Os direitos originários às terras indígenas e a ACO 1.100, no STF
Sem dúvida há que se falar em aperfeiçoamento do sistema indenizatório a ocupantes de boa-fé em terras indígenas, mas parece apocalíptico o cenário de investidas contra os direitos assegurados pela Constituição Cidadã, que exalçou o indigenato, tendo por base a jurisprudência constitucional que pode aniquilar a própria história da defesa das terras indígenas enquanto bens da União, por parte da corte constitucional do Brasil.
quinta-feira, 31 de agosto de 2023
Atualizado às 13:55
STF retoma o julgamento, nesta quarta-feira (30), da Ação Cível Originária (ACO) 1100, em que um grupo de agricultores pede a anulação da portaria declaratória do Ministério da Justiça que definiu os limites da Terra Indígena (TI) Ibirama-LaKlaño, que agrega três diferentes povos, os Xokleng, os Kaingang e os Guarani, nos municípios catarinenses de Vítor Meireles, José Boiteux, Itaiópolis e Doutor Pedrinho, no Alto Vale do Itajaí.
A ação foi proposta em novembro de 2007, solicitando a anulação da portaria 1.128/03/MJ, que declarou de posse permanente a terra ocupada pelos três povos, mas cuja história remonta, evidentemente, aos tempos do Brasil-Colônia e do Brasil-Império. Antes de o Brasil se tornar independente de Portugal na década de 1820, já a política indigenista de D. João VI (1767-1826), que é considerada uma das mais anti-indígenas de nossa história, promulgou uma carta régia que mandava proceder a uma guerra contra os "bugres" arredios de São Paulo e do que hoje constituem Paraná e Santa Catarina, em novembro de 1808, com a justificativa de que seriam antropófagos.
Na transição do Império para a República, o Governo do Estado de Santa Catarina contratou oficialmente profissionais conhecidos como "bugreiros", que eram assassinos e caçadores de indígenas, objetivando exterminá-los para a expansão do que hoje se chama de fronteira agrícola. Como se sabe, os migrantes provenientes da Europa gozavam do instituto jurídico do colonato, enquanto os indígenas, considerados incapazes para os atos da vida civil, eram na prática mantidos sob a égide do instituto orfanológico, segundo o qual eram equiparados aos órfãos em matéria processualística. O teórico do Direito João Mendes de Almeida Junior (1856-1923), que foi ministro do STF entre 1916 e 1922, lembrava o quanto o colonato era vantajoso aos imigrantes e pernicioso aos indígenas; em 1902, ele sistematizou aquilo que batizou de "indigenato" e "posse indigenata", tendo por base conceitos jurídicos nobiliárquicos da medievalidade germânica, diferindo de modo incisivo os direitos de ocupação dos povos nativos, que são originários e congênitos, da ocupação dos não indígenas, sempre dependente de títulos e comprovações cartorárias e notariais de modo geral.
Em 1914, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) contatou os Xokleng da região para atraí-los e sedimentá-los no espaço que lhes reservaria para morada. Em março de 1926, o decreto 15, do governador de Santa Catarina, "doou" as terras dos Xokleng para o SPI com o fito de apaziguá-los em suas demandas territoriais.
Em decorrência da construção de uma barragem e do avanço da colonização das terras pelos não indígenas, o esbulho reduziu os cerca de 30/40 mil hectares a 14 mil apenas. Nesse meio tempo, inúmeros líderes Xokleng foram mortos por reivindicarem sua própria terra ancestral, sendo célebre o caso do líder Brasilio Pri-prá, que foi à sede do SPI no Rio em 1954 e, na volta, foi assassinado.
Somente na década de 1990 foram retomados estudos e pesquisas por parte da Funai, sucessora administrativa do SPI, para delimitar a Terra Ibirama. Ocorre, contudo, que os estudos foram realizados de modo precário, haja vista a perene carência de recursos humanos, logísticos e operacionais da agência indigenista estatal. Em 15 de fevereiro de 1996, o Presidente Fernando Henrique Cardoso assinou o decreto que demarcou administrativamente a terra já ocupada pelos Xokleng, os Kaingang e os Guarani, estabelecendo em 37 mil hectares a área.
Constituído o grupo técnico de identificação e delimitação da Terra Indígena Ibirama-Laklãño em 1999, os estudos foram finalizados em 2003 e publicados no mesmo ano enquanto Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID); em agosto, o então ministro de Estado da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, assinou a portaria declaratória. Em dezembro do mesmo ano foi ajuizada ação ordinária por parte de produtores rurais locais; em razão da reclamação 3.205, o STF anulou todos os atos decisórios praticados; em novembro de 2007, Faustino Feliciano e outros ajuizaram a ACO 1.100/SC, contra a União e a Funai, pedindo a anulação da portaria ministerial. Em agosto de 2008, a União e a Funai ajuizaram, por sua vez, a ação cautelar 2.031/SC contra o Estado de Santa Catarina e sua autarquia ambiental (Fundação Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente-Fatma), objetivando que as rés fossem impedidas de praticar atos contrários aos procedimentos do processo administrativo demarcatório da TI Ibirama-Laklãño. Já em dezembro de 2009, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública contra a União, o Incra e o ICMBio, concernente à proteção da Área de Relevante Interesse Ecológico da Serra da Abelha.
O relator das ações era o Min. Ricardo Lewandowski, que por força do art. 38 do Regimento Interno do STF, passou a função ao Min. Edson Fachin. Nesse interim, a Fatma-SC ingressou com ação de reintegração de posse em face dos indígenas, da Funai e da União, alegando presença irregular na Reserva Biológica Estadual Sassafrás; a sentença de primeiro grau e do TRF1 manteve/reintegrou a posse à Fatma-SC, pelo que se formulou o recurso extraordinário 1.017.365/RS, a cujo tema se aplicou o instituto da repercussão geral (CPC, art. 1.035).
No fundo, o julgamento coloca em destaque na sociedade brasileira duas ideias-chave sobre os direitos territoriais indígenas em contraposição aos direitos de posse e propriedade consagrados pelo direito civil-constitucional brasileiro. Em geral, argumenta-se que "os índios" têm direito a "muitas terras", e que não seriam produtores rurais do quilate daqueles outros, que se mostram grandes plantadores e comerciantes.
Há verdadeiro diálogo de surdos no debate jurídico, pois também se insiste na primazia dogmática da segurança jurídica, não sendo disfarçado que se trata da segurança jurídica para os não indígenas. Em relação ao que se convencionou chamar de "tese do marco temporal", ou "tese do fato indígena", publicamos diversos textos, assim como inumeráveis grandes nomes do Direito Constitucional pátrio, ressaltando que a fixação da data de 5 de outubro de 1988 para a "aferição" da ocupação e de sua tradicionalidade em uma terra indígena é algo perfeitamente inconstitucional, haja vista que o indigenato mendesiano - constitucionalizado desde 1934 - propugnou que a posse de um povo indígena em sua terra não é revestida apenas do "jus possessionis", mas também do "jus possidendi", sendo nulos os títulos com base em eventuais aquisições e doações, quando ofenderam o direito originário de um grupo étnico (CRFB, art. 231). Sem dúvida há que se falar em aperfeiçoamento do sistema indenizatório a ocupantes de boa-fé em terras indígenas, mas parece apocalíptico o cenário de investidas contra os direitos assegurados pela Constituição Cidadã, que exalçou o indigenato, tendo por base a jurisprudência constitucional que pode aniquilar a própria história da defesa das terras indígenas enquanto bens da União, por parte da corte constitucional do Brasil.