Indenização por abandono afetivo e saúde mental
O abandono afetivo, mais comumente observado na relação de pai para filhos (Pereira, 1999), pode produzir marcas emocionais, podendo chegar ao extremo do adoecimento psíquico ou mesmo delinquência juvenil.
segunda-feira, 28 de agosto de 2023
Atualizado às 13:01
O abandono afetivo
O abandono afetivo, mais comumente observado na relação de pai para filhos (Pereira, 1999), pode produzir marcas emocionais, podendo chegar ao extremo do adoecimento psíquico ou mesmo delinquência juvenil.
Essa ausência paterna e o declínio do pater-viril está acima da questão da estratificação social. É um fenômeno e conseqüência das transformações sociais iniciadas na revolução feminista, a partir da redivisão sexual do trabalho e a consequente queda do patriarcalismo.
A família passou por mudanças consideráveis desde a antiguidade até a modernidade, porém cada um de seus membros, mesmo que de forma diferente, ainda exerce papel fundamental e estruturante, ficando cada vez mais evidente e necessária a atuação de ambos os pais na educação e criação dos filhos. Dessa forma, é preciso que os genitores tenham plena consciência da importância que têm na vida e na educação dos filhos (Dill e Calderan, 2011).
A rejeição ou negligência afetiva por parte de um ou ambos os genitores pode ser caracterizada, por exemplo, pela ausência de interesse ou busca por contatos com a criança, ainda que telefônicos; ausência ou inconstância em encontros marcados, quando não convivem na mesma residência; faltas sistemáticas a eventos importantes como aniversários, reuniões e celebrações na escola; presença condicionada às preferências - horário, local, ritmo, atividade, entre outras - apenas do genitor; desprezo expresso ao infante. O abandono afetivo pode ocorrer ainda que seja garantida a sobrevivência e auxílio material e financeiro.
Apesar da Lei não poder "obrigar os detentores do poder familiar a amar ou nutrir afeto pelo filho, existe o dever de dirigir a criação e a educação da criança ou do adolescente, o que implica participar ativamente da vida dos filhos" (Tribunal de Justiça de Minas Gerais, 2023).
Para Dias (2011, p. 425): "A autoridade parental está impregnada de deveres não apenas no campo material, mas, principalmente, no campo existencial, devendo os pais satisfazer outras necessidades dos filhos, notadamente de índole afetiva".
Os direitos da criança e do adolescente
Compete aos pais, que detêm a capacidade natural e são designados pela legislação, estabelecer métodos para proporcionar a educação dos filhos. Esse processo educativo se desenrola por meio da convivência, durante a qual são fortalecidos os laços emocionais e de valores morais com a família, tendo reflexos na sociedade. A expressão de afeto dentro do âmbito familiar corresponde à observância da dignidade humana, princípio essencial da proteção à personalidade, conforme disposto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal.
A convivência efetiva entre pais e filhos, mesmo após o término da relação conjugal, é um direito fundamental, crucial para o desenvolvimento saudável da criança. A garantia do direito à convivência familiar é estabelecida no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seus artigos 4º, caput e 19 a 52, e também é respaldada com ênfase na Constituição Federal, no artigo 227:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
De acordo com o ECA todo menor de idade tem direito à convivência familiar (art. 4°). Em seu artigo 5° especifica (grifo dos autores):
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
O ECA, em seu artigo 19°, preconiza que toda criança ou adolescente tem o direito de ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar, em ambiente que proporcione o seu pleno desenvolvimento pessoal e social. Portanto, o abandono afetivo pode ser entendido como uma violação desse direito fundamental, uma vez que priva a criança ou adolescente do apoio emocional e da estrutura familiar necessários ao seu desenvolvimento saudável.
Nesse sentido, o abandono afetivo configura uma violação direta de direitos da criança assegurados pelo ECA e pela Constituição Federal, uma vez que é dever da família, garantir a saúde mental e emocional da criança ou adolescente, também através de sua presença e participação ativa.
A indenização por abandono afetivo
No contexto jurídico brasileiro, a possibilidade de compensação financeira em casos de negligência emocional tem sido objeto de discussão, sendo fundamental para os operadores do direito compreenderem as implicações legais e psicológicas desse assunto.
A busca por indenização por abandono afetivo muitas vezes se baseia na ideia de que a ausência de afeto e cuidado pode causar danos morais e até psicológicos e psiquiátricos significativos.
Não há como obrigar um pai a amar um filho, mas a legislação lhe assegura um direito de ser cuidado. Os responsáveis que negligenciam ou são omissos quanto ao dever geral de cuidado podem responder judicialmente por terem causado danos morais a seus próprios filhos (TJDFT, 2019).
