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Parecer de orientação 41: a CVM entra em campo

No dia 21 de agosto de 2023, a Comissão de Valores Mobiliários ("CVM") publicou o Parecer de Orientação 41 ("Parecer"), que trata das Sociedades Anônimas do Futebol ("SAF") e a sua interlocução com - e acesso ao - mercado de valores mobiliários.

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Atualizado em 13 de setembro de 2023 12:27

O Parecer busca orientar e sinalizar possíveis caminhos às SAFs que queiram se registrar como companhias abertas e acessar o mercado de capitais, além de apresentar as interpretações da CVM sobre a aplicação da lei 6.404/76, a Lei das Sociedades por Ações ("LSA"), e da lei 6.385/76 ("Lei da CVM"), a temas que envolvem a lei 14.193/21 ("Lei da SAF").

Este documento, paradigmático para a Autarquia e para o esporte brasileiro, traz desde temas relacionados à formação do capital social, passando por questões como poder de controle e governança corporativa, até direcionamentos relacionados ao acesso ao mercado pelas SAFs.

A iniciativa, sem precedentes no Brasil, joga luz sobre o mercado do futebol, acenando para possibilidades de desenvolvimento e amadurecimento de uma atividade com potencial (social e econômico) imensurável.
Os destaques do Parecer, de forma resumida, são os seguintes:

Constituição e Formação do Capital Social

Além das 3 formas de constituição de SAFs listadas no art. 2º da Lei da SAF, a Autarquia destacou a quarta modalidade constitutiva, prevista no art. 3º da mesma Lei: o drop down. Essa alternativa, que é, possivelmente, a mais utilizada, verifica-se quando o clube associativo (ou pessoa jurídica original) integraliza a sua parcela (subscrita) do capital social da SAF mediante a transferência de ativos relacionados à atividade futebolística, como nome, marca, dísticos, símbolos, propriedades, patrimônio, ativos imobilizados e mobilizados, incluindo registros, licenças, contratos, direitos federativos, econômicos e desportivos sobre atletas, bem como a respectiva repercussão econômica¹.

O drop down representa uma substituição de elementos patrimoniais, mediante a qual o clube transfere seus bens (no caso, à SAF) e recebe em troca o equivalente em participação societária (determinada quantidade de ações emitidas pela SAF, neste caso). Trata-se de técnica reorganizativa muito comum no mundo das fusões e aquisições (ou "M&A") e expressamente prevista da Lei da SAF.

O Parecer destaca, ainda, o reforço para a higidez sistêmica dos procedimentos verificadores da realidade da contribuição patrimonial transferida pelo titular dos direitos à SAF. Além da obrigatoriedade de avaliação dos peritos ou empresa especializada, regra geral prevista no art. 8º da LSA, a CVM orienta os agentes de mercado que assessorem a constituição das SAFs a observarem não só as normas contábeis aplicáveis, mas também contratarem auditores registrados na CVM, a fim de avaliar os ativos e passivos que formam o patrimônio transferido via drop down ou cisão.

Governança Corporativa

A Lei da SAF traz especificidades próprias quanto à governança, a exemplo da proibição de que o acionista controlador de uma SAF detenha, direta ou indiretamente, participação em outra SAF (art. 4º da Lei da SAF). Ainda, o acionista titular de 10% ou mais do capital votante ou total de uma SAF, mesmo sem a controlar, caso tenha participação em outra SAF, não terá direito a voz ou voto em ambas as companhias. Essas são regras não previstas na LSA, de modo que somente se aplicam ao subtipo societário de SAF.  

A CVM, nesse contexto, reconhece e orienta que as SAFs cujos valores mobiliários sejam admitidos à negociação em mercado adotem medidas de controle para dar cumprimento a tais exigências, sinalizando pela conveniência em se instituir, por exemplo: sistemas internos de acompanhamento e exigência de envios periódicos de declaração de conformidade pelos acionistas das SAFs.

