidades diversas das informadas ao titular de dados e não ser utilizada por prazo superior ao que foi pactuado e permitido por lei.
No dia a dia da atuação das OSCs, ainda há uma série de dúvidas referentes à obtenção do consentimento que envolvem uma análise concreta caso a caso. Tomemos como exemplo a publicação de fotografias e vídeos de um evento institucional de um projeto nas redes sociais da organização. As imagens captadas durante eventos públicos podem, a depender do contexto, se enquadrar nas excludentes que permitem a disposição da imagem sem anuência do titular, quando obtidas em locais públicos ou eventos de interesse coletivo, em que a pessoa retratada é apenas parte do cenário, sem destaque, pois a finalidade da captura da imagem é divulgar o evento e não a pessoa. Além disso, se a captura da imagem for de uma multidão, sem a efetiva identificação das pessoas, não é aplicável a LGPD e não é necessário coletar o consentimento dos titulares da imagem. Ainda se for possível identificar as pessoas, a jurisprudência tem entendido que o uso de imagem de multidão para ilustrar manifestação político-ideológico - isto é, com divulgação de dados pessoais sensíveis - quando ocorrida em local público não configura dano moral, quando não houver finalidade comercial6.
A jurisprudência também tem entendido pela existência de autorização tácita para veiculação da imagem quando as pessoas posam para fotos em eventos, porém, sem balizar com o entendimento da LGPD quanto à proteção da imagem enquanto dado pessoal e dado pessoal sensível. Recentemente, o TJ/RJ reconheceu que a simples captura da imagem de uma família recebendo cesta básica em sua casa e posterior postagem em redes sociais da Igreja Universal do Reino de Deus, sem prévia autorização, não violou a honra das pessoas cuja imagem foi retratada, porque haveria autorização tácita dos autores da ação, que posaram para a foto e frequentavam a igreja, tendo ciência das práticas e permitiram a captura da imagem7.
Em casos como esse, ainda que a conduta da organização não enseje a indenização por danos morais, é preciso levar em conta a proteção dos direitos dos titulares que se beneficiam e confiam na atividade da OSC. Assim, quando a divulgação de uma imagem tiver potencial de gerar discriminação social perante terceiros, a melhor estrutura para mitigar riscos consiste na coleta da autorização e do consentimento previamente à captura e veiculação pública da imagem, indicando as finalidades do uso. Isso porque a autorização do uso de imagem não se esgota no momento da captação da imagem, mas abrange a sua finalidade de uso.
Ainda, como os direitos da personalidade são indisponíveis e a concessão de autorização é um ato jurídico unilateral, pode o titular posteriormente impedir a circulação da imagem revogando o seu consentimento. Assim, a LGPD veio para trazer maior entendimento sobre o exercício do direito de imagem, de forma que, nos casos do tratamento de dados fundado na base do consentimento, a sua revogação é um dos direitos do titular de dados8, podendo ser exercido a qualquer tempo e devendo ser atendido pelo controlador. O direito de revogação do consentimento é baseado na própria proteção dos direitos da personalidade, da capacidade da pessoa em determinar livremente a construção de sua esfera privada e desenvolvimento da sua personalidade9.
Há várias "zonas cinzentas" com relação à utilização de imagens pelas organizações da sociedade civil, o que deve ser entendido caso a caso, a partir do princípio da proporcionalidade. Conforme vimos, o consentimento para a coleta e uso da imagem do titular geralmente é dispensado quando há a salvaguarda de um direito difuso e coletivo, de acesso à informação, que se sobrepõe ao direito de imagem. E, quando o consentimento é recomendável, é preciso ponderar o direito dos titulares em revogar a sua autorização frente aos direitos da OSC em manter público o material em que a imagem está veiculada, pois a revogação do consentimento pode acarretar implicações negativas e onerosas para organizações que até então estavam legitimadas ao tratamento de dados pessoais.
Ademais, as OSCs não possuem controle das reproduções da imagem por terceiros, em outros servidores. Por isso, entendemos que o exercício do direito de revogação do consentimento está limitado tecnicamente à retirada da imagem nos materiais produzidos posteriormente ao exercício do direito de revogação.
Ainda cabe maior clareza sobre este aspecto, demandando regulamentações específicas com relação aos efeitos da revogação do consentimento para tratamento de dados pessoais referentes à imagem. Por fim, ao obter o consentimento dos titulares com relação ao uso de imagens, as OSCs também devem se atentar ao grau de necessidade da utilização da imagem para o fato informado, a preservação do contexto originário onde a imagem foi captada, o grau de identificação e consciência do retratado com relação às finalidades do uso de sua imagem e a extensão em que a imagem será exposta.
Em resumo, a proteção da imagem e voz nas atividades das OSCs é um delicado equilíbrio entre os direitos individuais e o bem coletivo, exigindo cuidado e respeito às nuances de cada situação para garantir uma atuação responsável e alinhada com os princípios da LGPD e dos direitos da personalidade.
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1 De acordo com o artigo 11 do Código Civil de 2022: "Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária".
2 BAPTISTA, Fernando Mathias; VALLE, Raul Silva Telles. Os povos indígenas frente ao direito autoral e de imagem. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004, p.44.
3 Tal indenização por danos morais pode, ainda, ser cumulada com indenização por dano material, quando o uso indevido da imagem acarretar prejuízos econômicos ao titular (ex. ausência de retribuição monetária pelo uso comercial da imagem, perda de emprego, entre outras hipóteses a serem analisadas no caso concreto).
4 Art. 11 da LGPD: "O tratamento de dados pessoais sensíveis somente poderá ocorrer nas seguintes hipóteses: I - quando o titular ou seu responsável legal consentir, de forma específica e destacada, para finalidades específicas".
5 DONEDA, Danilo César Maganhoto. Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da formação da Lei Geral de Proteção de Danos. Rio de Janeiro: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 296.
6 STJ. Terceira Turma. REsp 1.449.082/RS. Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino. DJe: 27/3/17.
7 Processo No: 0008092-46.2020.8.19.0006, TJ-RJ, Acórdão: 25/03/2022.
Erika Bechara
Sócia de Szazi Bechara Storto Reicher Figueiredo Lopes Advogados. Professora de Direito Ambiental da PUC/SP. Coordenadora Assistente do Curso de Especialização em Direito Ambiental e Gestão Estratégica da Sustentabilidade da COGEAE - PUC/SP. Mestre e Doutora em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP.
Beatriz de Oliveira Moraes
Pesquisadora do Instituto Liberdade Digital, Advogada formada pelas FMU, pós graduanda em Direito Internacional Aplicado pela EBRADI e em Direito Digital pelo Mackenzie.