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O caso 123 Milhas e a publicação dos pronunciamentos judiciais nas recuperações judiciais

O Judiciário e a saga dos conflitos sistêmicos, uma breve reflexão sobre a tutela jurisdicional da recuperação judicial e as possíveis consequências práticas.

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Atualizado às 07:43

Como já advertido pelos autores em publicações anteriores¹, os conflitos sistêmicos tem sido absolutamente relevantes para atmosfera da nossa economia real. Já tivemos pedido de recuperação judicial de sociedade empresária que era concessionária de energia elétrica, assim como de players dos setores de Telecomunicação, Mineração, Engenharia e Petroquímica, além de agentes econômicos de áreas sensíveis como educação e saúde.

Após iniciarmos o ano com espanto das "inconsistências contábeis" de uma gigante do varejo, agora é a vez do mercado em geral, especialmente os consumidores de pacotes de viagem, naufragarem (ir ao fundo) com a notícia do pedido de recuperação judicial da 123 VIAGENS E TURISMO LTDA, NOVUM INVESTIMENTOS PARTICIPAÇÕES S/A e ART VIAGENS E TURISMO LTDA, mais conhecido como caso 123 milhas.

Em breve resumo, cuida-se uma empresa familiar que admitiu ao Poder Judiciário que suas sociedades possuiriam uma dívida de R$ 2.308.724.726,25 (dois bilhões trezentos e oito milhões setecentos e vinte e quatro mil setecentos e vinte e seis reais e vinte e cinco centavos) e que necessitariam salvaguardar o emprego de seus 427 funcionários (sendo 309 da 123 viagens e Turismo Ltda e 118 da Art Viagens e Turismo Ltda), restando aí a evidência da sua pretensa função social. Em uma conta simples, revela-se uma importância aproximada de R$ 5,5 milhões de reais de dívidas para cada emprego gerado, prejuízo esse obtido a custo de um alcance médio de 5 milhões de consumidores/ano.

Também em apertada síntese, o negócio da 123 milhas consiste em ofertar ao público em geral a venda de passagens áreas e pacotes de viagens com datas flexíveis, cuja emissão do bilhete ocorria posteriormente.  Cuidava-se de uma espécie de produto de "poupança popular", em que a sociedade empresária fazia uma oferta pública a aqueles que aceitavam fazer o pagamento antecipado do preço (definido pela 123 milhas) com a promessa ao público consumidor de que a 123 milhas teria "know how" de reconhecer o "melhor momento" para a compra da passagem ou pacote anteriormente adquirido pelo consumidor via plataforma da 123 milhas.

Aparentemente, estava em curso uma operação de "poupança popular" administrada por uma devedora que apresentou como seus principais ativos a propriedade de diversos microcomputadores, impressoras, cadeiras, mesas e até almofadas de decoração.

A despeito de ser ou não papel do Poder Judiciário avaliar as razões da crise econômico-financeira e também de se pronunciar sobre a viabilidade econômica ou não da 123 milhas, este artigo possui um aspecto e consideração especifica sob a perspectiva processual do caso.

É que, na decisão que deferiu a tramitação da recuperação judicial, na esteira do que ocorre em outros casos, o Juízo da 1ª Vara Empresarial de Belo Horizonte foi enfático ao advertir que as habilitações/impugnações/divergências protocoladas no andamento da recuperação judicial serão desconsideradas e extraídas dos autos ou colocadas sem visualização.

Isso porque, com o deferimento da recuperação judicial, os credores possuem prazo de 15 (quinze) dias corridos, a partir da publicação do edital de credores (art. 7º §1º e 52, §1º da lei 11.101/05), para a apresentação de habilitações/divergências diretamente ao Administrador Judicial. Além disso, eventuais habilitações retardatárias ou impugnações deverão ser objeto de ajuizamento em incidentes próprios e não nos próprios autos da recuperação judicial.

Essa conduta visa resguardar e proteger a tramitação da recuperação judicial de problemas que são comumente enfrentados na prática, que vem a ser o erro processual comum de credores protocolarem habilitações/divergências/impugnações nos autos principais da recuperação judicial.

Outra circunstância enfrentada pelas tramitações de Recuperações Judiciais que, porém, não foi objeto de expresso comando no caso da 123 milhas, é sobre o cadastramento no Processo Judicial Eletrônico (PJE) dos procuradores (advogados) e seus constituintes (credores) que atravessam petições no curso do processo de Recuperação Judicial juntando a procuração e os atos constitutivos (este último, no caso de pessoas jurídicas), a fim de que sejam intimados dos atos decisórios a ser proferidos na recuperação judicial.

A habilitação processual (leia-se representação no processo de credores interessados através de procuradores constituídos) em casos de conflitos sistêmicos de milhares de credores também pode ter o condão de tumultuar (ainda que não seja esse o objetivo) o manuseio de uma recuperação judicial do porte da 123 milhas.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina² tem decisão no sentido de que os credores não são parte processual da recuperação judicial, ainda que estejam representados por advogados, cabendo aos credores acompanhar de forma constante o diário oficial do Poder Judiciário como forma de tomar conhecimento dos andamentos da recuperação judicial.  O Tribunal do Rio de Janeiro3 tem posição recente no mesmo sentido.

 O STJ4 também já decidiu pela dispensa de intimação dos patronos dos credores, mesmo se já constituído nos autos, revelando só ser indispensável nos casos das habilitações/impugnações em autos apartados já na fase contenciosa.

Em outra perspectiva, permanecem hígidos os dispositivos do estatuto da advocacia (lei  8.906/94) e do próprio Código De Processo Civil quando propugnam que é indispensável a publicação nos diários do Poder Judiciário do nome dos Advogados, sob pena de nulidade.

