A abordagem cognitivo-comportamental em perícia psicológica
É imprescindível que as avaliações psicológicas periciais exijam do profissional conhecimentos de psicologia do desenvolvimento, a abordagem teórica da personalidade (no caso, Cognitivo-comportamental), psicologia da família.
terça-feira, 12 de setembro de 2023
Atualizado às 13:46
Olá colegas Migalheiros!
Meu assunto do artigo de hoje é a questão da abordagem que o psicólogo perito pode utilizar para compreender as informações que obtém dos procedimentos periciais. Isso porque, a maneira como o psicólogo irá lidar com os dados que recebe das entrevistas, testes e observações depende da maneira como o profissional entende a personalidade e o desenvolvimento da pessoa.
Na maioria das vezes, o profissional pode abordar conforme a Psicanálise. Nessa abordagem, a personalidade é vista como o jogo de forças entre os impulsos (manifestação de vontades para satisfação pessoal) e as regras institucionais (sociais, educacionais, religiosas, etc.), principalmente para interpretação de testes projetivos (ex.: desenhos, contação de histórias, etc.). A Psicanálise pode servir para identificar traumas decorrentes de: violência doméstica, abuso sexual infantil, negligência, abandono afetivo (ou demissão parental).
Por exemplo, em relação à noção de trauma, WINNICOTT (1965/1994) o conceitualiza como "um fracasso em relação à dependência" (p.113), o que envolve uma consideração de fatores externos. Para o autor, a ideia de trauma tem diferentes significados em função do estágio do desenvolvimento emocional da criança, que vai da dependência à independência.
De acordo com FERENCZI (1933/1992) a criança, frente à situação de abuso sexual, reage ao brusco desprazer "pela identificação ansiosa e a introjeção daquele que a ameaça e a agride" (p. 103), e não pela defesa. A criança, se conseguir se recuperar de tal agressão, se sentirá intensamente confusa e dividida entre a sua inocência e culpa. De acordo com o autor,
[...] o sentimento de culpabilidade, no erotismo adulto, transforma o objeto de amor em objeto de ódio e de afeição, ou seja, um objeto ambivalente. Ainda que essa dualidade inexista na criança no estágio da ternura, é justamente esse ódio que surpreende, assusta e traumatiza uma criança amada por um adulto. Esse ódio transforma um ser que brinca espontaneamente, e com toda a inocência, num autômato, culpado do amor [...]. É o sentimento de culpa e ódio contra o sedutor que conferem às relações amorosas dos adultos o aspecto de uma luta assustadora para a criança [...]. (FERENCZI, 1933/1992, p. 106).
Nesses casos, a abordagem psicanalítica pode ser extremamente útil na compreensão de demandas envolvendo traumas, relações tóxicas ou patológicas, psicopatologias, etc. Ocorre que nem todos os profissionais adotam essa abordagem, inclusive porque ela é complexa, nem sempre de fácil compreensão pelo público leigo, além de que, em determinados casos, busca desvendar origem de traumas infantis que, dependendo da demanda judicial, podem não ser úteis aos esclarecimentos solicitados pelo magistrado.
Por vezes, a abordagem comumente utilizada pelos psicólogos para entender a demanda judicial e subsidiar o posicionamento do juiz, é a cognitivo-comportamental.
A abordagem comportamental começou a ser desenvolvida no início da década de 60 do século passado (BECK, A.T. et al., 1997). A tese central da terapia cognitiva é que o funcionamento psicológico depende de crenças e esquemas, estes compreendidos como um sistema relativamente estável de crenças (BECK, A.T. et al., 2017; BECK, J.S., 1997). As crenças centrais funcionam como postulados que influenciam significativamente a interpretação das situações cotidianas e dos eventos do passado, bem como a projeção do futuro na forma de antecipações cognitivas (REINECKE, In: FREEMAN e DATTILIO, 2004). A interpretação das situações vividas influencia o estado emocional, as condições motivacionais, as estratégias adaptativas (ou desadaptativas) e os comportamentos (BECK, J.S., 1997).
