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A competência para processar o crime de lavagem de dinheiro oriundo do "esquema ponzi"

A lei 1.521/51, por ser especial, prevalece sobre o enquadramento previsto na lei 7.492/86. Conseqüentemente, competirá à Justiça Estadual o processamento e o julgamento do crime de lavagem de dinheiro praticado em concurso material com delito popularmente conhecido como "esquema ponzi".

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Atualizado às 09:09

O "esquema ponzi" pode ser classificado como uma sofisticada operação fraudulenta em que o criminoso comercializa um produto fictício sob o pretexto de ganhos exorbitantes cuja manutenção do sistema depende do aporte de capital de novas vítimas.

Conceitualmente conhecida como "pirâmide financeira", essa infração penal está prevista no artigo 2º, IX, da lei 1.521, de 26 de dezembro de 1951, que trata dos crimes contra a economia popular, cujas penas variam entre seis meses a dois anos, e multa:

 "IX - obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos ("bola de neve", "cadeias", "pichardismo" e quaisquer outros equivalentes);

        Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, de dois mil a cinqüenta mil cruzeiros."

Difere-se do estelionato - artigo 171-A do Código Penal, pois no "esquema ponzi" as vítimas são indeterminadas. No estelionato, a fraude é individualizada. Assim, quando o Ministério Público promove uma denúncia e faz a mesma narração fática com base em capitulações jurídicas distintas, a orientação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça determina uma das capitulações jurídicas seja excluída.

No julgamento do RHC n. 132.655/RS, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 28/9/2021, DJe de 30/9/2021, por entender que houve bis in idem entre os crimes previstos nos artigos 171 do Código Penal e 2º, IX, da Lei n. 1.521/1951, foi determinado o trancamento da ação penal referente ao crime de estelionato. Confira trechos da ementa:

"A controvérsia em análise cinge-se à configuração de crime único e à ocorrência de bis in idem, diante da imputação, ao ora recorrente, da incursão nos arts. 171 do Código Penal e 2º, IX, da Lei n. 1.521/1951.

Em situação similar, esta Corte Superior já decidiu que, nas hipóteses de crime contra a economia popular por pirâmide financeira, a identificação de algumas das vítimas não enseja a responsabilização penal do agente pela prática de estelionato.

Recurso provido para, diante do bis in idem identificado na hipótese, determinar o trancamento do processo, em relação ao ora recorrente, no que atine aos crimes de estelionato (fatos 4º ao 29º da denúncia)."

Considerando que, em regra, o infrator utilizará o produto do crime contra a economia popular para convertê-lo em ativos lícitos, deverá responder, também, pela infração penal prevista no artigo 1º, §1º, I, da lei 9.613/98:

"Art. 1º  Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.                     (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)

§ 1º  Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal:                    (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)

I - os converte em ativos lícitos;"

Vale destacar que a lei 14.478/22 incluiu um dispositivo na lei 9.613/98 para exasperar a pena por lavagem de dinheiro quando o delito antecedente for um ativo virtual:

"§ 4º A pena será aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se os crimes definidos nesta Lei forem cometidos de forma reiterada, por intermédio de organização criminosa ou por meio da utilização de ativo virtual.     (Redação dada pela Lei nº 14.478, de 2022)"

No estudo em análise, a infração penal antecedente apta a caracterizar a justa causa para a apuração do crime de lavagem de dinheiro é, a princípio, o delito previsto no artigo 2º, IX, da Lei nº. 1.521, de 26 de dezembro de 1951. Ou seja, é a utilização do produto do crime contra a economia popular para dar aparência de legalidade a um ativo formalmente lícito. Exemplo: O sujeito utiliza os valores obtidos ilicitamente pela prática do "esquema ponzi" para adquirir um automóvel.

Aliás, a compra, a venda ou o aluguel de criptomoedas ainda não foram definitivamente regulamentados pelo Banco Central do Brasil. Portanto, não são consideradas moedas para fins de aplicação da Lei nº. 7.492/86, que define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional:

"A operação envolvendo compra ou venda de criptomoedas não encontra regulação no ordenamento jurídico pátrio, pois as moedas virtuais não são tidas pelo Banco Central do Brasil (BCB) como moeda, nem são consideradas como valor mobiliário pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), não caracterizando sua negociação, por si só, os crimes tipificados nos arts. 7º, II, e 11, ambos da Lei n. 7.492/1986, nem mesmo o delito previsto no art. 27-E da Lei n. 6.385/1976" (CC 161.123/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, TERCEIRA SEÇÃO, DJe 5/12/2018)."

O artigo 2º, inciso III, da lei 9.613/98 possui a seguinte redação:

"Art. 2º O processo e julgamento dos crimes previstos nesta Lei:

III - são da competência da Justiça Federal:

a) quando praticados contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira, ou em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas;

b) quando a infração penal antecedente for de competência da Justiça Federal. (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)"

Nesse sentido, a verificação da competência para o processamento e julgamento das infrações penais em análise deverá levar em consideração a seguinte diretriz: a Justiça Federal só será competente para processar e julgar os crimes oriundos do "esquema ponzi", em concurso material com a lavagem de dinheiro, quando for comprovado que a conversão do produto do crime em ativo lícito causou algum dano à União Federal:

"O delito conhecido como "lavagem de dinheiro" e tipificado no art. 1º da Lei 9.613/1998, somente será da competência federal quando praticado contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira, ou em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas (art. 2º, III, "a", da Lei 9.613/1998) ou quando a infração penal antecedente for de competência da Justiça Federal (art. 2º, III, "b", da Lei 9.613/1998).

(CC n. 146.153/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, julgado em 11/5/2016, DJe de 17/5/2016.)"

Com efeito, no julgamento do HC n. 48.121/GO, relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em 22/9/2009, DJe de 19/10/2009, foi decidido que a Lei nº. 1.521/51, por ser especial, prevalece sobre o enquadramento previsto na lei 7.492/86:

"No eventual conflito entre as Leis 7.492/86 e a 1.521/51, está deverá prevalecer, por sua especificidade, sendo, inclusive, mais benéfica para os acusados."

Portanto, de acordo com o atual entendimento atual do Superior Tribunal de Justiça, enquanto a lei 14.478/22 não estiver definitivamente regulamentada, competirá à Justiça Estadual o processamento e o julgamento dos crimes conhecidos como "esquema ponzi" ou "pirâmide financeira" praticados em concurso material com o crime de lavagem de dinheiro.

____________

Lei nº. 1.521, de 26 de dezembro de 1951.

Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

Lei nº. 9.613, de 3 de março de 1998.

Lei nº. 14.478, de 21 de dezembro de 2022.

CC 161.123/SP, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, DJe 5/12/2018.

RHC n. 132.655/RS, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 28/9/2021, DJe de 30/9/2021

CC n. 170.392/SP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, julgado em 10/6/2020, DJe de 16/6/2020.

CC 146.153/SP, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, DJe 17/5/2016.

HC n. 48.121/GO, relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em 22/9/2009, DJe de 19/10/2009.

Ricardo Henrique Araujo Pinheiro

VIP Ricardo Henrique Araujo Pinheiro

Advogado especialista em Direito Penal. Sócio no Araújo Pinheiro Advocacia.

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