O STF e a descriminalização do aborto voluntário (ADPF 442): o julgamento está próximo?
Uma década após descriminalizar o aborto de fetos anencéfalos, o STF pode estar prestes a voltar a analisar o tema. A ADPF 442 pretende descriminalizar o aborto voluntário até o terceiro mês. A ministra. Rosa Weber, presidente da Corte e relatora do caso, já manifestou a intenção de pautar o processo antes da aposentadoria.
quinta-feira, 17 de agosto de 2023
Atualizado em 16 de agosto de 2023 09:56
A polêmica que permeia o tema da descriminalização do aborto não permite que esse breve ensaio, ainda que tenha enfoque jurídico, comece de outra forma: você, leitor, é a favor ou contra o aborto?
Entre as duas opções de reposta, você mantém a posição a despeito de qualquer circunstância? Digo: é contra, ainda que a gestação seja fruto do crime de estupro e cuja vítima é uma criança de onze anos? É a favor, ainda que a gestante tenha desistido de levar a gravidez a diante quando o bebê já está totalmente formado ou quando a sobrevivência extrauterina é estatisticamente viável?
Para a maioria das pessoas, essas não são questões de fácil resposta. Excetuados os posicionamentos radicais, a maior parte da população, ainda que possua convicções precedentes, paralisa diante de situações que envolvam circunstâncias delicadas como as descritas acima.
Há de se considerar, entretanto, que, ainda que o foco da análise sobre a descriminalização do aborto seja jurídico, temas tão sensíveis quanto esse dificultam que o julgador se afaste totalmente da sua bagagem moral, ética e, até mesmo, religiosa. A realidade não aceita por alguns é que a ciência do Direito, quase sempre, permite a construção de firmes argumentos para qualquer dos lados que se escolha defender.
Foi exatamente o que ocorreu no já longínquo 2012, quando da análise da ADPF 54, pelo STF. Julgamento acompanhado de polêmicas e exaltações, mas também marcado pela apresentação de coerentes argumentos tanto do lado da posição vencedora, quanto da vencida.
Relembrando o caso, a ADPF 54 foi ajuizada em 2004 pela CNTS - Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde. Representada pelo até então advogado Luís Roberto Barroso, a entidade apontou como justificativa para a admissão da ação os preceitos da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso IV, CF/88), da legalidade, liberdade e autonomia de vontade (art. 5º, inciso II, CF/88) e direito à saúde (art. 6º e 196, CF/88). Já como ato do Poder Público causador da lesão, a autora indicou o conjunto normativo ensejado pelos artS. 124, 126, caput, e 128, incisos I e II, do Código Penal.
Na argumentação, a CNTS afirmou que a antecipação terapêutica do parto em gravidezes de fetos anencéfalos não configura aborto, na medida em que tal patologia torna a vida extrauterina inviável em 100% dos casos.
O julgamento do processo foi precedido de muita discussão dentro e fora do Tribunal. Audiência pública realizada pela Corte em 2008 contou com a participação de vinte e cinco expositores, dentre os quais representantes de entidades religiosas, científicas, médicas e da sociedade civil. O debate foi amplo e enriquecedor, mas também muito acalorado.
O julgamento de mérito da ADPF foi realizado em 2012, sob a relatoria do ministro Marco Aurélio Mello (aposentado). Na ocasião, o relator destacou que o direito à vida não pode se sobrepor a garantias constitucionais como a "dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à saúde e à integridade física, psicológica e moral da mãe, todas previstas na Constituição". Afirmando que a mulher não pode ser submetida a "cárcere privado em seu próprio corpo", o ministro julgou procedente a ação e foi seguido pela maioria dos ministros da Corte.
O precedente sofreu duras críticas à época. Ao declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção desse tipo de gravidez configura conduta típica à luz dos artigos que criminalizam o aborto, o STF terminou por acrescentar ao ordenamento jurídico brasileiro uma hipótese até então não contemplada pela legislação. Sob essa perspectiva, diz-se que o Tribunal adotou indevida postura de ativismo. Atualmente, no entanto, há pouca contestação quanto ao julgado. Já está internalizada nacionalmente a regra que permite o aborto de fetos anencéfalos.
