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Prolegômenos sobre a definição de Estado, a função do Direito Penal e os princípios que norteiam o Sistema de Justiça Criminal

Quanto mais amplo for o poder punitivo do Estado, com mais leis penais (criminalização primária) mais distante se fica de um Estado de Direito, eis que maior será o poder arbitrário (luz verde) da seletividade criminalizante e mais o Estado se distancia de seu propósito e modelo ideal de igualdade perante a lei.

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Atualizado às 14:13

Toda sociedade organizada como Estado deve proceder com a defesa das pessoas que o integram, bem como a defesa dos bem jurídicos dessas pessoas. Mas o que seria "Estado", e qual o seu conceito? Apesar de muito a se esclarecer sobre a origem e primórdios do Estado, é certo que ele, ao longo dos séculos, modernamente se transformou em um controle jurídico traduzido em uma ordem jurídica (formalmente organizada) que tem por finalidade (pensando em um modelo ideal de Estado) a manutenção do bem comum de um povo em um determinado território (fronteiras). É no Estado onde vivem as pessoas de modo seguro em sua esfera de liberdade. Independentemente dos conflitos cíclicos entre o Estado e o cidadão, ele foi pensado pelo homem como forma de proteção. Desse modo, dentro dessa perspectiva, cabe ao Estado a criação e o desenvolvimento do Direito Penal, sua legitimação e de organizar a estrutura do Poder Judiciário respectivo.

Precisamente, pode-se definir o Direito Penal como: conjunto de leis e princípios jurídicos que definem certas condutas como nocivas, perigosas e proibitivas ao convívio social pacífico da comunidade (delitos), associando-lhes sanções penais, bem como outras consequências jurídicas como, por exemplo, a reparação civil derivada da prática do delito. Dito de modo mais simples, como instrumento posto a serviço dos fins da comunidade, protegendo os bens jurídicos mais importantes, o Direito Penal estabelece quais condutas são criminosas (sejam elas omissivas ou comissivas) e fixa uma sanção penal para cada uma delas.

Do ponto de vista social, é consenso que o Direito Penal se traduz no controle social formal (altamente formalizado)1 mais poderoso que existe (sistema punitivo, consistente nas penas e medidas de segurança). Se diz altamente formalizado, pois obrigatoriamente deve respeitar o devido processo legal (acusação formal, defesa, produção ode provas, sentença, recurso, ações autônomas de impugnação etc.). Por outro lado, são exemplos de controles sociais informais a família, a escola, o trabalho, os grupos sociais etc. E dentro de suas finalidades, isto é, as metas e consequências perseguidas oficialmente pelo Direito Penal e a sua decorrência organizacional, que é o Sistema de Justiça Criminal, podem ser constatadas: (i) a proteção de bens jurídicos relevantes para a sociedade, ou seja, bens que de algum modo, caso violados pela prática do fato criminoso, produzam instabilidade social, como a vida, a integridade física, a liberdade individual, sexual etc.  Por esse motivo, o Direito Penal não pode ser invocado como instrumento de proteção de determinada ideologia, religião ou premissas morais de determinado grupo; (ii) contenção ou redução da violência estatal.  Por esse motivo o espectro de incidência do Direito Penal (assim como o do próprio Estado) na sociedade deve ser bastante limitado e controlado (de atuação subsidiária, apenas), considerando, portanto, que o Estado é invariavelmente uma estrutura de poder, há, inexoravelmente, uma linha bastante tênue entre Estado de Direito (constitucional, moderno) e Estado de Polícia (totalitário, historicamente predominante) e o Direito Penal, se bem aplicado, claro e resolvido (papel limitador e não legitimador de castigos), exerce função fundamental na limitação do exercício do poder punitivo do Estado (monopólio do Estado)2, na preservação da democracia e do devido processo legal, como garantia do cidadão (desde a Revolução Francesa)3; (iii) prevenção da vingança privada. Com a incidência do Direito Penal na preservação de bens jurídicos realmente importantes para o convívio social, reduzindo-se os ímpetos de busca da vingança privada, do exercício arbitrário das próprias razões pelo cidadão. Daí a constatação de que o poder punitivo, monopólio do Estado, só pode ser exercido de lege lata, é dizer, de acordo com o previsto previamente na lei (princípio da legalidade); (iv) funcionar como instrumento formal de garantias ao cidadão submetido ao Sistema de Justiça Criminal. Garantias que começam com a mais trivial delas, que é a legalidade. Significa dizer que o Sistema de Justiça Criminal encontra-se estritamente vinculado à lei formal, nullum crimen, nulla poena sine lege poenali praevia. Ninguém pode ser punido senão em virtude de lei anterior (emanada do Poder Legislativo).

