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O que é a personalidade em avaliação psicológica pericial?

Procedimentos periciais devem ter: objetivo definido, planejamento coerente com as características de cada periciando (faixa etária, escolaridade), validação pelo SATEPSI, e atendimento à demanda judicial para esclarecimento dos pontos controvertidos.

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Atualizado às 15:02

Em meus artigos, eu sempre abordo a questão da Avaliação Psicológica pericial, e frequentemente falo de aspectos relevantes que devem ser destacados, e que serão úteis para o advogado, MP e decisão judicial, certo? Mas, quando eu falo em aspectos da personalidade das pessoas envolvidas, o que isso quer realmente dizer?

Quando eu pergunto, nos meus quesitos, sobre aspectos de personalidade relevantes para o esclarecimento da demanda judicial (em disputa de guarda, identificação da alienação parental, abandono afetivo, curatela, etc.), não me refiro à totalidade da personalidade, mas sim, especificamente, a aqueles aspectos que são mais importantes para a compreensão dos comportamentos daquela pessoa (Ex.: Por que resolver acusar falsamente o outro? Por que abusou sexualmente da criança? O sofrimento psíquico, decorrente da violência doméstica, ou do abandono afetivo, está afetando quais aspectos da vida daquela pessoa? Nesse caso, a pessoa está desenvolvendo estratégias de resiliência?). Além disso, devem ser sintéticos e relevantes para o convencimento do juiz, daí a necessidade de serem laudos breves e objetivos, sem jargões ou termos técnicos, e ir diretamente ao ponto das questões controvertidas.

Nesse sentido, é importante esclarecer o que se entende por 'personalidade', e quais são os aspectos que costumam ser úteis para o entendimento judicial.

A análise sistemática da personalidade é historicamente um tópico de grande relevância no âmbito da psicologia, tendo, nos últimos anos, recebido especial destaque a discussão acerca das suas dimensões principais (SILVA e NAKANO, 2011). Diferentes abordagens dedicaram-se ao estudo da personalidade (ALLPORT, 1973; HALL et al., 2000; PERVIN, 1978). Dentre as significativas contribuições advogou-se que o nível mais proveitoso de estudo para a personalidade é o traço, dando origem a uma nova maneira de refletir acerca deste construto, considerando os traços de personalidade como predisposições a responder igualmente ou de um modo semelhante a tipos diferentes de estímulos, ou seja, formas constantes e duradouras de reagir ao ambiente (PERVIN, 1978). Suas características seriam de individualidade, natureza real, determinação do comportamento, ser passível de demonstração empírica e possuir variações situacionais e interrelacionais. Neste sentido, o traço pode ser empregado para resumir como as pessoas são ou se comportam no seu dia-a-dia (SCHULTZ e SCHULTZ, 2002; HUTZ et al., 1998).

Dos modelos que vêm sendo propostos, o OCEAN (abertura, conscienciosidade, extroversão, sociabilidade e neuroticismo) propõe cinco dimensões da personalidade, baseando-se na análise fatorial de uma série de questionários (PERVIN, 1978). O Big Five, modelo no qual também se baseou este estudo, vem ganhando destaque na literatura sobre a estrutura da personalidade, e tem se mostrado adequado, apresentando um poder de síntese satisfatório e contando com estudos a respeito no Brasil, (NUNES e HUTZ, 2002 apud ÁVILA e STEIN, 2006) evidenciando a existência de dimensões básicas da personalidade (SISTO, 2019).

Ademais, os autores reconhecem a importância dos contextos para explicar por que uma pessoa não se comporta da mesma maneira o tempo todo. Considera-se que tanto os traços quanto o contexto são necessários para entender o comportamento humano. Os traços são o que melhor explicam a coerência dos comportamentos enquanto as situações explicam a variabilidade destes (SISTO, 2019, cit.). O modelo comumente utilizado em Avaliação Psicológica é o dos Cinco Grandes Fatores (também conhecida como Big Five), embasado na proposta de McRAE e COSTA (1987).

AVIA e SÁNCHEZ (1995, apud SISTO, 2004) destacam que as experiências precoces com determinadas emoções (alegria, tristeza e decepção, por exemplo) facilitariam a ocorrência de condutas que, se repetidas, podem ser convertidas em traços. Existem instrumentos apropriados para avaliar crianças, adolescentes e adultos, conforme a abordagem do Big Five, objetivando estabelecer correlação positiva entre medo e tristeza: a tristeza é diluída pelo viver o dia a dia, caracterizando-se muito mais como uma fase passageira no fluxo natural dos sentimentos; mas, se houver um fato que cause no indivíduo uma ameaça contínua, concreta ou futura (antecipada, que cause ansiedade), ocorrem sensações de medo e quando isso se intensifica, cria-se uma ruptura no fluxo dos sentimentos, caracterizando a depressão.