Mais recentemente, em 2017, uma nova tentativa de mover o Supremo para analisar o tema foi lançada. A ADPF 442, proposta pelo PSOL - Partido Socialismo e Liberdade pretende descriminalizar o aborto induzido e voluntário até o terceiro mês de gestação.
Sob a justificativa de que "as razões jurídicas que moveram a criminalização do aborto pelo Código Penal de 1940 não se sustentam" o autor da ação requer que o STF "declare a não recepção parcial dos art. 124 e 126 do Código Penal" permitindo o aborto induzido e voluntário realizado no primeiro trimestre. Isso sob o argumento de que devem ser preservadas a "dignidade da pessoa humana e a cidadania das mulheres e a promoção da não discriminação como princípios fundamentais da República, e por violarem direitos fundamentais das mulheres à vida, à liberdade, à integridade física e psicológica, à igualdade de gênero, à proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, à saúde e ao planejamento familiar".
O controverso pedido pretende garantir às mulheres "o direito constitucional de interromper a gestação, de acordo com a autonomia delas, sem necessidade de qualquer forma de permissão específica do Estado, bem como garantir aos profissionais de saúde o direito de realizar o procedimento".
Para alguns, trata-se de absurda tentativa de fazer prevalecer por meio do judiciário a posição de parcela minoritária da população brasileira. Segundo estes, seria um disparate aceitar que membros da Suprema Corte, que não foram submetidos ao processo eleitoral, e, portanto, não possuem legitimidade para legislar, sejam os responsáveis por alterar a realidade legislativa dessa natureza.
Por outro lado, examinando exclusivamente o aspecto jurídico, é defensável a tese de que o ordenamento brasileiro permite que tal análise seja realizada pela Suprema Corte, tanto à luz da natureza do julgamento de uma ADPF, quanto à guisa do atual sistema de precedentes.
Ora, não seria, ao fim e ao cabo, um julgamento muito semelhante àquele realizado na ADPF 54? Parece plausível defender que se trataria da ampliação do racional aplicado quando daquele julgamento. Não é demais lembrar que os fundamentos para a conclusão vencedora naquela ocasião foram os princípios constitucionais da legalidade, da dignidade da pessoa humana, da autonomia de vontade, o refuto a analogia a tortura, o direito à liberdade e a saúde. Em grande parte, os mesmos invocados na ADPF 442.
A relatora da ADPF 442 é a ministra Rosa Weber, presidente da Corte, que deixará o tribunal em outubro em virtude de aposentadoria. Apesar de ainda não haver oficialmente previsão de inclusão do caso em pauta, nos bastidores, a ministra já demonstrou grande interesse em pautar o processo antes de sua saída.
O timing para finalizar a discussão de tema tão espinhoso, no entanto, não parece favorecer uma possível expectativa de finalização da análise antes do término da passagem da magistrada pelo Tribunal. De qualquer forma, se a deliberação for iniciada, a ministra terá a oportunidade de proferir seu voto e registrar esse importante marco em seu legado.
Na hipótese de o julgamento da ação não ser iniciado antes da aposentadoria de Weber, o destino da relatoria ficará incerto. Isso porque o acervo da ministra, por determinação regimental, deverá ser direcionado ao ainda desconhecido sucessor de sua vaga. Em qualquer dos destinos possíveis, o que se espera do STF, a exemplo da análise da ADPF 54, é a condução de um julgamento com estrita observância da Constituição e respeito à população brasileira.
Danúbia Souto de Faria Costa
Atuação em contencioso cível, tributário e empresarial. Ampla experiência na atuação junto a tribunais superiores, além de atuar perante a primeira e segunda instâncias do Tribunal de Justiça Estadual e Justiça Federal localizados em Brasília. Na esfera administrativa, atua perante as agências reguladoras, tribunais administrativos e demais órgãos da Administração Pública.