Entretanto, sabe-se que o princípio da legalidade não é o único a assegurar o exercício proporcional e equilibrado do Direito de punir do Estado (garantindo o exercício de liberdade do cidadão desde que esse exercício não ofenda bens jurídicos realmente relevantes), devendo ser incluídos, por toda a sua importância na contensão do excesso e na manutenção do equilíbrio punitivo versus direito de liberdade dos cidadãos, os princípios (a ordem é meramente expositiva, não há nenhuma consequência prática nela) da intervenção mínima; da proporcionalidade; da ofensividade; proibição da dupla punição (non bis in idem); da irretroatividade maléfica; transcendência mínima; da superioridade ética do Estado; máxima taxatividade e da culpabilidade, cujo centro de todo o Estado deve ser a dignidade da pessoa humana (deve existir um relacionamento umbilical entre o Direito Penal, o Direito Constitucional e os Direitos Humanos). Entretanto, para terem efetividade, todos esses princípios limitadores necessitam do princípio da legalidade como sustentáculo principal, pois o princípio da legalidade é a base do Estado de Direito.

Esses princípios limitadores mencionados modulam direta e indiretamente o Sistema de Justiça Criminal de um país, principalmente no controle do poder punitivo do Estado (e os órgãos que executam, de  algum modo, o poder punitivo estatal), evitando o desaparecimento do Estado Democrático e Social de Direito arrimado no Direito Constitucional (perspectiva constitucional) ante o uso político do Direito Penal, irracional e seletivo4. Esse número de princípios limitadores podem sempre ser aumentados em razão do progresso jurídico alcançado. Sem embargo, não se deve esquecer que o Estado deve sempre agir de maneira ética em relação aos seus cidadãos (princípio da superioridade ética do Estado) e o Direito Penal, do mesmo modo, deve ser ético, preciso (taxatividade) e imparcial (nunca ideológico).

Pois bem: nem o Estado e tampouco o Direito Penal são fins em si mesmos, são, na verdade, meios (não estáticos) para construção do Estado de Direito com segurança jurídica, isto é, segurança dos bens jurídicos individuais e coletivos de todos os seus habitantes, sem que exista poder punitivo à margem da lei (penas ilícitas). Em síntese, quanto mais amplo for o poder punitivo do Estado, com mais leis penais (criminalização primária) mais distante se fica de um Estado de Direito, eis que maior será o poder arbitrário (luz verde) da seletividade criminalizante e mais o Estado se distancia de seu propósito e modelo ideal de igualdade perante a lei.

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Se diz formal pois obrigatoriamente deve respeitar o devido processo legal (acusação formal, defesa, produção ode provas, sentença, recurso, ações autônomas de impugnação etc.). Por outro lado, são exemplos de controles sociais informais a família, a escola, o trabalho, os grupos sociais etc.

A exercer um papel limitador e não legitimador de castigos. Para aprofundamento do tema ver: OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma de. As teorias da pena no direito penal contemporâneo. In: Temas contemporâneos de direito penal e processual penal. Coordenadores: Filipe Maia Broeto, Diego Renoldi Quaresma. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2021, p. 41-43; OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma de. La criminología del otro como refuerzo a la selectividad penal criminalizante. Disponível em:  https://tuespaciojuridico.com.ar/tudoctrina/2020/01/27/1-189/.

Sobre os limites do poder punitivo do Estado ver: OLIVEIRA, Fernando Cesar de. A impossibilidade da conversão do flagrante em preventiva 'de ofício' pelo juiz. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-out-04/fernando-faria-conversao-flagrante-preventiva-juiz.

4 Sobre a irracionalidade do Direito Penal ver mais em: OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma de. La criminología del otro como refuerzo a la selectividad penal criminalizante. Revista Pensamiento Penal. Janeiro de 2021. Disponível em: https://www.pensamientopenal.com.ar/doctrina/49683-criminologia-del-otro-refuerzo-selectividad-penal-criminalizante.

Diego Renoldi Quaresma de Oliveira

VIP Diego Renoldi Quaresma de Oliveira

Advogado criminal, professor, palestrante e autor de livros e artigos sobre Direito Penal, Direito Processual Penal e liberdade de expressão.

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