Ausência de efeito interruptivo dos embargos de declaração opostos contra decisão de inadmissibilidade de recursos especial e extraordinário
Vida de advogada não é fácil. Mas é inspiradora.
terça-feira, 15 de agosto de 2023
Atualizado às 07:37
Recentemente foi noticiado aqui no Migalhas1 julgamento proferido em embargos de divergência2, no qual o STJ admitiu agravo contra decisão de inadmissibilidade de recurso especial, que foi interposto após a oposição de embargos de declaração, mas sem considerar o seu efeito interruptivo, ou seja, o agravo foi interposto dentro dos 15 dias contados a partir da publicação da decisão de inadmissão (e não da decisão dos embargos).
Ocorre que o STJ tem entendimento consolidado de que o único recurso cabível contra a decisão que inadmite recursos especial e extraordinário é o agravo. Por essa razão, uma vez que, no caso em questão, a parte opôs embargos de declaração anteriormente ao agravo, a segunda turma do STJ reconheceu a preclusão consumativa em relação ao agravo interposto contra a mesma decisão e não o conheceu. Não bastasse, referiu tratar-se de "erro grosseiro e inescusável" a oposição de embargos de declaração contra a referida decisão de inadmissibilidade, "em homenagem aos postulados da taxatividade e da unirrecorribilidade recursal" (pleonasmo original da decisão).
Todavia, também existem decisões do STJ no sentido de que a oposição de embargos de declaração contra a decisão de inadmissibilidade dos recursos especial e extraordinário configura exceção ao princípio da unirrecorribilidade, de modo que não obstaria a interposição do agravo contra a mesma decisão, desde que observado o prazo contado desde a publicação da decisão, ou seja, desconsiderando-se o efeito interruptivo dos embargos.
Diante disso, a divergência foi conhecida pelo STJ, que afastou a preclusão consumativa em relação ao agravo, mantendo-se, porém, o entendimento consolidado daquela Corte de que o único recurso cabível contra a decisão denegatória é o agravo, de modo que, que se interpostos previamente embargos de declaração contra a mesma decisão, estes, em regra, não interrompem o prazo para a interposição do agravo, "salvo quando essa decisão for tão genérica que impossibilite ao recorrente aferir os motivos pelos quais teve seu recurso obstado".3
A decisão dos embargos de divergência ressalvou, ainda, a possibilidade de complemento às razões do agravo em caso de modificação da decisão denegatória após o julgamento dos embargos de declaração, nos exatos limites da alteração. Exatamente como previsto no art. 1.024, §4º do CPC para o julgamento dos embargos de declaração nos tribunais.
A decisão é um alento, mas, forçoso reconhecer, todo o imbróglio causado deve-se à falta de coerência de certos entendimentos, que acabam por levar a consequências desastrosas como esta: inadmitir um agravo porque antes foram opostos embargos de declaração.
Como um primeiro ponto, o princípio da unirrecorribildade aplica-se à grande maioria das decisões4, o que jamais impediu a parte de, antes do recurso principal, opor embargos de declaração, eis que tais recursos têm finalidades distintas. A finalidade do recurso principal é anular ou reformar a decisão, enquanto os embargos de declaração visam a integrar a decisão, sanando vícios como omissões e contradições (art. 1022 do CPC), a fim de aperfeiçoá-la. Isso ainda que, excepcionalmente, possam acarretar a infringência do julgado, como consequência da correção do vício5.
É claro que existem áreas cinzentas em que a parte opõe embargos de declaração quando poderia (deveria?) interpor diretamente o recurso principal, não raro para beneficiar-se do efeito interruptivo do prazo, apresentando suas razões recursais sob a roupagem de omissão, contradição ou obscuridade, no que será melhor ou pior sucedida a depender da eficiência do disfarce.
Importa que, dada a sua natureza e finalidade, os embargos de declaração sempre foram admitidos contra qualquer decisão judicial, como consta com todas as letras do caput do art. 1022 do CPC. O efeito interruptivo, por sua vez, encontra previsão expressa no art. 1026 do CPC e incide automaticamente a partir da simples oposição dos embargos, desde que tempestiva, o que sempre foi respeitado pela jurisprudência, mesmo nos casos acima, em que o cabimento dos embargos não é tão evidente.
