Prazo de validade das normas processuais penais
Contribuições para a revogação tácita dos restos inquisitoriais do Código de Processo Penal Brasileiro (ou da interpretação do Processo Penal à luz da Constituição e dos Tratados de Direitos Humanos).
quarta-feira, 20 de setembro de 2023
Atualizado às 14:36
No âmbito do direito processual penal brasileiro, ocorre uma considerável divergência de opiniões em relação ao sistema vigente. Enquanto, por exemplo, o artigo 129, inciso I, da Constituição Federal (CF) de 1988 confere ao Ministério Público a responsabilidade exclusiva de iniciar a ação penal pública, o artigo 156 do Código de Processo Penal (CPP) enumera todas as situações em que o juiz pode solicitar provas de sua própria iniciativa. A maioria da doutrina interpreta que o sistema adotado no Brasil é o acusatório, uma vez que as leis secundárias devem estar em conformidade com a Constituição. No entanto, existem vários artigos de natureza inquisitorial no Código de Processo Penal Brasileiro.
Como ora noticiado em larga escala, ao longo das últimas semanas, o STF, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 6298, julgou-a parcialmente procedente, para, por maioria, atribuir interpretação conforme ao art. 3º-A do CPP, incluído pela lei 13.964/19, para assentar que o juiz, pontualmente, nos limites legalmente autorizados, pode determinar a realização de diligências suplementares, para o fim de dirimir dúvida sobre questão relevante para o julgamento do mérito. O magistrado não pode ter uma atuação de protagonista na produção probatória, ainda que não esteja satisfeito com a atuação da defesa ou acusação.
Sendo assim, podemos dizer que o sistema vigente no processo penal brasileiro é o acusatório, de acordo com a lei, a Constituição e a Convenção Americana de Direitos Humanos. Correto? Nem tanto. Como já mencionado, existem diversos artigos de natureza inquisitorial no CPP, os quais teimam em fornecem ao magistrado importantes instrumentos de investigação para a busca do mito da verdade real1.
Partindo desta premissa, faz-se necessária uma breve explicação acerca do sistema inquisitório e acusatório - este que tem raízes que se estendem ao direito romano e à tradição jurídica germânica; e enfatiza a separação de papéis entre as partes: acusação e defesa. Tal sistema garante a imparcialidade e a efetivação do contraditório ao atribuir ao juiz um papel passivo na coleta de provas, conferindo às partes a responsabilidade de sustentar suas alegações. O sistema inquisitório, por sua vez, concentra poderes investigativos e decisórios nas mãos do magistrado. Neste sistema, o juiz desempenha um papel ativo na busca da verdade, frequentemente desconsiderando a tradicional separação entre acusação e defesa. Isso, por vezes, levanta preocupações sobre a imparcialidade e o devido processo legal.
Como explicam CASARA e TAVARES2: "[...] a cultura entre acusador e juiz é uma característica historicamente ligada ao fenômeno da inquisição e à epistemologia autoritária. No momento em que o juiz protofascista se confunde com a figura do acusador e passa a exercer funções como a de buscar confirmar a hipótese acusatória, surge um julgamento preconceituoso, com o comprometimento da imparcialidade. Tem-se, então, o primado da hipótese sobre o fato. A verdade perde a importância diante da 'missão' do juiz, que aderiu psicologicamente à versão acusatória"
Neste sentido, entendemos que existem artigos do CPP que não coadunam com a redação dada pelo artigo 3º-A, ora mencionado, sob pena de se incorrer no seu esvaziamento3. Primeiramente, analisemos o artigo 156 do CPP4, que concede ao juiz a prerrogativa de ordenar diligências adicionais para esclarecer pontos cruciais ao proferir sua decisão. Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal, em vez de revogar o artigo 156 do CPP, devido à sua incompatibilidade com o artigo 3º-A, optou por mantê-lo em vigor no sistema jurídico, porém com restrições nos efeitos introduzidos pela Lei nº 13.964/19. Desta forma, tal prerrogativa se mantém, mas em caráter excepcional e sobre pontos relevantes e urgentes.
Mas não é só. O artigo 3855 é um exemplo claro do resto inquisitorial no Código de Processo Penal, e, apesar de o entendimento proferido pela 6º Turma do Superior Tribunal de Justiça no REsp 2.022.4136 ser em sentido contrário, verificamos sua incompatibilidade com o sistema acusatório. Como bem disse o Ministro Sebastião Reis, ora vencido em votação: "É óbvio que, se ao longo da instrução perante a autoridade judicial se convencer o Ministério Público, titular único da ação penal, de que não existem elementos suficientes para indicar a responsabilidade do réu, não há lógica que, diante do sistema acusatório que predomina no processo penal, possa o juiz do feito decidir contra a vontade do dono da ação".
Neste mesmo traço inconstitucional seguem os artigos 2097 e 2428, ambos do CPP, os quais possibilitam ao juiz (i) ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes e (ii) determinar busca e apreensão quando achar conveniente. Estas possibilidades disponibilizadas ao magistrado parecem soar ilógicas quando o filtro é o sistema acusatório, pois tratam-se de escolhas ativas na relação jurídica do processo penal. Cremos, no entanto, que o art. 242 deve ser interpretado em consonância com o art. 282, § 2º, segundo o qual "as medidas cautelares serão decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público" (grifos nossos).
Ao que parece, a vigência destes artigos tem hora marcada, pois a instituição definitiva do sistema acusatório no processo penal brasileiro não resulta em (quase) nada se não for feita por completo. É necessário que se reconheça a completa dissonância dos artigos mencionados com o sistema acusatório, sob pena de cairmos no limbo do sistema misto9. Concluímos com a marcante lição de LOPES JR.10: "É preciso que cada um ocupe o seu 'lugar constitucionalmente demarcado (clássica lição de Nelson Miranda Coutinho), com o MP acusando e provando (a carga probatória é dele), a defesa trazendo seus argumentos (sem carga probatória) e o juiz julgando. Simples? Nem tanto, basta ver que a estrutura inquisitória e a cultura inquisitória (fortíssima) faz com que se resista a essa estrutura dialética por vários motivos históricos, entre eles o mito da 'busca da verdade real' e o anseio mítico pelo juiz justiceiro, que faça justiça mesmo que o acusador não produza prova suficiente".
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1 Sobre este tema, recomendamos ler: PORTO ROSA, Gabriela. A Construção da Verdade no Processo Penal. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2015, p. 8.
2 TAVAREZ, Juarez; CASARA, Rubens. Prova e Verdade. São Paulo, Tirant lo Blanch, 2020, p.13.
3 Sobre a crítica ao desinteresse pelas técnicas garantidoras: BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 11ª edição, março de 2007, p.11.
4 Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I - ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida. II - determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.
5 Art. 385. Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada.
6 Recurso Especial nº2.022.413 - PA (2022/0035644-0). Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior. STJ, 6ª Turma. 2022.
7 Art. 209. O juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes.
§ 1o Se ao juiz parecer conveniente, serão ouvidas as pessoas a que as testemunhas se referirem.
8 Art. 242. A busca poderá ser determinada de ofício ou a requerimento de qualquer das partes.
9 COUTINHO, Jacinto. Introdução aos Princípios Gerais do Processo Penal Brasileiro. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, Nota Dez Editora, n.1, 2001.
10 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. Saraiva Jur. 20ª Edição. 2023. p. 20.
João Paulo Martinelli
Advogado Criminalista, Consultor Jurídico e Parecerista; Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP, com pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra; Autor de livros e artigos jurídicos; Professor.
Gustavo Bezerra de Oliveira
Acadêmico de Direito