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Como a poliafetividade e a gestação por substituição desafiam as fronteiras jurídicas

Decisão do TJ/RS reconheceu união de trisal e reascendeu necessidade de pensar balizas para oferecer segurança jurídica às diversas famílias, incluindo as formadas através da gestação por substituição.

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Atualizado às 08:09

"O que você amar você é. Ouço. Concordo. Percebo."1

No dia 28 de agosto de 2023, o município de Porto Alegre foi palco de uma decisão que altera de forma significativa a rota que estava sendo trilhada para as uniões poliafetivas: a 2ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Novo Hamburgo reconheceu a união de estável de três pessoas, o que poderá permitir o registro multiparental do filho que uma das integrantes do trisal2 está gestando. Os aspectos registrais parecem ser a via por onde adentra no ordenamento a necessidade de regulamentação de alguns arranjos contemporâneos de família, o que vem ocorrendo com casos de poliafetividade e de gestação por substituição.

Antes de adentrar no acontecimento que recentemente ganhou notoriedade, imperiosa breve digressão sobre o tema: a primeira escritura de união poliafetiva foi lavrada em 13 de fevereiro de 2012, na cidade de Tupã3. Pouco mais de quatro anos depois, em 13 de abril de 2016, a Corregedoria Nacional de Justiça instaurou Pedido de Providências4, recomendando que os cartórios aguardassem a conclusão deste para lavrar novas escrituras das uniões em comento, considerando a complexidade do tema e seu potencial para atingir interesses que vão além da esfera dos envolvidos e envolvidas.

O contraste entre o Pedido de Providências de 2016 e a recente decisão do TJ/RS demonstra como a poliafetividade ainda é alvo de tratamentos conflitantes. Isso se torna ainda mais patente se relembrarmos que está em tramitação o projeto de lei 4302 (PL 4302)5, que visa proibir o reconhecimento das uniões citadas, e atualmente está aguardando parecer do Relator na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família (CPASF).

O citado PL teve sua tramitação iniciada há sete anos, e até o momento não há qualquer legislação admitindo ou proibindo o registro de formações familiares com mais de duas pessoas. Apesar desta lacuna, já houve o reconhecimento de mais de nove6 uniões poliafetivas no Brasil, o que demonstra que o Direito está sendo instado a responder a uma demanda social que já é uma realidade cogente.

A busca do reconhecimento jurídico se fundamenta na necessidade de ter garantidos direitos já amplamente assegurados às famílias que estão inseridas nos arranjos binários, paradigma sobre o qual o Código Civil está erigido. Foi tal busca pelo registro do filho no nome das três a principal motivação para o trisal ingressar no judiciário pleiteando o reconhecimento da união, conforme manifestação de um de seus integrantes7"Quando a Kety ficou grávida, em janeiro deste ano, nós pensamos que poderíamos fazer esse registro no nome dos três, como de fato é: filho dos três, da nossa relação"8.

No que tange ao registro, este é tema nebuloso não apenas para as relações poliafetivas, mas também para as pessoas que tem filhos através de gestação por substituição, habitualmente conhecida como "barriga de aluguel", denominação popular que abre espaço para entendimentos equivocados. Assim como ocorre com a poliafetividade, esta técnica de reprodução também não possui legislação específica no Brasil, e atualmente é regulada pela resolução 2.320/229do CFM.

Notória é a intenção louvável do CFM, que desde 199210 vem editando Resoluções para responder a situações que já existem de fato. Contudo, pela própria natureza do instrumento, tais normas não possuem caráter vinculante, o que mantém a situação em uma insegurança jurídica semelhante a da poliafetividade. Prova disso é o fato de no passado já ter sido necessário acionar o judiciário para pleitear o registro no nome dos pais intencionais11, uma vez que a lei 6015/73 exige a Declaração de Nascido Vivo, documento regulado pela lei 12.662, a qual indica que deve constar o nome da mãe12.

Ocorre que na gestação por substituição, o nome da parturiente não coincide com o nome da mãe intencional, o que foi resolvido pelo Provimento 6313 da Corregedoria Nacional de Justiça, ao estabelecer que o nome da parturiente não constará no registro, conforme se observa: "art. 17, §1º Na hipótese de gestação por substituição, não constará do registro o nome da parturiente, informado na declaração de nascido vivo [...]".

