Fluxo de análise concorrencial de fusões verticais e conglomerais: o que muda?
O fluxo de análise de uma operação vertical ou conglomeral segue basicamente o mesmo passo a passo de análise já previsto anteriormente no Guia H e consolidado na experiência, mas com relevantes peculiaridades. São
segunda-feira, 28 de agosto de 2023
Atualizado em 25 de agosto de 2023 14:53
Conforme mencionado em artigo anterior,1 em 20 de julho de 2023, a Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) publicou, para consulta pública, versão preliminar do chamado "Guia V+", documento consolidado com melhores práticas e procedimentos usualmente adotados pela autarquia na análise de efeitos não horizontais em atos de concentração. As contribuições podem ser apresentadas até o dia 18 de setembro de 2023.2
O Guia de Concentrações Horizontais (Guia H)3 e o Manual Interno da Superintendência-Geral para atos de concentração apresentados sob o rito ordinário4 já previam um fluxo de análise para as operações. Pesquisas empíricas anteriores, como a de Ianelli, já buscavam delinear os contornos mais comuns de análise, pelo Cade, desse tipo de operação.5 O que muda, então, com o Guia V+?
O fluxo de análise de uma operação vertical ou conglomeral segue basicamente o mesmo passo a passo de análise já previsto anteriormente no Guia H e consolidado na experiência, mas com relevantes peculiaridades. São basicamente 5 etapas a serem percorridas: Etapa 1: Definição do(s) mercado(s) relevante(s); Etapa 2: Determinação da participação no mercado e dos Índices de Concentração; Etapa 3: Análise do potencial lesivo à concorrência; Etapa 4: Análise dos benefícios econômicos líquidos decorrentes da operação e Etapa 5: Remédios antitruste. Neste artigo, destacaremos justamente as peculiaridades.
Quanto à Etapa 1: Definição do(s) mercado(s) relevante(s), a primeira peculiaridade advém do fato de que, em operações verticais ou conglomerais, o guia trata não de um único mercado, mas de dois ou mais tipos de mercado de produto/serviço: o mercado de insumos a montante (upstream - os vendedores do insumo) e o mercado de clientes a jusante (downstream - os demandantes do insumo). Assim, a análise geralmente requer a definição de mais mercados relevantes do que em concentrações horizontais e, justamente por envolver relações de compra e venda de insumos, a definição de mercados relevantes também leva em conta o mercado definido pela ótica dos compradores.
Uma segunda peculiaridade diz respeito às dimensões geográficas dos mercados relevantes envolvidos na operação vertical ou conglomeral, na medida em que determinados estágios da cadeia produtiva podem ter dimensões geográficas diferentes, que não necessariamente coincidem.
Assim, nessa análise, é necessário levar em consideração não apenas as relações comerciais efetivamente existentes, mas também aquelas relações potenciais. Do mesmo modo, diferentes preocupações podem afetar distintos mercados relevantes. Especialmente em mercados digitais, a definição do mercado relevante pode trazer especificidades, como a multifuncionalidade das plataformas, as economias de escala e de escopo, a integração dos dados, as externalidades de rede, a configuração de gatekeeper, a privacidade e a proteção de dados.
Quanto à Etapa 2: Determinação da participação no mercado e dos Índices de Concentração, a peculiaridade advém do fato de que, em algumas situações, operações de concentração não horizontal podem gerar preocupação concorrencial mesmo na presença de níveis baixos de market share. O Guia V+ aponta que tal situação pode acontecer, por exemplo, quando as empresas envolvidas diretamente na operação de fusão, aquisição ou joint-venture (normalmente chamadas de "Requerentes") cobrem preços mais baixos no mercado, mesmo com baixo market share, ou quando os produtos das Requerentes possuem grande diferenciação em relação aos produtos dos rivais.
Quanto à Etapa 3: Análise do Potencial lesivo à Concorrência a Jusante e a Montante, uma primeira peculiaridade advém das teorias do dano que podem ser levantadas em integrações verticais e conglomerais. Cada uma dessas teorias do dano será detalhadamente analisada em artigos posteriores desta série. Uma segunda peculiaridade decorre do fato de que a análise dessas teorias do dano passa pelos seguintes passos: (1) capacidade, (2) incentivo e (3) efeitos.