De fato, o entendimento jurisprudencial amplamente majoritário é no sentido de que o efeito interruptivo só é afastado em caso recurso manifestamente incabível ou intempestivo, ao passo em que o CPC não o afasta nem mesmo no caso de embargos manifestamente protelatórios e sua reiteração, embora, nestes casos, preveja a aplicação de multa.6
Ou seja, o simples fato de ser o agravo o único recurso cabível contra a decisão de inadmissibilidade de recursos às cortes superiores jamais poderia afastar o cabimento de embargos de declaração, em razão de uma descabida preclusão consumativa. A apelação é o único recurso cabível contra a sentença, o agravo de instrumento é o único recurso cabível contra as decisões interlocutórias que o admitem e, nem por isso, a oposição de prévios embargos de declaração levaria à preclusão consumativa do recurso principal.
Nesse sentido, a decisão recém proferida pelo STJ em embargos de divergência é, como se disse, um alento. Contudo, não existe qualquer razão de ordem lógico-jurídica para a manutenção do entendimento quanto à ausência de efeito interruptivo dos embargos de declaração nessa hipótese, entendimento este que, não obstante, é absolutamente pacífico na jurisprudência certamente por razões de política judiciária (trata-se de mais um filtro aos recursos excepcionais).
Considerando-se a natureza dos embargos de declaração, a sua disciplina pelo CPC e a ampla jurisprudência sobre o seu cabimento e efeito interruptivo em todas as demais hipóteses, nenhuma razão jurídica justifica a ausência de efeito interruptivo dos embargos de declaração quando interpostos contra uma decisão de inadmissibilidade de recurso especial e extraordinário.
Tanto é assim que jurisprudência do STJ já ressalvava que se a decisão denegatória fosse genérica a ponto de impedir a compreensão dos seus motivos e inviabilizar o recurso, os embargos de declaração interromperiam o prazo para o agravo.
O problema é que tal análise demanda certa subjetividade. Sobretudo considerando que, cada vez mais, as decisões denegatórias são completamente automatizadas, referindo-se aos óbices sumulares de sempre (súmula 7, ausência de prequestionamento) para justificar a inadmissão dos recursos, mas quase nunca explicando porque tais óbices se aplicam ao caso concreto. Lamentavelmente esta é a regra, decisões denegatórias proferidas por robôs, cada vez mais as próprias peças processuais elaboradas por robôs, ao ponto de se questionar o que estarão fazendo os advogados e julgadores seres humanos.
Mas esse é um outro debate. Para estas breves considerações, basta a constatação de que a maioria das decisões de inadmissibilidade atualmente proferida é genérica e digna de embargos de declaração que, portanto, deveriam interromper normalmente o prazo para os agravos.
É claro que, na prática, esta advogada simplesmente não opõe embargos de declaração contra decisões de inadmissibilidade somente por serem genéricas. Mais seguro se conformar com a realidade e interpor o agravo às cortes superiores, impugnando, vale dizer, todos os fundamentos padronizados da decisão (mesmo aqueles sem relação com o caso), sob pena de não ser conhecido o agravo (súmula 182 do STJ).
Mas houve ao menos uma vez em que foi de fato necessária a oposição de embargos de declaração antes da interposição do agravo contra a decisão de inadmissão de um recurso especial. No caso, embora tenha apresentado fundamentos para a inadmissão do recurso especial, particularmente a incidência de variados óbices sumulares, em seu dispositivo, a decisão negava seguimento ao recurso.
No passado, negar seguimento e inadmitir um recurso apresentavam efeitos muito parecidos, mas isso mudou drasticamente com o Código de Processo Civil de 2015. Segundo este diploma, o Tribunal deve negar seguimento a recurso extraordinário que discuta questão à qual o STF não tenha reconhecido a repercussão geral ou a recurso extraordinário interposto contra acórdão em conformidade com o entendimento do STF exarado nesse regime. O tribunal também deve negar seguimento ao recurso especial ou extraordinário interposto contra acórdão em conformidade com o entendimento exarado pelo STF ou pelo STJ em recursos repetitivos (art. 1030, I, do CPC).
Já a inadmissão do recurso refere-se ao seu juízo de admissibilidade negativo (art. 1030, V, do CPC), proferido quando o recurso não preenche os requisitos legais e sumulares, como a tempestividade, a interposição contra a última decisão proferida pela instância ordinária, não veicular mera pretensão de reexame fático, questionar dispositivos efetivamente analisados pelo acórdão recorrido e por aí vai.
