Relativização da impenhorabilidade do salário
Não obstante seja necessário levar em consideração a proteção ao crédito e a efetividade da execução, os jurisdicionados não podem ficar à mercê de critérios subjetivos, vagos, que não tragam segurança jurídica, tão necessária à pacificação social, um dos objetivos do poder jurisdicional.
sexta-feira, 18 de agosto de 2023
Atualizado às 09:54
Acerca do tema, é de pleno conhecimento que a Corte Especial do STJ, no âmbito do julgamento dos embargos de divergência de 1.874.222/DF, admitiu a relativização da impenhorabilidade do salário para o pagamento de dívidas não alimentares.
Na ocasião mencionada, a Corte Superior deliberou que, independentemente do montante recebido pelo devedor, seria perfeitamente viável a mitigação da regra trazida pelo parágrafo 2º do art. 833 do CPC, desde que assegurada a subsistência do devedor e de sua família, com análise a ser realizada no contexto de cada caso concreto.
Nas palavras do ministro relator João Otavio de Noronha, "A fixação desse limite de 50 salários mínimos merece críticas, na medida em que se mostra muito destoante da realidade brasileira, tornando o dispositivo praticamente inócuo, além de não traduzir o verdadeiro escopo da impenhorabilidade, que é a manutenção de uma reserva digna para o sustento do devedor e de sua família".
E ao que se vê, parte significativa dos processualistas sustentou a decisão proferida pelo STJ, por reputar positiva a possibilidade de uma mudança estrutural na recuperação de créditos não alimentares, a fim de privilegiar a proteção ao credor e garantir a efetividade da execução, sobretudo se considerado o cenário caótico da fase executiva, sempre traduzido pelo jargão popular "ganhou, mas não levou".
Dito isso, respeitado o entendimento da Corte Superior, entendo que a solução encontrada, apesar de nobilíssima e envidada de imensa boa intenção, traduz-se, ao final e ao cabo, em afastamento da aplicação de uma norma criada pelo legislativo, sem mencionar a impossibilidade de uma simples divergência quanto à opção legislativa não ser suficiente, por si só, para o Judiciário imiscuir na solução encontrada por outro poder constituído.
No caso concreto, o legislador, ao ponderar os diversos princípios constitucionais, buscou compatibilizar todos os interesses envolvidos, para atender aos princípios da dignidade da pessoa humana, menor onerosidade do devedor e efetividade da execução.
Sob este aspecto, cumpre relembrar que o ordenamento jurídico brasileiro é composto por princípios, que nada mais são do que mandamentos de otimização, efetivados por uma lógica de sopesamento, a fim de se reduzir o âmbito de aplicação de um em relação ao outro para se chegar a melhor alternativa em determinado caso concreto, e regras, mandamentos definitivos e baseados na subsunção, isto é, no "tudo ou nada".
E o legislador, ao elaborar as regras que compõem o arcabouço legislativo, já realiza o sopesamento de diversos princípios constitucionais que aparentemente poderiam colidir, o que, na prática inevitavelmente pode muitas vezes acarretar a prevalência de uns em detrimento de outros, consoante o melhor interesse sobre um determinado tema para a sociedade, numa determinada época e circunstância social.
Significa dizer, a partir do momento em que o poder legislativo considerou que o montante de 50 salários mínimos mensais perfaz o valor apto a definir a presunção do que seria uma quantia que pudesse resguardar a subsistência do devedor, não há que se falar em relativização, por se tratar de simples opção legislativa, valendo, aqui, recordar a regra do "tudo ou nada" de Ronald Dworkin.
Se fosse verdade que o legislador tivesse a finalidade de tratar a impenhorabilidade como relativa, não teria determinado expressamente a vedação à penhora de salários em valor igual ou inferior ao já destacado e, em seguida, excepcionado a constrição no que toca exclusivamente à prestações alimentícias.
Em outras palavras, o que o poder legislativo fez nada mais foi do que estabelecer um critério objetivo, uma presunção legal de que penhorar o salário de alguém, cujo valor não seja superior a 50 salários mínimos mensais, corresponde a um risco à subsistência de si e seus familiares, com o propósito de resguardar justamente a dignidade da pessoa humana, princípio utilizado pelo STJ como argumento para se relativizar a aplicação da regra.
A meu ver, ao excepcionar de maneira clara que a regra só não valeria para prestações alimentícias, a lei inegavelmente tratou a constrição de maneira absoluta para as demais hipóteses, uma vez que se quisesse relativizar de maneira genérica, o teria feito.
Ora, não haveria problema algum, frisa-se, em se discutir a constitucionalidade do dispositivo introduzido pela reforma do CPC, na hipótese de o Judiciário considerar ter havido falta de razoabilidade e proporcionalidade por parte do legislador ao editar a norma.
Contudo, o meio cabível para se afastar a aplicação de uma lei ou ato normativo por considerá-lo contrário aos direitos e garantias fundamentais corresponde à declaração de inconstitucionalidade, com a observância da cláusula de reserva de plenário na hipótese de se tratar de qualquer tribunal, nos termos do artigo 97 da Constituição Federal.
De toda forma, diante de uma questão apta a impactar milhões de brasileiros, em um país cuja renda média se encontra em patamar inferior a R$ 3.000,00, espera-se que o Poder Judiciário sempre leve em consideração o contexto fático-social de sua população, que não obstante tenha como marca o superendividamento, não pode ficar à mercê de critérios subjetivos, vagos, que não tragam segurança jurídica, tão necessária à pacificação social, um dos objetivos do poder jurisdicional.