Essas especificidades se sobrepõem ou complementam, conforme o caso, as regras da LSA aplicáveis às sociedades anônimas em geral. Assim, também são aplicáveis às SAFs que venham a se organizar como companhias abertas as seguintes obrigações, dentre outras estabelecidas na legislação societária e regulamentação da CVM: (i) vedação à acumulação de cargos de Presidente do Conselho de Administração e Diretor-Presidente, ressalvada a exceção às companhias de menor porte (art. 138, §§3º e 4º da LSA); (ii) obrigatoriedade de participação no Conselho de Administração de membros independentes (art. 140, §2º da LSA); (iii) envio regular do Formulário de Referência; e (iv) elaboração de comunicados ao mercado ou fatos relevantes.

Inegável que, quanto aos aspectos de governança, mesmo com as exigências da Lei da SAF, a abertura de capital representará - ainda que ausente, no início, a intenção de negociar ações em bolsa de valores - um "choque positivo de governança", fruto das exigências gerais (e mais rigorosas, sob o aspecto de governo das companhias) que a LSA e a CVM impõem aos agentes que possuem permissão para acessar recursos da poupança popular, via mercado de capitais.

Acesso ao Mercado de Capitais

A conexão entre tomadores e poupadores, função essencial do mercado de capitais, é a pedra angular da viabilização e captação de recursos, gerando benefícios para a coletividade. Aliar isso a uma atividade que, ao mesmo tempo, consiste no esporte mais popular do mundo, tem significativa repercussão social e capacidade de inserção/integração, e representa um negócio promissor e de grande potencial econômico (que, no planeta todo, já movimenta grandes somas de recursos), pode representar efeitos transformadores no país.

Nesse sentido, e para ampliar as vias de acesso a recursos, disponíveis às SAFs, a Resolução CVM 160 permite que sociedades não registradas na CVM possam realizar ofertas públicas de títulos de dívida destinadas somente a investidores profissionais. Nisto estão incluídas as debêntures-fut, aplicáveis no caso das SAFs. A condição para que os emissores de valores mobiliários possam, em regra, alcançar investidores não profissionais e captar recursos publicamente é o registro perante a CVM (restando-se aplicável todo o arcabouço normativo aplicável).

Por meio do Parecer, a CVM destaca alguns tipos de valores mobiliários que podem ser emitidos por SAFs, dentre eles: 

