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Perdi minha lavoura em razão de fenômenos naturais, ainda tenho que pagar o financiamento do custeio agrícola?

Os desastres e tragédias ocorridas no Rio Grande do Sul em razão da ocorrência de fenômeno natural arrasador, fez reacender a discussão em torno da das cláusulas excludentes de responsabilidade previstas no artigo 393 do Código Civil brasileiro.

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Atualizado às 13:56

Apresentação do caso 

A reportagem veiculada no programa Globo Rural, da Emissora Rede Globo de Televisão, do dia 10 de setembro de 2023, noticia que "após ciclone, parte fértil do solo é varrida pela correnteza no RS". 

Este fenômeno natural, necessário (compreendido como alheio a vontade das partes) e inevitável (evento irresistível, cujos efeitos não podem ser evitados ou mitigados) tomou os cidadãos residente no Rio Grande do Sul de surpresa, dizimando vidas e destruindo propriedades. 

Este fenômeno natural fez reacender a discussão em torno das cláusulas excludentes de responsabilidade previstas no artigo 393 do Código Civil brasileiro, onde diz que: "O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado." 

A pandemia da COVID 19 trouxe consigo uma avalanche de ações judiciais pleiteando a revisão de dispositivos contratuais, evocando-se o fator imprevisibilidade e inevitabilidade dos fatos. 

Do caso fortuito e da força maior 

Embora sem muita utilidade prática a distinção entre caso fortuito e força maior, tendo em vista que ambos os casos se aplica o mesmo regramento, Pereira (2011, p. 358) define o caso fortuito como sendo "todo acontecimento oriundo de forças da natureza, ou o fato das coisas, exemplificando-se com o raio, a inundação, o terremoto, ou outros eventos que tais. Já a força maior ocorre no acontecimento advindo do fato das pessoas, como a guerra, a revolução, a greve, ou no que mais frequentemente ocorre, do ato das autoridades (factum principis)". 

Contrato de Mútuo financeiro x contrato de safra futura 

Sobre a perda da lavoura e a exoneração do produtor rural pelo pagamento do financiamento agrícola contraído junto a instituição financeira, cujo pagamento seria realizado com a realização da colheita do plantio, passa-se a tecer algumas considerações. 

Primeiramente há que se esclarecer que o contrato celebrado com uma instituição financeira, seja para o custeio pecuário ou agrícola, é um contrato de mútuo financeiro, onde o produtor rural oferece em garantia de pagamento à instituição financeira semoventes ou parte de sua produção agrícola. 

Ou seja, o objeto dessa contratação é "dinheiro", a produção ou os semoventes são apenas a garantia fornecida ao banco que, na hipótese do produtor rural não restituir o valor dado em empréstimo (acrescido dos juros e correções pactuados) no prazo estipulado na Cédula de Crédito Rural, faculta ao banco reaver o seu crédito por meio dos bens fornecidos em garantia. 

Diferente é o contrato de alienação da safra futura, onde o produtor rural vende ao comprador a safra que será colhida em período futuro. Nesse caso o objeto dessa transação será a produção agrícola ou os semoventes, hipótese em que, sobrevindo um caso fortuito que afete o nexo causal desta relação negocial, estará o devedor liberado da obrigação futura. 

Nesse ponto acrescento que durante muito tempo se discutiu se com a superveniência de caso fortuito, que possui o caráter liberatório, assim compreendido como o evento capaz de liberar as partes das obrigações assumidas, se teria o devedor obrigação de restituir ao credor as parcelas que este já lhe pagou, restando pacificado que as parcelas pagas se aproveitam em favor do devedor, contudo fica o credor liberado de pagar eventuais parcelas que vincendas. 

Considerações Finais

 Retornando ao contrato de mútuo financeiro com garantia pignoratícia consubstanciada em uma Cédula de Crédito Rural, na maioria das vezes as instituições financeiras exigem do produtor rural como condição resolutiva do contrato, que o devedor celebre contrato de seguro dos bens dados em garantia, endossando à instituição financeira o prêmio pelo pagamento na ocorrência de sinistro ou perda da garantia. 

Atenção, que este seguro não se confunde com o seguro prestamista, que é o seguro cujo prêmio será pago na hipótese de ocorrência de sinistro que provoque a morte ou invalidez total por acidente do devedor. 

Derradeiramente, deve-se relembrar que muitos contratos, utilizando-se do permissivo contido na parte final do artigo 393 do CC (se expressamente não se houver por eles responsabilizado)  e do princípio da autonomia da vontade consubstanciado na liberdade de contratar, tem se contratualizado o deslocamento do risco do fortuito em favor do credor, tornando o devedor responsável pelo cumprimento da obrigação, ainda que esta relação seja acometida de fato superveniente, autônomo e inevitável.

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BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Brasília, DF: Senado Federal, 2002. 

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Obrigações e contratos - pareceres. Rio de Janeiro: Forense, 2011. 

GLOBO RURAL, Após ciclone, parte fértil do solo é varrida pela correnteza no RS. G1, disponível em https://g1.globo.com/economia/agronegocios/globo-rural/noticia/2023/09/10/ciclone-causa-prejuizos-para-produtores-rurais-da-regiao-sul.ghtml. Acesso em 12 de setembro de 2023.

William Ramos

VIP William Ramos

Mestrando em direitos fundamentais pela Universidade da Amazônia/UNAMA; Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas/FGV; especialista em Direito Processual Civil, Constitucional, Penal e Trabalhista pela Faculdade Maurício de Nassau de Belém; advogado sócio do escritório Ramos & Valadão Sociedade de Advogados.

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