Na análise de (1) capacidade, a pergunta que se faz é a seguinte: existe capacidade de implementação de estratégias anticoncorrenciais por parte da empresa integrada? Por sua vez, na análise de (2) incentivos, a pergunta que se faz é a seguinte: a integração gera alterações na estrutura de incentivos para a prática de estratégias anticoncorrenciais? Ainda que as requerentes possuam capacidade (vide tópico anterior), há geração de incentivos para implementação de tais estratégias? Por fim, na análise de (3) efeitos, a pergunta é: caso haja capacidade e incentivos, a implementação de tais práticas gera impactos efetivos à concorrência, com prejuízos aos consumidores finais? Há efeitos anticoncorrenciais? Assim, para o exame de todas as teorias do dano, sempre será seguido esse tripé de análise.
Quanto à Etapa 4: Análise dos Benefícios Líquidos Decorrentes da Operação, trata-se de fase que visa a contrabalancear os possíveis efeitos anticompetitivos com outros benefícios decorrentes da operação. Assim, a peculiaridade dessa etapa no Guia V+ vem do fato de que há benefícios tipicamente esperados resultantes da concentração vertical ou conglomeral, como, a eliminação da dupla margem, a redução dos custos de transação, a melhoria na coordenação do processo produtivo, a melhoria na coordenação do processo de distribuição, o alinhamento de incentivos, a redução dos problemas de hold-up, o compartilhamento de dados e a eliminação do "efeito carona". Interessante notar a sinalização de que documentos e evidências produzidos em contextos anteriores à negociação e divulgação da operação notificada tendem a ser valorados com maior peso para formar convicção quanto à compreensão das empresas sobre os mercados analisados, incluindo condições competitivas dos mercados caso a operação não ocorra.
Por fim, quanto à Etapa 5: Remédios, a peculiaridade advém não do fato de que é possível impor condições ou remédios estruturais ou comportamentais na operação, o que já é esperado também no Guia H, nem o fato de que os remédios podem ser negociados. Interessante, aqui, é a sinalização do Guia V+ de que devem ser evitados remédios que (i) vão diretamente contra a lógica econômica de integração das atividades da cadeia produtiva, (ii) obriguem ao mero cumprimento da lei ou (iii) que enderecem questões não específicas da integração vertical.
Compreendidas, portanto, as Etapas do Fluxo de Análise de Atos de Concentração Vertical e Conglomerais, nos próximos artigos vamos analisar as principais teorias do dano que podem ser levantadas nessas operações e como podem impactar os negócios das empresas atuantes no Brasil.
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1 ATHAYDE, Amanda. Fusões verticais e conglomerais: O que são e como isso pode impactar a atuação das empresas no Brasil? Migalhas, 22 Ago 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/392130/fusoes-verticais-e-conglomerais-o-que-sao-e-como-impacta-as-empresas
2 Prazo prorrogado pelo Cade. Contribuições podem ser apresentadas na plataforma Participa+ Brasil. Acesso em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/guia-v
3 As concentrações horizontais já são objeto de Guia específico do Cade. Cade. Guia de Análise de Atos de Concentração Horizontal. 2016. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-do-cade/guia-para-analise-de-atos-de-concentracao-horizontal.pdf.
4 Manual Interno da Superintendência-Geral para atos de concentração apresentados sob o rito ordinário. 2017. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-e-manuais-administrativos-e-procedimentais/manual-interno-da-sg-para-casos-ordinarios.pdf.
5 IANELLI, Vívian Salomão. Análise empírica dos atos de concentrações verticais: como o Cade tem endereçado os efeitos unilaterais e coordenados em seus julgados? 2019. 74 f., il. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito). Universidade de Brasília, Brasília, 2019.
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*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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Amanda Athayde
Professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional e Compliance, consultora no Pinheiro Neto. Doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I - Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa comercial e interesse público.