A questão da indenização por abandono afetivo está fundamentada no arcabouço legal brasileiro, em especial no que diz respeito ao dano moral e dano psíquico. De acordo com o artigo 186 do Código Civil: "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".
Dano psíquico - ou psicológico - refere-se a uma lesão ou prejuízo causado à saúde mental de uma pessoa em decorrência de um evento traumático, abusivo, estressante ou perturbador.
O dano psíquico se traduz em psiquiatria e psicologia em transtorno mental (Oliveira, Rigonatti e Ribeiro, no prelo). Ou seja, pode manifestar-se por meio de sintomas como ansiedade, depressão, estresse, distúrbios do sono, problemas de concentração, entre outros, que correspondem a uma psicopatologia.
De acordo com a legislação brasileira, o dano psíquico não é um termo jurídico específico, mas é reconhecido como um tipo de dano moral. O dano moral abrange lesões aos direitos da personalidade, que envolvem a esfera psíquica, emocional e moral da pessoa. Ele pode ocorrer em situações que causem sofrimento psicológico e abalem a integridade psíquica do indivíduo.
A legislação brasileira prevê a reparação do dano moral, e, portanto, do dano psíquico, com o objetivo de compensar a vítima pelo sofrimento causado, através do pagamento de indenização. O valor da indenização é determinado pelo juiz, considerando as circunstâncias do caso.
No momento da análise de um litígio que aborde a compensação por abandono afetivo paterno-filial, o juiz proferirá sua sentença com base no conjunto de provas apresentadas, buscando evidenciar o dano ocorrido e sua extensão. Dentro dessa perspectiva, torna-se evidente a relevância dos pareceres técnicos de psiquiatras forenses, psicólogos jurídicos e assistentes sociais para comprovar a ocorrência do dano e sua amplitude (Dias, 2007).
Abandono afetivo e saúde mental
Segundo a abordagem da ciência psicológica, a negligência afetiva pode causar dano psicológico, que refere-se à deterioração repentina e imprevisível das funções psicológicas, que causa à vítima tanto prejuízos emocionais quanto materiais, levando à limitação de suas atividades cotidianas ou profissionais.
Do ponto de vista psicológico, a conexão entre abandono afetivo e saúde mental é inegável. Estudos científicos têm demonstrado que experiências de negligência emocional podem resultar em problemas psicológicos duradouros, como depressão, ansiedade, baixa autoestima e dificuldades nos relacionamentos interpessoais. Especialmente em casos de abandono na infância, os efeitos podem reverberar ao longo da vida adulta.
No que concerne aos impactos do abandono afetivo sobre a saúde mental, diversos estudos e pesquisas têm enfatizado essa relação. De acordo com a pesquisa de Waikamp e Serralta (2018), o abandono afetivo na infância pode estar associado ao desenvolvimento de transtornos mentais na vida adulta, em especial a depressão. Dornelas (2015), aponta que experiências de negligência emocional podem resultar em crianças e adolescentes comportamentos agressivos, choros frequentes, tristeza e depressão. Calderan (2015) ressalta que este tipo de violência pode levar inclusive a comportamentos marginais, contra a lei, de criminalidade.
Um estudo de 2022 realizado pela Universidade de Sydney na Austrália (Grummitt et al, 2022) com 569 participantes identificou que as negligências física e emocional combinadas foram associadas à depressão, ansiedade e estresse. No entanto, avaliando a negligência emocional e física separadamente, foi revelado que a negligência emocional estava conduzindo essa associação com depressão, ansiedade e estresse, e não a negligência física. Os autores concluíram que a negligência emocional é um fator de risco para problemas de saúde mental no início da idade adulta.
As obras de autores renomados no campo da Psicologia, como John Bowlby e Mary Ainsworth, também destacam os efeitos duradouros do abandono afetivo sobre a formação do apego e o desenvolvimento emocional. Bowlby afirmava que a ligação segura entre a criança e o cuidador é essencial para um desenvolvimento saudável. O abandono afetivo paterno, ou a falta de uma figura paterna que proporcione uma base segura e apoio emocional, pode afetar negativamente o desenvolvimento emocional da criança.
Desde esta perspectiva, el apego contribuye a la supervivencia física y psíquica del sujeto generando seguridad y facilitando el conocimiento del mundo, en la medida en que el niño va conformando modelos de representación internos que estructuran su vinculo con el mundo y con los otros significativos (Bowlby, 1979).
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Esto permite el desarrollo de los dos aspectos de un vínculo de apego saludable:
1. que los padres le proporcionen al niño una base segura
2. que lo animen a explorar a partir de ellos (Bowlby, 1979).
Las características de la construcción del vínculo de apego definen modelos representativos de si mismo y de los otros que permanecen actuando en otras etapas de la vida y condicionan futuros vínculos (Beltrame, 2011).
