Teorias do dano concorrencial em integrações verticais e conglomerais: quais os riscos?
Antes de mais nada, é preciso estabelecer o que se entende por "teoria do dano". Apesar de muito repetido, o uso da expressão é de algum modo recente no direito antitruste.
segunda-feira, 4 de setembro de 2023
Atualizado às 07:56
Conforme mencionado nos dois artigos anteriores,1 que trataram do conceito de integrações verticais e conglomerais e do seu fluxo de análise, passamos agora para o aprofundamento do que seriam as chamadas "teorias do dano" concorrencial em integrações verticais e conglomerais.
Antes de mais nada, é preciso estabelecer o que se entende por "teoria do dano". Apesar de muito repetido, o uso da expressão é de algum modo recente no direito antitruste. Trata-se de analisar qual seria a tese por trás do risco concorrencial da proposta de análise antitruste. Ou seja, quando se busca analisar as teorias do dano concorrencial em integrações verticais e conglomerais, o que se está buscando é analisar quais seriam as razões que, em uma determinada operação, poderiam, em tese, levantar riscos à concorrência, para que se possa, no caso concreto, avaliar a pertinência, ou não, desse risco identificado.
A versão preliminar do chamado "Guia V+" do Cade consolida os melhores procedimentos e práticas usualmente adotados pela autarquia na análise de efeitos não horizontais em atos de concentração.2 Como se trata de uma análise voltada para relações verticais e conglomerais, as análises concentram-se no potencial lesivo à concorrência a jusante (ou seja, no elo seguinte da cadeia produtiva) e na cadeia a montante (ou seja, no elo anterior da cadeia produtiva).
As preocupações com atos de concentração verticais e conglomerais circunscrevem-se a duas principais espécies de possíveis efeitos anticompetitivos, a saber: os (1) efeitos não coordenados/unilaterais e os (2) coordenados. Retoma-se, aqui, uma explicação rápida sobre o que seriam efeitos unilaterais e coordenados.
Por um lado, entre os (1) efeitos não coordenados/unilaterais estão aqueles que podem ser decorrentes da atuação de uma única empresa, individual e unilateralmente. Seria o caso de analisar se a empresa resultante da operação, com posição dominante3, poderia implementar determinadas práticas comerciais que teriam o efeito de prejudicar o mercado. Recorda-se, como exemplo de práticas unilaterais, a exigência de exclusividade, a recusa de contratar, a discriminação, a criação de dificuldades à atividade de concorrentes, entre outros.
Efeitos não coordenados/unilaterais das (1.A) integrações verticais podem ocorrer quando as empresas exercem poder de mercado, aumentando de forma lucrativa e sustentável os preços (ou diminuindo quantidades, qualidade ou inovação) sem depender necessariamente do comportamento das demais. A autoridade antitruste deve avaliar se a operação diminui as pressões concorrenciais enfrentadas pelas requerentes no mercado (e.g., eliminação de concorrente), de modo que as requerentes teriam incentivos para aumentar os preços (ou diminuir a oferta, qualidade ou inovação) dos produtos após a operação.
Pesquisa empírica de Ianelli sinaliza que, entre 2014 e 2018, o Cade apontou a existência dos seguintes principais tipos de efeitos unilaterais no voto vencedor dos casos de integração vertical analisados pelo Tribunal: (i) discriminação a montante, (ii) discriminação a jusante; (iii) aumento de custo a montante; (iv) aumento de custo a jusante, (v) acordo de exclusividade.4
Por sua vez, quanto aos efeitos não coordenados/unilaterais das (1.B) integrações conglomerais, a preocupação é com o fechamento de mercado. Isso, porque a combinação de produtos em mercados relacionados poderia proporcionar à entidade resultante da concentração a capacidade e o incentivo para utilizar, por meio da alavancagem, a sua posição dominante em um determinado mercado para reforçar sua posição em outro mercado. Exemplos identificados pela literatura são o bundling puro ou misto, a venda casada técnica ou a vinculação contratual. Para além da estratégia de exclusão dos concorrentes em integrações conglomerais, outras práticas mais sutis podem ser adotadas. Práticas como, celebração de acordos de reciprocidade entre concorrentes, venda casada, preço predatório e exercício de poder de portfólio costumam ser objeto de análise nestes casos.
Pesquisa de Renzetti sinaliza, a partir da análise qualitativa de operações de integração conglomeral examinadas pelo Tribunal do Cade entre 2017 e 2022, que a possibilidade de fechamento de mercado é recorrente nos votos e pareceres divulgados pela autoridade. O fechamento de mercado está, segundo o autor, intrinsicamente ligado à preocupação relacionada ao aumento de poder de portfólio das empresas requerentes, capazes de alavancar o poder de mercado de um agente econômico para outro segmento pouco relacionado.5
Assim, as principais teorias do dano por efeitos não coordenados/unilaterais em integrações verticais e conglomerais são as seguintes:
- Fechamento (de insumos e de clientes);
- Elevação de custos de rivais e
- Acesso a informações concorrencialmente sensíveis.