Apesar disso, as diferenças entre as nações na regulamentação da gestação por substituição causam diversos problemas, não apenas no âmbito registral. Considerando que existem países que vedam, outros que admitem, e ainda os que não possuem legislação, surgiu o que ficou popularmente conhecido como "turismo reprodutivo", denominação utilizada para descrever o fenômeno de muitos casais viajarem para lugares onde se admite a técnica, o que suscita questões quando regressam com o bebê.

No Brasil, a citada resolução 2.320/22 admite a modalidade altruísta desta forma de reprodução e também prevê alguns outros requisitos, que o presente artigo não possui a pretensão de analisar. Ao contrário, o que se pretende é levar luz ao fato de que já existem pessoas tecendo relações íntimas que fogem ao modelo binário e tendo filhos que não se encaixam na presunção "mater semper certa est".

Assim, apesar de parecerem temas distantes, evidencia-se que a poliafetividade e a gestação por substituição se tangenciam no ponto de serem realidades que projetam seus efeitos para além das pessoas envolvidas e das fronteiras nacionais, mas ainda não encontram parâmetros seguros para seu tratamento jurídico. Ao contrário, outras áreas do conhecimento já se mostram permeáveis a desnaturalização da família tradicional burguesa.

Com isso, longe de recair em um fetichismo legalista, o que buscamos é demonstrar que a cada dia estamos sendo convidados e convidadas a perceber que "O direito não é fruto apenas da fonte oficial, das leis. O direito é a cultura de um país."14, conforme leciona Pietro Perligieri. O recente julgado está em consonância com esta perspectiva, uma vez que havia até então uma tendência de se rejeitar ou inviabilizar as uniões que desafiam o binarismo15, o que já é passível de ser revisto com a metodologia do direito civil-constitucional e axiologia que permite a criação de conceitos abertos.

Portanto, mais do que pensar sobre o que se ama e no que se é, como provoca a epígrafe, é preciso "deixar ser", uma vez que as atuais formas de afeto regulamentadas são naturalizadas a ponto de esconder uma série de valores social e culturalmente construídos. Conceber o direito como um instrumento vivo deve ser atitude que vem acompanhada da responsabilidade de que "existirá uma resposta"16 apta a permitir a proteção das diversas formas de família e consequente desenvolvimento da prole.

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1 Iniciamos com um trecho da página 57 do livro "Tem um coração que faz barulho de água", para provocar a reflexão sobre como nossas formas de amar estão relacionadas com o que buscamos ser e ver no mundo. E, consequentemente, no Direito. LISBÔA, Cristiane. Tem um coração que faz barulho de água. Rio de Janeiro: Memória Visual, 2012.

2 Nome pelo qual são conhecidas as uniões amorosas compostas por três pessoas.

3 CONJUR, Cartório reconhece união estável entre três pessoas. Revista Consultor Jurídico, publicado em 23/08/2012. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-ago-23/cartorio-tupa-sp-reconhece-uniao-estavel-entre-tres-pessoas. Acesso em 03 set. 2023.

4 BRASIL, CNJ. Min. Nancy Andrighi, Pedido de Providências nº 0001459-08.2016.2.00.0000. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/arquivos/2016/5/art20160504-06.pdf. Acesso em: set. 2016.

5 CARVALHO, Vinicius. Projeto de Lei nº 4302/2016. Proíbe o reconhecimento da "União Poliafetiva" formada por mais de um convivente. Brasília: Câmara dos Deputados. 03 fev. 2016. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2076754. Acesso em 07 jul. 2023.

6 Em 2016, momento que se instaurou o Pedido de Providências, havia pelo menos oito escrituras de união estável desse tipo, conforme reportagem de Thiago Amâncio para o site Folha de São Paulo no dia 24 de janeiro de 2016. Disponível em: . Acesso em 07 set. 2023. Depois desta reportagem, ainda foi lavrada a primeira escritura de união estável poliafetiva de um homem e duas mulheres. MENDONÇA, Alba Valéria. Portal G1, 2016. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/04/primeiro-ter-uniao-estavel-com-2-mulheres-no-rio-fala-sobre-relacao.html. Acesso em 07 set. 2023.

