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A nova lei de licitações: introdução aos aspectos criminais

O presente artigo obviamente não esgota o tema, ao qual pretendo voltar para a análise dos crimes em espécie.

domingo, 24 de setembro de 2023

Atualizado em 21 de setembro de 2023 14:49

O advento da lei 14.133, de 1º de abril de 2021, trouxe significativas e importantes novidades no regime das licitações, notadamente em relação aos tipos penais e às penas agora ali elencadas.

De início, saliento que, embora a vigência única do novo diploma legal estivesse prevista para se iniciar em 01 de abril de 2023 (a partir de quando não mais seria possível a utilização da Lei 8.666/93), em razão da Medida Provisória 1.167/2023, a validade da lei anterior se estenderá até o dia 30 de dezembro do presente ano.           

Pese, como já dito, possa até o final do ano o gestor escolher a modalidade legal a ser seguida - Lei 8.666/93 ou Lei 14.133/21- , o mesmo não acontece com os aspectos criminais que incidem na espécie, porque, em matéria penal, a nova lei já está em vigor desde a sua promulgação (1º de abril de 2021).

Embora a nova legislação tenha revogado totalmente a antiga, a maioria dos tipos penais repetem o modelo anterior, razão pela qual não há que se falar em abolitio criminis. Pelo contrário, as penas agora previstas são muito mais gravosas, fato que obriga o intérprete a que leve em conta o princípio constitucional da ultratividade da norma mais branda, para os crimes cometidos antes da vigência do novel diploma legal (Art. 5º, inciso XXXIX da CF).

Mudança também significativa se deu no âmbito da localização topológica dos tipos penais, os quais, por força do art. 178 da Lei de licitações, deixaram de existir na legislação esparsa e passaram a integrar o Título XI da Parte Especial do Código Penal, sob a rubrica de "Crimes praticados por particular contra a administração pública em geral" (Capítulo II-B), definição que tem como consequência lógica o fato de se tratar aqui de crimes comuns, porque podem ser praticados por qualquer pessoa (não se exige nenhuma condição especial do agente - ser funcionário público, por exemplo).

Demais disso, o legislador, de modo equivocado na minha opinião, agravou as penas desproporcionalmente, estabelecendo a reprimenda de alguns crimes entre quatro e oito anos de reclusão e multa. O objetivo claro de tal movimento foi o de não permitir venha a ser proposto aos acusados o acordo de não persecução penal, medida desencarceradora e saudável, prevista no art. 28-A do CPP, que tem por objetivo permitir aos réus primários, em crimes sem violência ou grave ameaça, com pena mínima inferior a quatro anos, que possam evitar o processo, desde que componham com o MP, em especial no que diz respeito à recomposição dos danos.

Foi criado um novo tipo penal, o qual está previsto no art. 337-O, agora do CP, cujo nome é "Omissão grave de dado ou de informação por projetista", com pena de seis meses a três anos de reclusão e multa. Apesar da denominação, o tipo penal inclui também a possibilidade de ser o delito praticado por meio de ação, desde que esta seja tendente "a modificar ou entregar à Administração Pública levantamento cadastral ou condição de contornoem relevante dissonância com a realidade, em frustração ao caráter competitivo da licitação ou em detrimento da seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública". Por força do princípio da anterioridade da lei penal - não há crime sem lei anterior que o defina -, previsto no art. 1º do CP e no inciso XXXIX do art. 5º da CF, a nova tipificação obviamente não retroage para atingir ações praticadas antes do advento da nova lei.

A pena de multa está regulada no art. 337-P, o qual disciplina que esta terá seu cálculo submetido à metodologia prevista no Código Penal, mas não poderá ser inferior a dois por cento do valor contratado.

Aqui reside prova de enorme desconhecimento por parte do legislador acerca do método utilizado pelo CP para o cálculo da pena de multa. Isto porque, no sistema do Código, tem-se como limites o mínimo de dez e o máximo de trezentos e sessenta dias-multa (art. 49). O dia-multa é fixado a partir das condições pessoais do condenado e não pode ser menor do que um trigésimo do salário mínimo (um dia de trabalho de quem recebe o salário mínimo) e nem maior do que cinco vezes esse salário (§1º do art. 49). Como se vê, a opção do legislador é desalentadoramente equivocada, na medida em que não existe qualquer possibilidade de convivência entre o critério adotado pelo CP - sistema dias-multa (trifásico) - e a previsão de que a multa não pode ser inferior a dois por cento do valor licitado, como quer a nova Lei de licitações.

Para tentar achar o que ele chama de "uma saída honrosa" para essa contradição, o Mestre Cezar Bitencourt (Direito penal das licitações, Saraiva. 7ª ed. rev. ampl. atual. 2021, pag. 384) propõe a seguinte solução: tomar-se-ia dois por cento do valor do contrato fraudado e dividir-se-ia o resultado por trezentos e sessenta (máximo de dias-multa permitido pelo sistema do CP) - o resultado dessa operação seria considerado o valor do dia-multa. Como o art. 49 do CP prevê que a pena de multa mínima deve ser de dez dias-multa e não pode exceder a trezentos e sessenta, basta que se multiplique o valor do dia-multa a que se chegar a partir de tal raciocínio a) por dez, e se terá a pena mínima; b) por 360, e aí estará o máximo permitido.

Finalmente, importa se diga que todos os crimes licitatórios têm como elemento subjetivo o dolo, qual seja a vontade livre e consciente de praticar o fato típico, não se conformando a figura penal com a mera tipicidade formal e nem com a modalidade culposa (imprudência, negligência ou imperícia).

Em suma, a teor da Lei 14.133/21: a) o gestor pode, até o final do ano, escolher por qual das duas leis realizará o certame, mas, em matéria penal, a nova disposição legal é a única em vigência desde a 01/04/21; b) não há abolitio criminis, porque os tipos penais, em geral, repetem a configuração da Lei revogada; c) foi incluído um novo tipo penal (Art.337-O); d) as penas foram exagerada e desproporcionalmente aumentadas; e) os tipos foram todos transportados para o Código Penal (Título XI da Parte Especial, Capítulo II-B, sob a rubrica de "Crimes praticados por particular contra a administração pública em geral" - crimes comuns, portanto); f) a pena de multa encerra enorme incongruência, na medida em que tenta harmonizar o sistema do CP (dias-multa) com a exigência de um percentual mínimo do valor do contrato fraudado (dois por cento); g) todos os crimes são dolosos.

O presente artigo obviamente não esgota o tema, ao qual pretendo voltar para a análise dos crimes em espécie.

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1 § 1º Consideram-se condição de contorno as informações e os levantamentos suficientes e necessários para a definição da solução de projeto e dos respectivos preços pelo licitante, incluídos sondagens, topografia, estudos de demanda, condições ambientais e demais elementos ambientais impactantes, considerados requisitos mínimos ou obrigatórios em normas técnicas que orientam a elaboração de projetos.

César Peres

César Peres

Advogado criminalista, especialista em direito penal e processual penal. Mestre em direito. Conselheiro seccional da OAB/RS. Ex-presidente da ACRIERGS e da ANACRIM-RS

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