Para EYSENCK e EYSENCK (1985, p.24), a personalidade é "[...] uma organização mais ou menos estável e duradoura do caráter1, temperamento2, intelecto e físico de uma pessoa, que determina sua adaptação única ao ambiente". Para este autor, a execução de um ato seria registrada no sistema nervoso e, no futuro, nenhum traço seria exatamente o mesmo em razão da interação de informações. No entanto, a própria história e a interação com o passado e o presente impossibilitariam mudanças intensas e drásticas, predispondo a pessoa a tendências ou disposições, mantendo a personalidade constante e estável, mesmo diante de uma diversidade de situações.

O questionário de EYSENCK e colaboradores lida com aspectos comportamentais e não constitucionais da personalidade, caracterizando tendências com possibilidades de mudanças, como produto das interações do indivíduo com o meio social. Utiliza o modelo do Big Five que será descrito oportunamente.

GASPARETTO, BANDEIRA e GIACOMONI (2016) mencionam pesquisas que entendem que as interações sociais do indivíduo vão estruturando a personalidade desde a infância, e que a idade de cinco a sete anos é um importante período do desenvolvimento durante o qual maiores mudanças cognitivas têm sido vinculadas com mudanças na capacidade auto-representacional, o que facilitaria o processo avaliativo das crianças.

Para MANSUR, FLORES-MENDOZA e ABAD (2010), os pesquisadores do desenvolvimento têm explorado a possibilidade de que a estrutura da personalidade na infância possa compartilhar significativas similaridades com a estrutura dos traços na idade adulta, e para isso utilizam instrumentos embasados no modelo descritivo do Big Five (os Cinco Fatores de personalidade: neuroticismo, extroversão, cordialidade, responsabilidade e abertura a experiências) para verificar essa correlação entre a personalidade infantil e a adulta. ANGLIM e GRANT (2014, apud NORONHA et al., 2015) apontam evidências de que os fatores de personalidade Extroversão, Socialização e Neuroticismo predizem o bem-estar subjetivo, sendo que o fator Extroversão está fortemente correlacionado com o afeto positivo, e Neuroticismo tem sido associado com baixa satisfação de vida e afeto negativo.

Para FREITAS (In: BORSA et al., 2022), o bem-estar psicológico refere-se ao desenvolvimento humano, no que tange aos desafios existenciais da vida e ao alcance pleno do funcionamento psicológico. Maiores níveis de bem-estar psicológico têm sido apontados como fatores protetivos à saúde do indivíduo. As dimensões que compõem o bem-estar psicológico são:

  • Autoaceitação: compreender e aceitar os múltiplos aspectos da personalidade e desenvolvê-la de forma saudável;
  • Relações positivas com os outros: possuir vínculos positivos com outras pessoas, sendo capaz de desenvolver empatia, afeição e intimidade;
  • Autonomia: possuir clareza de seus critérios pessoais e habilidades para autorregular seus comportamentos;
  • Domínio do ambiente: ter habilidades para gerenciar o contexto em que vive;
  • Propósito na vida: ter clareza de seus objetivos de vida;
  • Crescimento pessoal: buscar o seu desenvolvimento pessoal de forma contínua.

Enfim, é imprescindível que as avaliações psicológicas periciais exijam do profissional conhecimentos de psicologia do desenvolvimento, a abordagem teórica da personalidade (no caso, Cognitivo-comportamental), psicologia da família. Usualmente o psicólogo utiliza a entrevista investigativa, fundamentada nos princípios da entrevista cognitiva, que apresenta como objetivo ajudar o entrevistado a recordar o maior número de informações, assim como gerar maior número de detalhes corretos sem aumentar o número de detalhes incorretos ou fabricados.

Quanto ao uso de instrumentos (testes, escalas, inventários), também podem ser feitos pela abordagem cognitiva, ou pela psicanalítica, conforme a proposta do autor do instrumento. De qualquer forma, os procedimentos periciais devem ter: objetivo definido, planejamento coerente com as características de cada periciando (faixa etária, escolaridade), validação pelo SATEPSI, e atendimento à demanda judicial para esclarecimento dos pontos controvertidos (SILVA, 2023).

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1 Caráter: julgamento de valor, conotação de aceitabilidade moral.

 

2 Temperamento: interações químicas nas quais se desenvolve a personalidade, sendo de origem hereditária.

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ALLPORT, G.W. Personalidade: padrões e desenvolvimento. São Paulo: EPU, 1973.