Por sua vez, entre os (2) efeitos coordenados estão as preocupações de que, ao aprovar uma determinada operação, os agentes econômicos teriam maiores incentivos para atuarem de modo coordenado, ou seja, em conjunto, em um arranjo colusivo. Como exemplo de condutas coordenadas estão, por exemplo, o cartel e a influência de conduta comercial uniforme. Portanto, diferentemente dos efeitos unilaterais, os efeitos coordenados dependem necessariamente do comportamento das demais empresas do mercado.
Efeitos coordenados das (2.A) integrações verticais podem advir do favorecimento à colusão, uma vez que (i) em função da redução de número de concorrentes no mercado a integração pode facilitar a coordenação entre as empresas; (ii) aumentam a possibilidade de mecanismos de dissuasão por parte da empresa integrada e (iii) reduzem a possibilidade de reação de empresas que não participam da coordenação e não são integradas, entre outros fatores.
Pesquisa empírica de Ianelli sinaliza que, entre 2014 e 2018, o Cade apontou a existência dos seguintes principais tipos de efeitos unilaterais no voto vencedor dos casos de integração vertical analisados pelo Tribunal: (i) verificação de desvios, (ii) mecanismos de dissuasão; (iii) reação de empresas terceiras.6
Entre os efeitos coordenados das (2.B) integrações conglomerais, a preocupação surge com o risco de a operação influenciar a probabilidade de um comportamento coordenado em um determinado mercado ao reduzir o número de concorrentes efetivos a ponto de que a coordenação tácita passe a ser uma possibilidade. Além disso, os concorrentes não excluídos do mercado podem ter menos propensão à contestabilidade do conglomerado, preferindo a proteção que lhes é proporcionada por preços mais elevados. Uma concentração conglomeral poderia aumentar o âmbito e a importância da concorrência multimercados, dado que a interação concorrencial em diversos mercados poderia aumentar a gama e a eficácia dos mecanismos disciplinadores para garantir o respeito às condições de coordenação.
Pesquisa de Renzetti sinaliza que, entre as operações de integração conglomeral analisadas pelo Cade, as principais teorias do dano por efeitos coordenados em integrações verticais e conglomerais são:
- criação/favorecimento das condições da coordenação;
- possibilidade de monitoramento/verificação de desvios;
- existência de mecanismos de dissuasão e
- probabilidade de reação das empresas não participantes.
A tabela a seguir apresenta uma síntese didática das principais teorias do dano em integrações verticais e conglomerais.
Além dessas, há outras teorias do dano possíveis, ainda que menos estruturadas e recorrentes, como: (i) menores incentivos à concorrência, redução de incentivos à inovação ou a melhores preços e produtos dos serviços; (ii) riscos concorrenciais potenciais e dinâmicos se, por conta da operação, as empresas deixarem de lançar produtos concorrentes ou se a operação visar a eliminar um agente de mercado disruptivo ou inovador; (iii) circunvenção de normas regulatórias (evading regulation) ou de acordos privados de longo prazo; (iv) impedimento à interoperabilidade e multi-homing e (v) alterações em parâmetros concorrenciais não relacionados a preços (especialmente relevantes em mercados em que os consumidores não pagam um valor monetário para adquirir ou utilizar determinado serviço ou em mercados nos quais os preços são regulados); entre outras.
Nos próximos artigos, analisaremos cada uma das teorias do dano, a fim de avaliar seus possíveis impactos em operações futuras no Brasil.
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1 ATHAYDE, Amanda. Fusões verticais e conglomerais: O que são e como isso pode impactar a atuação das empresas no Brasil? Portal Migalhas, 22.8.2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/392130/fusoes-verticais-e-conglomerais-o-que-sao-e-como-impacta-as-empresas. E também: ATHAYDE, Amanda. Fluxo de análise concorrencial de fusões verticais e conglomerais: o que muda? Portal Migalhas, 28.8.2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/392490/fluxo-de-analise-concorrencial-de-fusoes-verticais-e-conglomerais.
2 Contribuições podem ser apresentadas na plataforma Participa+ Brasil. Acesso em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/guia-v
3 Nos termos do §2º do art. 36, §2o da Lei 12.529/2011, presume-se posição dominante sempre que uma empresa ou grupo de empresas for capaz de alterar unilateral ou coordenadamente as condições de mercado ou quando controlar 20% (vinte por cento) ou mais do mercado relevante, podendo este percentual ser alterado pelo Cade para setores específicos da economia.
4 IANELLI, Vívian Salomão. Análise empírica dos atos de concentrações verticais: como o Cade tem endereçado os efeitos unilaterais e coordenados em seus julgados? 2019. 74 f., il. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito). Universidade de Brasília, Brasília, 2019. p. 41.
5 RENZETTI, Bruno Polonio. Atos de concentração conglomerados e ecossistemas digitais: Nova teoria para o controle de estruturas no Brasil./ Bruno Polonio Renzetti; orientador, José Marcelo Martins Proença - São Paulo, 2023. 247 f. p. 126.
6 IANELLI, Vívian Salomão. Análise empírica dos atos de concentrações verticais: como o Cade tem endereçado os efeitos unilaterais e coordenados em seus julgados?. 2019. 74 f., il. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito). Universidade de Brasília, Brasília, 2019. p. 41.
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*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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Amanda Athayde
Professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional e Compliance, consultora no Pinheiro Neto. Doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I - Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa comercial e interesse público.