A recuperação judicial da 123 Milhas e os médios e pequenos credores
A origem da crise, conforme relatado no pedido de RJ, estaria na cumulação de fatores internos e externos, os quais teriam sido responsáveis pelo aumento considerável do seu passivo nos últimos anos.
segunda-feira, 18 de setembro de 2023
Atualizado às 08:48
A RJ do Grupo 123 Milhas causou um forte abalo no mercado turístico e de passagens, devendo ser destacados dois pontos principais. Primeiro pela impressionante quantidade de credores, espalhados por todo o país, falando-se em setecentos mil, cujos nomes se encontram em uma lista com mais de 5.400 páginas, enviada pela recuperanda ao juízo competente.
Em segundo lugar porque a parte mais significantes dos créditos é de pequeno valor. Esses dois fatores tornam extremamente trabalhoso o desenvolvimento da RJ pelo Administrador Judicial e por quem mais tenha algum papel no seu andamento. Do lado dos médios e pequenos credores eles terão de verificar no quadro apresentado pela empresa se os seus créditos estão habilitados - e corretamente - bem como o valor correspondente. Infinitas disputas poderão surgir nessa área.
Conforme será desenvolvido neste artigo adianto que, a meu ver, a proteção dos interesses da verdadeira miríade de médios e pequenos credores daquela empresa - especialmente as pessoas físicas - somente se dará com um nível adequado se eles se organizarem, por exemplo, por meio de associações com um propósito específico voltado para tal finalidade.
Os maiores credores são bancos, os quais detêm uma posição privilegiada, uma vez que os seus créditos são suportados por garantias, fato que os coloca fora da concorrência que os demais interessados apresentarão em relação ao patrimônio da empresa. Não podem ser esquecidos os empregados, também situados em posição mais favorável.
Entre os credores pulverizados encontra-se uma significativa quantidade de fornecedores, de centenas de pequenos hotéis e de pousadas em diversas regiões do Brasil, de agências de turismo, dos negociadores de milhas, dos portadores de vouchers emitidos que poderão não ser honrados e que não conseguiram performar as suas passagens e vouchers. Ao lado desses está até mesmo o Google. O montante da dívida perante os credores quirografários, seguindo consta do pedido de RJ é de R$2.177.906,63, correspondendo proporcionalmente a 94% da dívida total, de R$2,3 bilhão.
Uma situação a ser analisada é relativa à posição dos sócios majoritários - que seriam os donos da empresa -, os quais são detentores de créditos originados de empréstimos que fizeram em favor daquela. Se do ponto de vista os seus créditos se revelarem regulares do ponto de vista jurídico, no plano moral certamente surgirão controvérsias. Há notícias de ações voltadas para o constrangimento do patrimônio daqueles sócios, com bloqueios de bens já efetuados, sem nos esquecermos de pedidos eventuais de desconsideração da personalidade jurídica daqueles para o fim da sua responsabilização pessoal.
A origem da crise, conforme relatado no pedido de RJ, estaria na cumulação de fatores internos e externos, os quais teriam sido responsáveis pelo aumento considerável do seu passivo nos últimos anos. Na verdade, à primeira vista, não se revelaram efetivos e duradouros os fundamentos econômicos da operação da 123 Milhas, tendo havido opiniões no sentido de que, na verdade, tratava-se de uma pirâmide financeira. Esta se sustentaria enquanto houvesse fluxo equilibrado no fornecimento dos seus produtos, tendo ele se deteriorado pela sua própria falta de sustentação econômica. Dessa forma os clientes eram suportados dentro de um pretendido sistema de moto contínuo, cujo combustível era fornecido pelos clientes que posteriormente ingressassem naquela cadeia, que se viu interrompida. Note-se a existência de inúmeros intermediários na operação de negociação de milhas, havendo entre eles aventureiros que prometeram aos adquirentes o ganho de lucros extraordinários, para tanto fornecendo o passo-a-passo do caminho a ser percorrido. Puro estelionato. No frigir dos ovos só ganhou, como sempre acontece em tais circunstâncias, quem comprou na baixa e vendeu na alta com a liquidação de suas posições.