O conceito de crenças centrais se relaciona à autoidentidade, visto que representa as ideias mais centrais da pessoa a respeito do self, a forma como a pessoa interpreta a si mesma e aos outros. As crenças centrais são descritas como disfuncionais quando levam a interpretações distorcidas da realidade, frequentemente geradoras de sofrimento e de estratégias desadaptativas e são frequentemente rígidas, imperativas e supergeneralizadas. (BECK, J.S., 1997). De maneira geral, ter crenças disfuncionais, não torna o indivíduo incapacitado, mas pode trazer algumas dificuldades em sua trajetória, e explicam o porquê de alguns comportamentos emitidos por tal sujeito. Ademais, pode-se ter crenças desadaptativas em um campo da vida e que não prejudicam outras funções do indivíduo.
Quanto à origem, as crenças centrais começam a formar-se nas experiências da infância, sobretudo nas relações com pessoas significativas, mas seguem sendo formada, readaptadas e reformulada por toda a vida do sujeito, sendo algumas mais cristalizadas e outras mais maleáveis e propensas a alterações. Eventos críticos como situações de crise ao longo de toda a vida, como a perda de um ente querido, podem ativar crenças disfuncionais, tornando-as hipervalentes em relação a crenças funcionais (DATILIO e FREEMAN, 2000).
A análise sistemática da personalidade é historicamente um tópico de grande relevância no âmbito da psicologia, tendo, nos últimos anos, recebido especial destaque a discussão acerca das suas dimensões principais (SILVA e NAKANO, 2011; ALLPORT, 1973). Diferentes abordagens dedicaram-se ao estudo da personalidade (ALLPORT, 1973; HALL et al., 2000; PERVIN, 1978). Dentre as significativas contribuições advogou-se que o nível mais proveitoso de estudo para a personalidade é o traço, dando origem a uma nova maneira de refletir acerca deste construto, considerando os traços de personalidade como predisposições a responder igualmente ou de um modo semelhante a tipos diferentes de estímulos, ou seja, formas constantes e duradouras de reagir ao ambiente (PERVIN, 1978). Suas características seriam de individualidade, natureza real, determinação do comportamento, ser passível de demonstração empírica e possuir variações situacionais e interrelacionais. Neste sentido, o traço pode ser empregado para resumir como as pessoas são ou se comportam no seu dia-a-dia (SCHULTZ e SCHULTZ, 2002; HUTZ et al., 1998).
Dos modelos que vêm sendo propostos, o OCEAN (abertura, conscienciosidade, extroversão, sociabilidade e neuroticismo) propõe cinco dimensões da personalidade, baseando-se na análise fatorial de uma série de questionários. O Big Five, modelo no qual também se baseou este estudo, vem ganhando destaque na literatura sobre a estrutura da personalidade, e tem se mostrado adequado, apresentando um poder de síntese satisfatório e contando com estudos a respeito no Brasil, evidenciando a existência de dimensões básicas da personalidade (HUTZ, et al., 1998) .
Ademais, os autores reconhecem a importância dos contextos para explicar por que uma pessoa não se comporta da mesma maneira o tempo todo. Considera-se que tanto os traços quanto o contexto são necessários para entender o comportamento humano. Os traços são o que melhor explicam a coerência dos comportamentos, enquanto as situações explicam a variabilidade destes.
Existem instrumentos importantes, que podem mensurar esses aspectos da personalidade baseados no Big Five e podem identificar: estilos parentais, patologias, traumas, veracidade de testemunho, etc. Em casos em que se pretenda avaliar se a vítima de violência (física, sexual) tem ou não consciência das implicações sociais da acusação que esteja formulando contra seu agressor (se não é mera reprodução de acusações de outrem, como no caso das falsas acusações de abuso sexual, um dos atos da alienação parental por exemplo, e predisponente às 'falsas memórias' pela ausência de remorso em acusar falsamente, ainda que por interesses alheios (no caso, do(a) genitor(a) acusador(a)), mensura-se o neuroticismo.
Segundo SISTO (2019, p.16):
A principal característica de uma pessoa com alta pontuação em neuroticismo é uma constante preocupação, acompanhada de uma forte reação de ansiedade. As oscilações de humor são comuns, como também frequentemente deprimida; provavelmente dorme mal e queixa-se de diferentes desordens psicossomáticas; apresenta fortes reações emocionais com condutas, às vezes irracionais. Em outros termos, mostra uma forte instabilidade emocional. Experimenta sentimentos fortes, torna-se desagradável e está em constante tensão. Por sua vez, uma baixa pontuação em neuroticismo indicaria pessoas pouco impulsivas, que recuperam com facilidade o autocontrole.