Após um período de latência em função das tentativas de vedação que surgiram, foi noticiado o reconhecimento do trisal de Novo Hamburgo, o que ensejou a elaboração do presente e nos faz afirmar que já existem mais de nove uniões deste tipo reconhecidas.

7 Notória é a contradição que levou ao reconhecimento da união. Explica-se: antes de iniciarem a relação com a mulher que integra o terceiro vértice, o homem e a mulher que completam o trisal já eram casados. Quando a relação entre os três se consolidou, buscaram o reconhecimento perante o tabelionato, o que foi negado. Contudo, quando ficaram sabendo da gravidez, a busca pelo registro constando o nome das duas mães e do pai os motivou a judicializar para obter o reconhecimento da união anteriormente negado por outras vias. Assim, houve a necessidade de o casal inicial se divorciar para posterior reconhecimento do relacionamento triplo. Justiça reconhece união estável de trisal no RS e filho terá direito a registro multiparental. Portal G1, 2023. Disponível em: . Acesso em 02 set. 2023.

8 JUNIOR, Ubiratan. TRISAL: Conheça a família de Novo Hamburgo que teve união estável reconhecida pela Justiça. Jornal NH, 2023. Disponível em: https://www.jornalnh.com.br/noticias/novo_hamburgo/2023/09/02/trisal-conheca-a-familia-de-novo-hamburgo-que-teve-uniao-estavel-reconhecida-pela-justica.html. Acesso em 06 set. 2023.

9 BRASIL, Resolução nº 2.320, Conselho Federal de Medicina, 2022.

10 BRASIL, Resolução nº 1.358, Conselho Federal de Medicina, 1992.

11 BRASIL, 2ª Vara de Registros Públicos, Processo 66/2000, Marcio Martins Bonilha Filho. São Paulo. Disponível em: http://irib.org.br/boletins/detalhes/3610. Acesso em 08 ago. 2023.

12 Do artigo 4º, V da citada lei, extrai-se: "Art. 4º A Declaração de Nascido Vivo deverá conter número de identificação nacionalmente unificado, a ser gerado exclusivamente pelo Ministério da Saúde, além dos seguintes dados: V - nome e prenome, naturalidade, profissão, endereço de residência da mãe e sua idade na ocasião do part.". BRASIL, Lei 12.662, de 5 de junho de 2012. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2012.

13 Imperioso mencionar que o Provimento 83/2019, mais recente, não alterou o dispositivo em comento. BRASIL, Provimento nº 63, da Corregedoria Nacional de Justiça, 2017 e BRASIL, Provimento nº 83 da Corregedoria Nacional de Justiça, 2019.  

14 Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil). Diálogo sobre Direito Civil Constitucional. Youtube, out. 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=k3h7-UrQ5bs. Acesso em 06 jun. 2023.

15 Nesse sentido, oportuna a lição de Marcos Alves da Silva: "a própria produção jurisprudencial deve ser problematizada". SILVA, Marcos Alves da. Da monogamia: a sua superação como princípio estruturante do direito de família. Curitiba: Juruá, 2013, p. 203.

16 Encerramos com uma alusão a música "Let it Be", que ganhou o mundo na voz dos Beatles. Em tradução exata, a expressão corresponde a atitude de deixar as coisas acontecerem. Nossa proposta, contudo, é um direito atento as necessidades enquanto os fatos acontecem.

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BODIN DE MORAES, Maria Celina; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Contratos no ambiente familiar. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. Contratos, famílias e sucessões: diálogos interdisciplinares. Indaituba: Foco, 2019.

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Marília Alves de Carvalho e Silva

Marília Alves de Carvalho e Silva

Doutoranda em Direito Civil na UERJ. Mestre pela FND/UFRJ. Presidente da Comissão Especial de Estudos sobre o Direito Sistêmico da OAB/RJ. Advogada, professora e mediadora.

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