Particularizemos o quadro, do qual faziam parte falhas no controle sobre o produto, correspondente a venda de passagens que seriam pagas no futuro com milhas, a preço mais baixos1. Estava presente no modelo um risco que envolvia apostar no preço futuro das milhas e das passagens, reajustando-se os preços de acordo segundo a realidade do mercado, sempre mutável. Para manter o equilíbrio da operação era necessário que fosse feito um ajuste fino dos preços, o que a empresa não conseguiu realizar. O texto usado aqui em referência revela que desde algum tempo a empresa esteve diante de indícios de que os preços das milhas se encontravam em ascensão nos meses anteriores da decisão de continuarem fazendo a aposta quanto a passagens promocionais a preços baixos, o que não aconteceu, pelo contrário
O termo aposta do parágrafo anterior significa que, ao nosso ver, o modelo idealizado pelos gestores da 123Milhas não se localizou no plano do risco, mas no da incerteza, próprio daquela. A diferença entre risco e incerteza está no fato de que no primeiro caso o evento negativo, digamos assim, é colocado dentro de uma estimativa muito próxima de sua ocorrência - calculada pelo recurso a modelos estatísticos -, do que decorre que, uma vez mensurado, é possível a quem o assume tomar as medidas adequadas de proteção, entre outras pelo recurso ao contrato de seguro.
No entanto, a modelagem utilizada pela 123Milhas se enquadrava, ao invés, no campo da incerteza, pois era impossível aquilatar o grau de sinistros relacionados ao objeto de sua atividade (a variação dos preços para mais), tantas eram as variáveis sobre os diversos fatores que afetavam o preço das milhagens e das passagens, todas elas fora do campo de controle da empresa. Dessa forma a sua atividade passou do risco para a incerteza, como tem se verificado, caracterizada no plano jurídico como jogo e aposta, termos dos artigos 814 a 817 do Código Civil.
Conforme visto, o valor declarado da dívida da empresa na RJ é de 2,3 bilhões sendo cerca de R$ 15 milhões de dívidas trabalhistas e R$ 92 milhões devidos a micro ou pequenas empresas que dividirão o ativo da empresa, certamente como credores quirografários, juntamente com o imenso rol dos credores restantes. Seu passivo deverá ser coberto pelo ativo existente - incluídos eventuais créditos a receber - e por dinheiro novo que possa ser aportado segundo o que vier eventualmente a ser previsto no plano de recuperação a ser tempestivamente apresentado. A pergunta importante a se fazer é se esse ativo não se desvalorizará sensivelmente durante a própria RJ, o que depende da sua composição. Enquanto isso o passivo tende a crescer.
Em suas alegações a empresa entende em favor de sua viabilidade financeira e operacional, pelos motivos ali expostos, dentro de uma crise que de natureza passageira e cuja origem estaria no fracasso do Programa Promo 123, fundado em um cenário que não teria se concretizado por fatores alheios à vontade daquela.
A experiência relacionada às crises econômico-financeiras das empresas mostra que um dos fatores determinantes para a sua superação corresponde à confiança que nela mantenham os seus credores atuais e também os do mercado, que propícia o giro da atividade, tão caro à particular natureza da 123 Milhas. No momento pode ser afirmar que essa confiança está desaparecida, sendo duvidoso que ela possa ser reconstruída nas mãos dos mesmos sócios e administradores atuais, o que se dá em casos raros na experiência das RJs2.