Segundo Bowlby (1988), quando a criança é privada dessa relação afetiva, pode enfrentar uma série de consequências prejudiciais, variando de acordo com o grau de privação. A privação parcial pode levar a angústia, necessidade exagerada de amor, sentimentos intensos de vingança e culpa, e até depressão. A privação quase total, muitas vezes observada em instituições de acolhimento, como creches e hospitais, pode resultar em danos mais severos no desenvolvimento psicoafetivo, conhecido como "hospitalismo". A privação total, por sua vez, pode afetar profundamente a capacidade da criança de estabelecer relações futuras com outras pessoas.
Em suma, os estudos de Bowlby e outros pesquisadores enfatizam a relevância de um vínculo afetivo saudável na infância para o desenvolvimento emocional e mental da criança. O abandono afetivo paterno pode ter efeitos duradouros na formação da personalidade e nas habilidades de relacionamento da criança, ressaltando a importância do cuidado emocional contínuo durante os primeiros anos de vida (Böing e Crepaldi, 2004).
Considerações finais
A busca por indenização no caso de abandono afetivo não deve ser encarada apenas como uma questão financeira. É uma oportunidade de trazer à tona a importância do cuidado emocional nas relações familiares. Nesse sentido, a atuação dos advogados assume uma dimensão mais ampla, contribuindo para a conscientização e a prevenção do abandono afetivo como forma de preservar a saúde mental de todos os envolvidos.
Para advogados, compreender a dinâmica entre abandono afetivo e saúde mental é essencial ao argumentar casos de indenização. A abordagem interdisciplinar, envolvendo profissionais do Direito e da Psicologia e Psiquiatria, pode fortalecer as fundamentações jurídicas com bases científicas sólidas, enriquecendo as alegações de danos psicológicos e emocionais decorrentes do abandono afetivo.
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BARG BELTRAME, Gabriel. BASES NEUROBIOLÓGICAS DEL APEGO: REVISIÓN TEMÁTICA. Cienc. Psicol., Montevideo , v. 5, n. 1, p. 69-81, mayo 2011 .
Böing, E., & Crepaldi, M. A.. (2004). Os efeitos do abandono para o desenvolvimento psicológico de bebês e a maternagem como fator de proteção. Estudos De Psicologia (campinas), 21(3), 211-226.
Bowlby, J. (1988). Cuidados maternos e saúde mental São Paulo: Martins Fontes.
Brasil. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069/1990.
Calderan, T. B. Abandono afetivo e suas consequências jurídicas. Revista da Faculdade de Direito de Uberlândia. http://www.seer.ufu.br/index.php/revistafadir/article/view/18545
Dias, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. atual. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 380-1.
Dias, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
Dill MA e Calderan TB. A importância do papel dos pais no desenvolvimento dos filhos e a responsabilidade civil por abandono. IBDFAM, 2011. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/703/A+import%C3%A2ncia+do+papel+dos+pais+no+desenvolvimento+dos+filhos+e+a+responsabilidade+civil+por+abandono+
Dornelas, B. G. (2015). Responsabilidade civil por abandono afetivo dos pais perante os filhos. (Monografia aprovada como requisito parcial para a obtenção do Grau de Bacharel em Direito).
Grummitt LR, Kelly EV, Barrett EL, Lawler S, Prior K, Stapinski LA, Newton NC. Associations of childhood emotional and physical neglect with mental health and substance use in young adults. Aust N Z J Psychiatry. 2022 Apr;56(4):365-375.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Pai Porque me abandonaste? . In: PEREIRA, Tânia da Silva (coord.). O melhor Interesse da Criança: um debate Interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 582.
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios - TJDFT. Abandono afetivo. 2019. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-semanal/abandono-afetivo
Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Pai deverá indenizar filha por abandono afetivo em R$ 30 mil, decide juiz. Direitonews 2023. Disponível em: https://www.direitonews.com.br/2023/08/pai-devera-indenizar-filha-abandono-afetivo-30-mil-decide-juiz.html
WAIKAMP, Vitória; BARCELLOS SERRALTA, Fernanda. Repercussões do trauma na infância na psicopatologia da vida adulta. Cienc. Psicol., Montevideo , v. 12, n. 1, p. 137-144, mayo 2018
Elise Karam Trindade
Graduada em Psicologia (ULBRA); Doutoranda em Novos Contextos de Intervenção Psicológica em Educação, Saúde e Qualidade de Vida no Instituto Superior Miguel Torga (Coimbra); Pós-graduanda em Psicologia Forense pelo IMED; Trabalha na área de laudos, perícias, avaliação neuropsicológica e psicodiagnóstica e supervisao técnica junto ao Instituto de Psicologia Prof. Jorge Trindade; Membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica (SBPJ); Consultora Consultiva da Sociedade Sul Brasileira de Psicanálise (PSYCHESUL).