  • Debêntures-Fut - Espécie de debênture disciplinada no art. 26 da Lei da SAF e destinada somente a esse subtipo societário. Aplicam-se às debêntures-fut, além das especificidades presentes na Lei da SAF, as disposições da LSA aplicáveis às debêntures em geral. Quando ofertadas publicamente ou admitidas a negociação em mercado, a SAF deverá observar, ainda, toda a regulamentação da CVM aplicável à emissão de debêntures;
  • Debêntures - Desde que cumpra os requisitos legais e normativos aplicáveis, as SAFs podem emitir debêntures tradicionais, caso em que não se aplicará o conteúdo direcionado às debêntures-fut;
  • Crowdfunding - Investimento que consiste na captação de recursos por meio de oferta pública de distribuição de valores mobiliários por emissor que seja sociedade empresária de pequeno porte (receita bruta anual de até R$ 40 milhões de reais) através de plataforma eletrônica de investimento participativo, regulado pela Resolução CVM nº 88;
  • Fundos de Investimento em Ações - Desde que cumpridos os requisitos normativos aplicáveis, as ações de emissão das SAFs que sejam companhias abertas e admitidas à negociação de valores mobiliários em mercado de capitais podem estar presentes no portfólio/compor a carteira de Fundo de Investimento em Ações;
  • Fundos de Investimento em Participações (FIPs) - Comuns nos setores de private equity e venture capital, a CVM sugere a possibilidade de utilização dos FIPs para concentração e coordenação da participação de investidores em SAFs, inclusive sob a tese de investimento de profissionalização da gestão do clube, de maneira a permitir que seus cotistas se tornem investidores indiretos em SAF. Nessa modalidade, o FIP é que deverá obter os registros e autorizações necessárias perante a CVM, e não a SAF. A estrutura pode ser útil para situações em que a SAF ainda não se encontre preparada para tornar-se uma companhia aberta - o que é a realidade de momento da maior parte dos times de futebol brasileiros. A CVM alerta, porém, que, tendo em vista os riscos envolvidos nesse tipo de investimento, nos termos da regulação em vigor, somente investidores qualificados podem adquirir cotas de FIPs;
  • Fundos de Investimento Imobiliário (FII) - Fundos que têm por objetivo o investimento em empreendimentos imobiliários podem ser utilizados no contexto das SAFs. É possível pensar, por exemplo, em uma operação em que a SAF, juntamente a outros investidores, estruturam um FII para viabilização de projetos como construção ou reforma de um estádio ou centro de treinamento (ou outro ativo imobiliário de interesse da SAF). Nesse cenário, a SAF poderia adquirir uma parcela das cotas ou não, mas os investidores cotistas do FII poderiam, conforme previsto no Parecer, tornar-se sócios indiretos do projeto, recebendo proventos de aluguel ou até participação em outras linhas de receitas decorrentes da exploração dos ativos imobiliários afetados ao FII (como bilheteria de jogos e eventos); e
  • Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC) e Securitização  - As SAFs podem antecipar o recebimento de direitos creditórios de sua titularidade mediante a cessão (com desconto) para FIDCs e companhias securitizadoras, sendo os respectivos certificados ou cotas distribuídos a investidores no mercado de capitais. Vários recebíveis de SAFs poderiam ser antecipados, como aluguel de imóveis, receitas de participações em campeonatos, naming rights, receita de bilheteria e até mesmo de negociação de jogadores. Apesar de a antecipação de recebíveis não ser uma prática desconhecida do mercado futebolístico, é razoável esperar, segundo anota a CVM, que sua utilização a partir de originação de créditos por parte de SAFs, e estruturada via FIDC, diante do arcabouço regulatório e das demais exigências aplicáveis, seja mais atraente ao público investidor, por conferir transparência, segurança etc.

Suitability, Transparência e Publicidade

A Autarquia também demonstrou preocupação e destacou temas como (i) o dever de suitability - aplicável a todos os intermediários e aqueles que atuam na cadeia de distribuição de valores mobiliários; e (ii) as obrigações de transparência e publicidade dos atos praticados pelas SAFs que venham a acessar o mercado de capitais.

A preocupação quanto a suitability se relaciona à adequação do produto oferecido ao perfil do investidor. Esse dever, em se tratando de SAFs, cuja atividade inegavelmente desperta paixões - muitas vezes fomentando decisões não necessariamente das mais racionais - deve ser cumprido com rigor ainda maior. O comportamento do investidor-torcedor pode ser legítimo, mas os profissionais que atuam na cadeia de distribuição não devem explorar apenas o lado passional destes para fins de promoção da oferta pública. Ou seja: o apelo e o impacto do futebol, em especial em um país como o Brasil, é, sem dúvidas, um fator que contribui para a atratividade e, provavelmente, fomentará o desenvolvimento de produtos ligados a SAFs; mas isso não pode se sobrepor ao cumprimento das regras impostas para fins de proteção do mercado e dos investidores.

A CVM, nesse sentido, reforça a exigência de que seja utilizada linguagem serena e moderada nos esforços de distribuição, recomendando que a cautela com a linguagem promocional seja intensificada. Além disso, os distribuidores devem alertar os investidores sobre os riscos do investimentos e as suas principais características.

