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Tempo como forma de pagamento: ficção ou um futuro próximo?

Não se tem como saber se um dia o tempo será admitido como forma de pagamento. Agora, o que importa saber é que um percentual do seu salário pode ser utilizado para pagamento de dívidas não alimentares.

domingo, 20 de agosto de 2023

Atualizado em 18 de agosto de 2023 14:13

E se alguém pudesse usar o próprio tempo de vida como moeda de troca para rejuvenescer? Sim, como se fosse um verdadeiro escambo: você me dá dinheiro e em contrapartida te dou meu tempo de vida. O que acha?

Um filme de ficção científica (O Paraíso) recentemente lançado pela Netflix apresenta essa possibilidade. Trata-se de uma tecnologia que permite o comércio de tempo (anos-vida) entre pessoas geneticamente compatíveis.

O filme parece sugerir que a idealizadora do projeto o tenha iniciado por ter perdido sua filha para alguma síndrome que acelerou a degeneração de suas células, causando-lhe o óbito. Desde então passa a buscar incessantemente respostas "científicas" para retardar a ação do tempo, defendendo que, se pessoas como, por exemplo, Nelson Mandela tivessem a oportunidade de adicionar tempo à sua vida, a humanidade teria muito mais benefícios.

O oposto também é discutido. Pessoas que nada acrescentam à sociedade (segundo o filme) poderiam "doar" seu tempo de vida para outras com mais propósitos, apresentando, como exemplo, condenados por determinados crimes, que ao invés de cumprir longos anos na cadeia, custeados pelos contribuintes, pudessem cumprir sua pena concedendo seus anos de vida.

Outra possibilidade apresentada no filme, não menos polêmica, é a de usar seu tempo de vida como garantia "real" para financiamento de bens e que, em caso de futura execução e iliquidez, fosse permitido pagar sua dívida com seu tempo de vida. E é esse gancho que vou pegar. Não espere que eu entre nas discussões morais sobre a possibilidade de isso um dia vir a acontecer, pois, eu tenho zero condição para isso.

Quero só tratar de um tema cuja interpretação tem sofrido modificação sistemática com o decorrer dos anos. No caso de o devedor ter uma dívida fruto de uma execução (seja judicial ou extrajudicial), não tendo bens, tampouco dinheiro para adimpli-la, (nem podendo dar seu tempo de vida como garantia de pagamento) o que o credor pode fazer para tentar receber seu crédito?

O Código de Processo Civil apresenta disposição sobre isso nos seus artigos 831 a 869. Além disso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça também tem se posicionado trazendo contornos interpretativos aos artigos supramencionados.

Vamos pinçar um tema: penhora do salário para pagamento de dívidas. O colegiado do STJ uniformizou o entendimento de que é possível a relativização da regra prevista no art. 833, §2º do CPC (impenhorabilidade dos vencimentos e dos valores depositados em poupança, exceto para pagamento de prestação alimentícia ou para aqueles devedores que recebam acima de 50 salários mínimos mensais).

Em outras palavras, agora é possível que se penhore verbas de natureza salarial para pagamento de dívida não alimentar, independentemente do montante recebido pelo devedor, desde que seja preservado valor que assegure subsistência digna para o devedor e sua família.

É de se ressaltar, ainda, que para que essa relativização seja aplicada, é necessário restar inviabilizado outros meios executórios que garantam a efetividade da execução.

Este foi o raciocínio empregado pelo STJ no EREsp 1874222/DF: "Como o novo Código de Processo Civil suprimiu o termo absolutamente do caput do art. 833, a intenção do legislador foi de tratar a impenhorabilidade como relativa, permitindo que o julgador, à luz de um critério principiológico (menor onerosidade para o devedor e efetividade da execução para o credor) conceda a tutela mais adequada ao caso concreto".

Ressaltou-se, também, que a fixação do limite de 50 salários mínimos merece críticas, na medida em que tal valor se mostra muito destoante da realidade brasileira, tornando o dispositivo praticamente inócuo, além de não traduzir o verdadeiro escopo da impenhorabilidade, que é a manutenção de uma reserva digna para o sustento do devedor e sua família.

Caso entendido de forma contrário, em que a exceção prevista fosse tratada de forma absoluta, o credor teria contra si uma barreira instransponível, sendo fadado a suportar a possibilidade de nunca ver seu crédito adimplido.

Insta ressaltar que não é qualquer situação que comporte a possibilidade de penhora sobre os rendimentos. Como dito pelo STJ, o desconto só será possível se assegurado montante que garanta a dignidade do devedor e de sua família e em percentual condizente com a realidade de cada caso concreto.

O cuidado aqui é do julgador! É o seu olhar sobre o caso concreto e sobre as provas apresentadas que se deve decidir com razoabilidade e proporcionalidade se deve ou não penhorar parte dos rendimentos do devedor.

O tema gera bastante polêmica porque a depender da interpretação dada pelo juiz ao caso concreto, podemos ter três cenários distintos.

Vou trazer um exemplo que tem se mostrado comum no ofício em que atuo aqui na Defensoria Pública de Santa Catarina: um devedor aposentado que recebe em torno de 3 salários mínimos e tem uma dívida de 40 mil reais.

Na visão do magistrado era possível descontar um percentual de 20% do seu benefício, até que houvesse a satisfação do crédito, o que daria em torno de R$ 792,00 por mês.

Na visão do credor, o percentual poderia ser de 30% sobre os rendimentos (R$ 1.188,00) e, que ainda assim, estaria resguardada a dignidade do devedor e de sua família.

Na visão do devedor, isso lhe significaria a fome, já que este valor comprometeria sobremaneira sua economia doméstica ordinária.

E então? Como contornar isso? É muito complexo! De fato, há dois interesses em jogo e o juiz tem que decidir de forma a ponderar os dois interesses em campo.

Sabe-se que não é usual na prática, mas há um instituto previsto no CPC, praticamente ignorado pelos juízes que é a inspeção judicial - possibilidade de o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, inspecionar pessoas ou coisas a fim de se esclarecer sobre fato que interesse à decisão da causa -(art. 481 - 484 do CPC).

Penso que, em dilemas tão sensíveis, o magistrado deveria utilizar esse instituto com o objetivo de auxiliá-lo a tomar a decisão mais acertada quanto possível.

Óbvio que não ignoro o volume de trabalho que orbita em torno dos juízes pelo país a fora. Só penso que, em casos bem específicos, a ferramenta, legalmente prevista, poderia ser melhor utilizada.

Em conclusão em relação ao filme, vejo que ele suscita complexas discussões sobre dilemas éticos e ferrenhas críticas ao capitalismo exploratório legitimado pelo argumento neoliberal, para acabar mostrando que o homem, ao fim e ao cabo é movido por basicamente dois vetores: interesse próprio ou justiça!

Alcilei da Silva Ramos

Alcilei da Silva Ramos

Analista Jurídica da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina - Advogada graduada em Direito pela Universidade Luterana do Brasil de Porto Velho - ILES ULBRA - Pós-Graduada em Direito Civil;

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