A confiança de que se trata não tem fundamento no ativo da empresa, esvaziado materialmente pelo efeito da crise que foi deflagrada e do próprio pedido de RJ, sendo necessário buscar a sua reativação por alguns dos diversos meios que possam ser o fundamento do plano recuperacional em vista. Uma lista exemplificativa dos meios da RJ está estipulada no art. 51 da lei 11.101/05, podendo ser construída uma solução por meio da alteração do controle societário, do aumento do capital social, do trespasse do estabelecimento, etc.
Uma ideia talvez viável seja a do trespasse do estabelecimento para algum grupo interessado, utilizando-se para tanto do instituto do drop down. No caso dessa operação a alienação incluiria a carteira formada pelos clientes da empresa, a ser avaliada na transferência para o comprador (receptor). Dessa forma a dívida total da 123 Milhas (conferente) ou parte delas satisfaria os credores, provavelmente dando-se a liquidação daquela ou até mesmo a sua falência. Dessa forma o prejuízo ora em vista poderia ser significativamente reduzido. Enquanto isso a nova empresa a ser constituída teria oportunidade de trabalhar com os antigos clientes da recuperanda, substituindo-a nas suas atividades, gozando do benefício de nova confiança e ela atribuída pelos antigos credores, fundada em novos titulares e administradores da receptora. Neste sentido, o verdadeiro ativo da 123Milhas é, precisamente, essa carteira de clientes, que poderá ser trabalhada mediante os devidos incentivos que lhes sejam outorgados pelo novo titular, para o fim de se agregarem mediante voto de confiança na nova gestão e no seu projeto de vida.
De qualquer maneira, a extrema pulverização dos credores quirografários torna muito complicada a defesa dos seus interesses da RJ, no tocante à verificação e habilitação dos créditos correspondentes, da sua participação do Comitê de Credores e na própria assembleia que deliberará sobre o plano de recuperação, entre outras matérias, na forma dos artigos 35 e seguintes da lei 11.101/05. Esse certame terá de ser feito on line, tendo em conta a dispersão dos credores, devendo ser superadas as dificuldades técnicas inerentes a tal situação3.
Entende-se que o melhor mecanismo para que essa multidão de credores possa ter voz minimamente efetiva está na constituição de associações civis, nos termos do art. 44 a 53 e 61 do Código Civil, cujo estatuto deverá prever especialmente os seus fins - como seja, a defesa dos associados na RJ e eventualmente na falência da 123Milhas. É claro que o caminho será longo e bastante pedregoso, mas cuida-se de um instituto que, a partir de uma contribuição razoável e suportável aos associados lhes permita melhor defesa dos seus interesses.
Finalmente, ainda que resvalando em uma crítica à autonomia privada de natureza constitufional, sente-se a falta de algum sistema de controle público que esteja atento para que situações como essa não se repitam. Isto porque pessoas não afeitas ao entendimento do modelo instituído pela 123Milhas não têm condições de saber de que tipo de negócio passam a participar, segundo um horizonte de elevada incerteza a qual, segundo a conhecida Lei de Murphy, se alguma coisa pode dar errado, ela vai dar errado mesmo.
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1 Cf. Felipe Matos in "123milhas e as unit economics", in Jornal "O Estado de São Paulo" de 06.09.23.
2 Um exemplo bastante significativo de confiança mantida contra muitas expectativas ocorreu quando da quebra do antigo BANESPA, banco do governo do Estado de São Paulo. Veio a ser decretado pelo Banco Central do Brasil em relação àquele banco o Regime de Administração Especial Temporária - RAET em 30.12.1994, não tendo havido uma corrida em massa dos depositantes e investidores para o saque dos seus depósitos e resgate de suas aplicações. Oportunamente o BANESPA veio a ser adquirido pelo grupo Santander.
3 Todo o longo caminho jurídico que será tomado no curso da RJ da 123Milhas é objeto da nossa obra, escrita com diversos outros autores, "Falência e Recuperação de Empresas - Estudo Integrado com a Reforma Introduzida pela Lei 14.112/2020", Editora Dialética, 2022.
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.