Por fim, a CVM reconhece o desafio que enfrentará na definição das informações que devam ser objeto de divulgação ao mercado pelas SAFs. Apesar de plenamente aplicáveis as disposições da Resolução CVM Nº 44², não se pode ignorar que a atividade do futebol gera diariamente uma quantidade significativa de informações, notícias, reportagens e boatos advindos tanto de jornalistas e influenciadores digitais, quanto de torcedores. A CVM, compreendendo o contexto peculiar das SAFs, indicou que não tem a expectativa de que seus administradores se manifestem perante o mercado em reação a qualquer notícia ou boato, especialmente produzidas no contexto nitidamente esportivo, mas reforçou que não deixará de exigir que sejam cuidadosamente avaliados os atos e fatos que possam gerar os efeitos previstos no art. 2º da Resolução 44³.

O Parecer, portanto, norteia os caminhos para o amadurecimento do mercado do futebol e das SAFs. Ganham com isso não só as SAFs e, claro, o próprio futebol brasileiro, mas também o mercado de valores mobiliários e seus investidores, que passam a poder acessar um mercado bilionário4, em que o Brasil é mundial e historicamente conhecido - e que vem sendo inegavelmente subexplorado.

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1 Rodrigo Monteiro de Castro, ao comentar o mencionado artigo, afirma: "essa previsão não se aplica a qualquer das três hipóteses listadas no art. 2º (pois, na transformação, não são promovidos movimentos patrimoniais; na cisão a subscrição beneficia os sócios ou associados, e não o clube; e na constituição de SAF por pessoas natural, jurídica ou fundo, não haverá patrimônio clubístico a transferir), de modo que, mais uma vez, explicita a possibilidade de constituição de SAF mediante "drop down" (isto é, pela transferência de ativos a sociedade subsidiária, como a SAF, a título de conferência ao capital social subscrito). CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de. Comentários à Lei da Sociedade Anônima do Futebol: lei 14.193/21. São Paulo: Quartier Latin, 2021. P.66.

Resolução da CVM publicada em 23 de agosto de 2021 que dispõe sobre a divulgação de informações sobre ato ou fato relevante, a negociação de valores mobiliários na pendência de ato ou fato relevante não divulgado e a divulgação de informações sobre a negociação de valores mobiliários.

3 Art. 2º. Considera-se relevante, para os efeitos desta Resolução, qualquer decisão de acionista controlador, deliberação da assembleia geral ou dos órgãos de administração da companhia aberta, ou qualquer outro ato ou fato de caráter político-administrativo, técnico, negocial ou econômico-financeiro ocorrido ou relacionado aos seus negócios que possa influir de modo ponderável:
I - na cotação dos valores mobiliários de emissão da companhia aberta ou a eles referenciados;
II - na decisão dos investidores de comprar, vender ou manter aqueles valores mobiliários; ou
III - na decisão dos investidores de exercer quaisquer direitos inerentes à condição de titular de valores mobiliários emitidos pela companhia ou a eles referenciados.

4 Segundo a FIFA, o futebol mundial movimenta cerca de US$ 286 bilhões por ano, o equivalente ao PIB da Finlândia. MOREIRA, Assis. Valor Econômico. Disponível em: https://valor.globo.com/mundo/noticia/2022/09/27/futebol-movimenta-o-equivalente-ao-pib-da-finlandia-diz-presidente-da-fifa.ghtml. Acessado em 28 de agosto de 2023.

Leonardo Barros Corrêa de Araújo

Leonardo Barros Corrêa de Araújo

Graduado em Direito pela UFPE. Mestrando em Direito Comercial pela PUC/SP. Pós-graduado (LL.M.) em Direito Societário no Insper/SP. Membro da Comissão de Direito Bancário da OAB/PE. Advogado com atuação em Direito Societário no escritório monteiro de castro, setoguti advogados.

Daniel Jerônimo Magalhães

Daniel Jerônimo Magalhães

Bacharel em direito pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Advogado atuante na área de direito societário, M&A e mercado de capitais do Monteiro de Castro Setoguti Advogados.

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