ANGLIM, J.; GRANT, S. Predicting psychological and subjective well-being from personality: incremental prediction from 30 facets over the big 5. Journal of Happiness Studies, 15(5), 2014. doi: 10.1007/s10902-014-9583-7, apud NORONHA, A.P.P.; MARTINS, D.F.; CAMPOS, R.R.F.; MANSÃO, C.S.M. Relações entre afetos positivos e negativos e os cinco fatores de personalidade. Estudos de Psicologia. Natal, v. 20, n. 2, p. 92-101, abr./jun. 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/epsic/a/BCxXxTnPzgWJS6nGRj5Jq6r/?format=pdf&lang=pt.

AVIA, M.D.; SÁNCHEZ, B.M.L. Personalidad: aspectos cognitivos y socialesMadrid: Ediciones Pirámide S.A., apud SISTO, F.F. Traços de personalidade de crianças e emoções: evidência de validade. Paidéia. Ribeirão Preto, v. 14, n. 29, p. 359-369, 2004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/paideia/a/YBtsp3TTrBXMJv6hPyZLDdx/?format=pdf&lang=pt.

EYSENCK, H.J.; EYSENCK, S.B.G. Personality and individual differences: A natural science approach. New York: Plenum Press, 1985.

FREITAS, C.P.P. Bem-estar. In: BORSA, J.C.; LINS, M.R.C.; ROSA, H.L.R.S. (orgs.) Dicionário de Avaliação Psicológica. São Paulo: Vetor, p.182-184, 2022.

GASPARETTO, L.G.; BANDEIRA, C.; GIACOMONI, C.H. Bem-estar subjetivo e traços de personalidade em crianças: uma relação possível? Trends in Psychology. Sociedade Brasileira de Psicologia, v. 25, n. 2, p. 447-457, 2016. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v25n2/v25n2a03.pdf.

HALL, C.S.; LINDZEY, G.; CAMPBELL, J.B. Teorias da personalidade. Porto Alegre: Artmed, 2000.

HUTZ, C.S.; NUNES, C.H.; SILVEIRA, A.D.; SERRA, J.; ANTON, M.; WIECZOREK, L.S. O desenvolvimento de marcadores para a avaliação da personalidade no modelo dos cinco grandes fatores. Psicologia: Reflexão e Crítica. Porto Alegre, v. 11, n. 2, p. 395-410. 1998. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/26362079_O_desenvolvimento_de_marcadores_para_a_avaliacao_da_personalidade_no_modelo_dos_cinco_grandes_fatores.

MANSUR-ALVES, M.; FLORES-MENDOZA, C.; ABAD, F.J.  Avaliação multi-informe do traço de neuroticismo em escolares. Estudos de Psicologia. Campinas, v. 27, n. 3, p. 315-327, jul.-set. 2010. Disponível em:  https://www.scielo.br/j/estpsi/a/zYFcrdwHZwB8GNCDgQ5M4zR/?format=pdf&lang=pt.

McRAE, R.R.; COSTA, P.T. Validation of the five-factor model of personality across instruments and observers. Journal of Personality and Social Psychology, v.52, n.1, p.81-90, 1987. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/19342018_Validation_of_the_five_factor_model_of_personality_across_instruments_and_observers/link/00b49515b9ad8a2fac000000/download

NUNES, C.H.S.S.; HUTZ, C.S. (2002). O modelo dos Cinco Grandes Fatores de personalidade. In: PRIMI, R. (org.). Temas em Avaliação Psicológica. Campinas: IBAP, p. 40-49, 2002 apud ÁVILA, L.M.; STEIN, L.M.  A influência do traço de personalidade neuroticismo na suscetibilidade às falsas memórias. Psicologia: Teoria e Pesquisa. Brasília, v. 22, n. 3, p. 339-346, set-dez 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ptp/a/HRskKtYYqG7VgrkVysjz4bq/?format=pdf&lang=pt.

PERVIN, L.A. Personalidade: teoria, avaliação e pesquisa.  São Paulo: EPU, 1978.

SCHULTZ, D.P.; SCHULTZ, S.E. Teorias da personalidade. São Paulo: Pioneira Thomson; 2002.

SILVA, D.M.P. Psicologia Jurídica e os aspectos processuais da perícia em Varas de Família. 6.ed. Juruá, 2023 (vai ser lançado em setembro/2023).

SILVA, I.B.; NAKANO, T.C. Modelo dos Cinco Grandes fatores da personalidade: análise de pesquisas. Avaliação Psicológica. Porto Alegre, v. 10, n. 1, p. 51-62, 2011. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/avp/v10n1/v10n1a06.pdf.

SISTO, F.F. Escala de Traços de Personalidade para Crianças (ETPC). 2. ed. São Paulo: Vetor, 2019.

Denise Maria Perissini da Silva

VIP Denise Maria Perissini da Silva

Psicóloga clínica e jurídica. Coord. PG Psic. Jur UNISA e UNIFOR. Colab. Comissões OAB/SP e "Leis & L.etras" Autora livros Psic. Jurídica. Perissini Cursos e Treinamentos S/C. Interprete LIBRAS.

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