Não se pode negar que a lei 11.101/05 previu a intimação dos credores por meio de editais em diversas situações, como no caso da verificação dos créditos e na apreciação do plano de recuperação judicial. Contudo, existem outras situações de interesse dos credores que não possuem essa previsão específica. A título exemplificativo, na intervenção dos credores no caso de autorização judicial para alienação de bens do ativo não circulante, o artigo 66, § 1º fala apenas em publicação da decisão. De outro lado, o artigo 56-A, que trata da juntada de termos de adesão suficientes para aprovar o plano de recuperação, não fala sobre como será realizada a intimação dos credores para apresentarem eventuais oposições. Assim, vê-se que a situação não é tão simples.

Nesse sentido, o debate que se avizinha é sobre o dever de cadastrar os advogados de credores para que recebam as publicações veiculadas no diário do Poder Judiciário ou se devem ser intimados apenas via edital dos atos e decisões da recuperação judicial.

O fato é que o processo de recuperação judicial é um meio, que necessita ser dinâmico e flexível,5  pelo que vai ensejar a adoção de técnicas processuais mais abertas a fim de observar as exigências do caso concreto.

A recuperação judicial, desenvolvida com as suas características de pluralidade de interesses e objetos variados, deve atender à celeridade, exigindo, por vezes, uma conduta mais ativa da jurisdição, diferente daquela ocorrida em outros tipos de processo.

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1 https://www.migalhas.com.br/depeso/380459/e-agora-americanas e https://www.migalhas.com.br/depeso/385452/e-agora-americanas-parte-2

2 "AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. DECISÃO QUE INDEFERIU O PEDIDO DE CADASTRAMENTO DOS ADVOGADOS DA CREDORA COM VISTAS À INTIMAÇÃO DE TODAS AS PUBLICAÇÕES OCORRIDAS NOS AUTOS. ACERTO DA DECISÃO AGRAVADA. PRETENSÃO QUE NÃO ENCONTRA AMPARO NA LEI N. 11.101/05, QUE PREVÊ A PUBLICAÇÃO DE EDITAIS PARA CIENTIFICAÇÃO DOS CREDORES ACERCA DOS ATOS HAVIDOS NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CREDORES QUE, AINDA QUE ESTEJAM REPRESENTADOS POR ADVOGADO, NÃO ASSUMEM POSIÇÃO DE PARTE NO PROCESSO." 

(TJSC, Agravo de Instrumento n. 4005717-23.2016.8.24.0000, Relator Desembargador Rogério Mariano do Nascimento, Primeira Câmara de Direito Comercial, j. 20-4-17)

3 "A LEI 11.101/05 PREVÊ QUE A CIENTIFICAÇÃO DOS CREDORES SE DÊ POR MEIO DE EDITAL, INEXISTINDO PREVISÃO DE INTIMAÇÃO DOS ADVOGADOS DOS CREDORES NO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. (TJRJ, Agravo de instrumento n. 0075548-94.2021.8.19.0000, Relator Desembargador SERGIO RICARDO DE ARRUDA FERNANDES - Julgamento: 13/04/2022 - PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL)

4 PROCESSUAL CIVIL E COMERCIAL. RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS. EDITAL. PUBLICAÇÃO. ART. 7º, §§ 1º E 2º, DA LEI N. 11.101/05. CARÁTER PRELIMINAR E ADMINISTRATIVO. INTIMAÇÃO DOS PATRONOS DOS CREDORES. DESNECESSIDADE. IMPUGNAÇÕES. FASE CONTENCIOSA. ART. 8º DA LEI N. 11.101/05. REPRESENTAÇÃO POR ADVOGADO. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.

1. São de natureza administrativa os atos procedimentais a cargo do administrador judicial que, compreendidos na elaboração da relação de credores e publicação de edital (art. 52, § 1º, ou 99, parágrafo único, da lei 11.101/05), desenvolvem-se de acordo com as regras do art. 7º, §§ 1º e 2º, da referida lei e objetivam consolidar a verificação de créditos a ser homologada pelo juízo da recuperação judicial ou falência.

2. O termo inicial do prazo de 15 (quinze) dias para apresentar ao administrador judicial habilitações ou divergências é a data de publicação do edital (art. 7º, § 1º, da lei 11.101/05).

3. Na fase de verificação de créditos e de apresentação de habilitações e divergências, dispensa-se a intimação dos patronos dos credores, mesmo já constituídos nos autos, ato processual que será indispensável a partir das impugnações (art. 8º da lei 11.101/05), quando se inicia a fase contenciosa, que requer a representação por advogado.

4. Se o legislador não exigiu certa rotina processual na condução da recuperação judicial ou da falência, seja a divulgação da relação de credores em órgão oficial somente após a publicação da decisão que a determinou, seja a necessidade de intimação de advogado simultânea com a intimação por edital, ao intérprete da lei não cabe fazê-lo nem acrescentar requisitos por ela não previstos.

5. Recurso especial conhecido e desprovido.

(REsp n. 1.163.143/SP, relator Ministro João Otávio de Noronha, Terceira Turma, julgado em 11/2/2014, DJe de 17/2/14.)

6 SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na lei 11.101/05. 3. ed. São Paulo: Almedina, 2018. p. 118.

Tadeu Alves Sena Gomes

Tadeu Alves Sena Gomes

Mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). LL.M em Direito Empresarial pela Fundação Getulio Vargas (FGV). Pós-Graduado em Processo Civil pelo Centro de Cultura Jurídica da Bahia (CCJB). Advogado da Tadeu Alves Sena Gomes Sociedade de Advogados.

Marlon Tomazette

Marlon Tomazette

Advogado no escritório Tomazette, Franca e Cobucci Advogados.

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