Por sua vez, as vias de impugnação contra cada uma dessas decisões são completamente diferentes, cabendo agravo interno, ao próprio tribunal, no primeiro caso (art. 1030, §2º, do CPC) e agravo ao STJ e/ou ao STF no segundo (art. 1030, §1º, do CPC).
Assim, diante de uma decisão fundada em óbices sumulares que deveriam fundamentar a inadmissão do recurso, mas que levaram ao seu não seguimento, havia dúvida objetiva quanto ao próprio recurso a ser interposto, tratando-se de clara hipótese de contradição a ser sanada por meio de embargos de declaração antes da interposição do recurso principal, que poderia ser um ou outro a depender do esclarecimento do tribunal.
Neste caso, então, esta advogada opôs embargos de declaração contra a decisão, mas, em despacho com a presidência do tribunal, obteve, antes do prazo para agravo, o esclarecimento, em acolhimento dos embargos, quanto a se tratar, de fato, de uma decisão de inadmissibilidade (e não de negativa de seguimento). Assim, o agravo às cortes superiores foi interposto no prazo legal, sem considerar o efeito interruptivo dos embargos e não houve problemas quanto à sua intempestividade, embora isso tenha sido suscitado pela outra parte, felizmente sem sucesso, perante o STJ.
Também felizmente, não foi aventada a hipótese ainda mais absurda de preclusão consumativa, tal qual julgado pela segunda turma do STJ no acórdão reformado no julgamento dos embargos em divergência aqui em comento.
No caso narrado, era evidente a necessidade de interrupção do prazo com a oposição dos aclaratórios (manifestamente cabíveis), mas, diante da jurisprudência, que a admite somente em situações excepcionalíssimas, poucos pagariam para ver.
Se a decisão sanando a contradição não tivesse sido proferida a tempo, certamente esta advogada teria interposto, de todo modo, o agravo às cortes superiores no prazo original, dados os fundamentos da decisão denegatória. Mas imagine se, contrariando as expectativas, a decisão dos embargos de declaração alterasse a fundamentação e decidisse pela hipótese de negativa de seguimento ou invés de inadmissão? Nesse caso, o recurso cabível seria distinto, com endereçamento também distinto, não sendo sequer possível a mera complementação referida pelo STJ no julgado em comento. Como o recurso correto não teria sido interposto, a interrupção do prazo pelos embargos de declaração (que teriam sido inclusive providos) seria a única solução justa na hipótese.
Enfim, estas reflexões procuram ressaltar as dificuldades surgidas quando exceções são criadas para situações que simplesmente não as comportam, como é o caso da ausência de efeito interruptivo dos embargos de declaração opostos contra decisão denegatória de recursos especial e extraordinário. Era o caso de os embargos de declaração produzirem regulamente o seu efeito interruptivo, mas infelizmente não é assim que funciona.
Vida de advogada não é fácil. Mas é inspiradora.
-----
1 Migalhas 5.661 de 09 de agosto de 2023.
2 Embargos de Divergência em Agravo em Recurso Especial nº 2.039.129-SP, julgado em 21 de junho de 2023.
3 AgInt nos EAREsp 166.042/PE, Corte Especial, julg. 19/12/16, pub. 07/02/17.
4 Exceção feita, ironicamente, à decisão de inadmissibilidade de recursos especial e extraordinário, que admite dois agravos, um para o STJ e outro para o STF. E aos acórdãos proferidos em última instância ordinária, que admitem recurso extraordinário contra as violações constitucionais e especial contra as violações infraconstitucionais e quanto ao dissídio na interpretação e aplicação da lei federal.
5 Assim, por exemplo, se a sentença de procedência não se manifestou sobre a preliminar de prescrição e, ao sanar a omissão apontada nos embargos, verifica a sua ocorrência, a natural consequência será a reforma da decisão e a extinção do feito com julgamento de mérito, nos termos do art. 487, II, do CPC.
6 Apesar disso, existe entendimento do STJ de que "a oposição de embargos aclaratórios, quando intempestivos, protelatórios ou manifestamente incabíveis, não tem o condão de interromper o prazo para a interposição do recurso especial" (AgRg no AREsp n. 2.149.594/MG, sexta turma, julg. 14/02/23, pub. 22/03/23).
Eliane Leve
Advogada, sócia do escritório BCW Advogados. Formada em Direito pela UERJ, especialista em direito civil-constitucional pela UERJ e em direito contratual pela FGV.