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Afinal, o agente de trânsito tem fé pública?

Muitos agentes públicos acreditam possuir a chamada "fé pública", mas na realidade isso não passa de uma presunção relativa de veracidade dos atos administrativos que exercem em suas funções.

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Atualizado às 13:11

A fé pública se baseia nos atributos de legalidade, legitimidade e veracidade dos atos administrativos e é fundamentada na teoria da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, o que coloca o Estado em posição privilegiada em relação ao cidadão.

Essa vantagem concedida à autoridade e aos seus agentes se reflete no trânsito, onde eles estão dispensados da obrigação de comprovar a existência da infração de trânsito, desde que declarem sua ocorrência. Com essa declaração, o proprietário ou condutor do veículo pode ser sancionado administrativamente sem a necessidade de comprovação adicional.

A forma como essa questão está colocada sugere que a administração tem uma grande vantagem em relação ao cidadão, especialmente com o avanço das tecnologias modernas. Isso se deve ao fato de que o Estado tem instrumentos eficazes para comprovar a ocorrência de infrações, o que aumenta a transparência de seus atos em relação aos cidadãos. Dessa forma, o cidadão não precisa usar seus próprios recursos para provar que não cometeu uma infração. 

A aplicação de penalidades de trânsito é um ato vinculado à lei, que estabelece a conduta a ser seguida pelo órgão de trânsito, sem dar margem para que a autoridade ou seu agente escolham outra forma de agir. Em outras palavras, a lei deve ser seguida à risca pela autoridade, pois qualquer desvio pode tornar o ato inválido.

O processo administrativo para a imposição de penalidades no trânsito é regulado pelo Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97) e pela lei 9.784/90, que exigem a obediência aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência para garantir o devido processo legal. 

A ampla defesa e o contraditório são princípios previstos no artigo 5°, inciso LV da Constituição Federal de 1988 e replicados no artigo 2° da lei 9.784/99, que exigem que a administração pública siga o devido processo legal, garantindo não apenas a observância do rito adequado e a ciência do processo ao interessado, mas também a oportunidade para contestar e produzir provas de seu direito, acompanhar os atos de instrução e utilizar os recursos cabíveis.

É importante ressaltar que, no contexto da aplicação de penalidades de trânsito, a administração age de forma unilateral e antecipada, sem a necessidade de participação do administrado para constituir o ato administrativo. Essa situação pode tornar mais fácil o desvio de finalidade por parte do agente público, que pode praticar o ato com fins diferentes dos previstos na regra de competência, o que por si só já é passível de contestação.

Adriano dos Santos afirma que "a simples declaração unilateral do agente público não é suficiente para a validade do ato administrativo, e quando contestado, cabe à administração o ônus da prova". Para equilibrar essa aparente desigualdade, surge o princípio da verdade real, que exige que o Estado instrua o processo com as peças indispensáveis, começando pelo auto de infração, e promova os meios efetivos e necessários para encontrar a verdade real dos fatos. Esse princípio é fundamental para garantir a observância dos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência, que tornam efetivo o devido processo legal na aplicação de penalidades de trânsito.

O princípio da motivação suficiente, estabelecido no art. 93, inciso IX da Constituição Federal e no artigo 2º, inciso VII da lei 9.784/99, exige que a administração pública exponha claramente os fundamentos de fato e de direito que embasam suas decisões e que dê publicidade aos atos, permitindo ao administrado tomar ciência da imposição da penalidade, conforme o disposto no artigo 282 do CTB.

Embora as presunções de legalidade, legitimidade e veracidade dos atos administrativos sejam relativas (juris tantum) e passíveis de prova em contrário, na prática elas acabam se tornando absolutas (juris et de jure), uma vez que o administrado muitas vezes não dispõe dos meios necessários para comprovar sua versão dos fatos. Em certos casos, o ônus da prova acaba sendo transferido para o cidadão, que pode apresentar apenas indícios e argumentos contra a infração a ele imputada. Nesse sentido, é importante que a administração observe o princípio da verdade real e promova a instrução do processo com as peças necessárias para a correta apuração dos fatos. Além disso, é preciso que sejam criados mecanismos para garantir a igualdade entre as partes e a justiça nas decisões administrativas.

Até o momento em que o ato administrativo é impugnado, a presunção de legalidade é válida, mas isso não exime a Administração de provar suas alegações em conformidade com o princípio da isonomia e o postulado da verdade real. Quando há impugnação, seja em sede administrativa ou judicial, o ônus da prova se inverte, pois, ao contrário dos particulares que podem fazer tudo o que a lei não proíbe, a Administração Pública só pode fazer o que a lei autoriza ou determina. Portanto, cabe à Administração demonstrar que atuou de acordo com a lei. 

Essa impossibilidade prática fere o princípio constitucional da presunção de inocência, estabelecido no artigo 5°, inciso VII da CF/88. Como se trata de um procedimento administrativo sancionatório, assim como ocorre no âmbito penal, é necessária a apresentação de provas suficientes para comprovar a infração cometida, sob pena de a dúvida beneficiar o acusado. A lei 13.105/15 (Código de Processo Civil) garante às partes a igualdade de tratamento no exercício de direitos e faculdades processuais, bem como o acesso aos meios de defesa.

Uma das funções do julgador em processos administrativos de trânsito (como JARI, CETRAN, etc.) é buscar a igualdade de tratamento entre as partes e garantir um contraditório efetivo, de modo que uma decisão proferida sem a integração do contraditório pode ser nula ou ineficaz. Para alcançar esse objetivo, é importante utilizar o instituto da inversão do ônus da prova dinâmico, previsto no artigo 371, §1° do Código de Processo Civil, que permite ao juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, a depender de quem tem mais facilidade ou menos dificuldade para produzi-la. 

Além disso, é importante ressaltar que o agente de trânsito não possui fé pública, o que pode levar à necessidade de inversão do ônus da prova em situações em que a produção da prova é impossível para a parte, a chamada "prova diabólica". Nesses casos, o julgador deverá fundamentar sua decisão nos princípios constitucionais e nas leis, assim como no entendimento da doutrina especializada, para determinar que cabe à administração o ônus da prova, evitando assim o cerceamento de defesa.

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SANTOS, Adriano Vitalino dos. A prova diabólica e sua influência sobre a presunção de legitimidade do ato administrativo. Revista de Doutrina da 4° Região, Parto Alegre, n. 67, ago. 2015. Disponível em: https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao067/Adriano_dosSantos.html. Acesso em 14 de fev. 2023.

7 FERRAZ, Sérgio. DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. 2° ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 179.

Herbert H. Nogueira.

Herbert H. Nogueira.

Advogado Especializado em Direito de Trânsito em Belo Horizonte/MG.

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