Enfim, é imprescindível que as avaliações psicológicas periciais exijam do profissional conhecimentos de psicologia do desenvolvimento, a abordagem teórica da personalidade (no caso, Cognitivo-comportamental), psicologia da família. Usualmente o psicólogo utiliza a entrevista investigativa, fundamentada nos princípios da entrevista cognitiva, que apresenta como objetivo ajudar o entrevistado a recordar o maior número de informações, assim como gerar maior número de detalhes corretos sem aumentar o número de detalhes incorretos ou fabricados.
Quanto ao uso de instrumentos (testes, escalas, inventários), também podem ser feitos pela abordagem cognitiva, ou pela psicanalítica, conforme a proposta do autor do instrumento. De qualquer forma, os procedimentos periciais devem ter: objetivo definido, planejamento coerente com as características de cada periciando (faixa etária, escolaridade), validação pelo SATEPSI, e atendimento à demanda judicial para esclarecimento dos pontos controvertidos (SILVA, 2023).
E aí, gostaram do artigo? Espero que sim!
É sempre um prazer compartilhar conhecimentos e experiências com os colegas Migalheiros, me coloco à disposição para o debate saudável.
Até os próximos artigos!
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ALLPORT, G.W. Personalidade: padrões e desenvolvimento. São Paulo: EPU, 1973.
BECK, A.T; RUSH, A.J.; SHAW, B.F.; EMERY, G. Terapia cognitiva da depressão. Porto Alegre: Artmed, 1997.
BECK, A.T.; DAVIS, D.D.; FREEMAN, A. Terapia cognitiva dos transtornos da personalidade. 3.ed. Porto Alegre: Artmed, 2017.
BECK, J.S. Terapia cognitiva: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed, 1997.
DATILIO, F.M.; FREEMAN, A. Estratégias cognitivo comportamentais de intervenção em situações de crise. Porto Alegre: Artmed, 2000.
FERENCZI, S. Confusão de língua entre os adultos e a criança: a linguagem da ternura e da paixão (A. Cabral, Trad.). In: FERENCZI, S. Obras Completas: Psicanalise IV. São Paulo: Martins Fontes, p. 97-106, 1992. (Obra original publicada em 1933).
HALL, C.S.; LINDZEY, G.; CAMPBELL, J.B. Teorias da personalidade. Porto Alegre: Artmed, 2000.
HUTZ, C.S.; NUNES, C.H.; SILVEIRA, A.D.; SERRA, J.; ANTON, M.; WIECZOREK, L.S. O desenvolvimento de marcadores para a avaliação da personalidade no modelo dos cinco grandes fatores. Psicologia: Reflexão e Crítica. Porto Alegre, v. 11, n. 2, p. 395-410. 1998. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/26362079_O_desenvolvimento_de_marcadores_para_a_avaliacao_da_personalidade_no_modelo_dos_cinco_grandes_fatores.
PERVIN, L.A. Personalidade: teoria, avaliação e pesquisa. São Paulo: EPU, 1978.
REINECKE MA. Suicídio e depressão. In FREEMAN, A.M.; DATTILIO, M.F. Estratégias cognitivo comportamentais de intervenção em situações de crise. Porto Alegre: Artmed, p.82-112, 2004. cap.
SCHULTZ, D.P.; SCHULTZ, S.E. Teorias da personalidade. São Paulo: Pioneira Thomson; 2002.
SILVA, D.M.P. Psicologia Jurídica e os aspectos processuais da perícia em Varas de Família. 6.ed. Juruá, 2023 (vai ser lançado em setembro/2023).
SILVA, I.B.; NAKANO, T.C. Modelo dos Cinco Grandes fatores da personalidade: análise de pesquisas. Avaliação Psicológica. Porto Alegre, v. 10, n. 1, p. 51-62, 2011. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/avp/v10n1/v10n1a06.pdf.
SISTO, F.F. Escala de Traços de Personalidade para Crianças (ETPC). 2. ed. São Paulo: Vetor, 2019.
WINNICOTT, D.W. O conceito de trauma em relação ao desenvolvimento do indivíduo dentro da família. In: WINNICOTT, C.W.; SHERPHERD, R.; DAVIS, M. (orgs.). Explorações psicanalíticas: D. W. Winnicott. Porto Alegre: Artes Médicas, p. 102-115, 1994. (Obra original publicada em 1965).