A Barbie é tudo, o Direito é só o jurídico
É evidente que, do ponto de vista da regulação legal, observados limites legais e constitucionais, a titular das marcas Barbie pode fazer cessar muitas campanhas e produtos que vem sendo circulados recentemente.
quinta-feira, 10 de agosto de 2023
Atualizado em 9 de agosto de 2023 13:03
Mesmo após a contenção dos riscos da pandemia, os cinemas brasileiros não recuperaram o fôlego. De acordo com a Ancine, em 2023, foram vendidos 48 milhões de ingressos até o dia 4/6. No mesmo período de 2019, 77 milhões de ingressos haviam sido vendidos.1 Com a dominância de plataformas de streaming e portais como YouTube e Twitch, cada vez mais o acesso à cultura em espaços físicos perde seu protagonismo para espaços virtuais e gratuitos (ou menos custosos). De acordo com o Datafolha2, 39% dos entrevistados assistiram apresentações de música, dança ou teatro, em 2021. Em 2022, o valor caiu para 18%. Por outro lado, em 2021, 32% afirmavam serem espectadores de algum podcast. Em 2022, o número saltou para 42%. O cenário da indústria audiovisual, sobretudo para os cinemas, casas de show e teatros, portanto, é desafiador.
As mudanças não são apenas tecnológicas, mas de valores. Pautas inclusivas alcançaram o público. Nesse cenário, a posição da Barbie - que para muitos representa papeis de gênero antiquados e uma projeção de perfeição por meio de um ideal de beleza inalcançável - estava ameaçada. Em 2019, as ações da fabricante Mattel tiveram a pior queda dos últimos 20 anos, acompanhando a perda de protagonismo de seu principal produto. A associação da marca com uma visão antiquada de valores sociais parecia irreversível.
Em um mundo em que a boneca loira e os cinemas lutam para sobreviver, estreou o filme Barbie, dirigido por Greta Gerwig. As notícias são de esgotamento dos ingressos, em um frenesi que a muito não se via no mercado.
O filme é um case a ser estudado pelos profissionais de marketing. Criou-se um ambiente de especulações sobre o que se esperava da trama: finalmente veríamos uma Barbie imperfeita - ou fisicamente e simbolicamente real? A marca conseguiria se reposicionar diante do público?
Nos espaços digitais, obteve-se o engajamento de influencers, gerando impulsionamento orgânico não só do filme, mas da marca Barbie. Isso ocorre em um momento em que o marketing de influência se tornou um pilar para o sucesso. A Mattel fez isso com maestria: aqueles que não estivessem falando da marca Barbie, estaria automaticamente perdendo atenção do público, que estava sedento por tudo que envolve o lançamento da trama.
Nos espaços físicos, além de outdoors e outros meios clássicos de propaganda, o elenco transitou por diversos países. Margot Robbie desfilava vestindo roupas da boneca, gerando conexão com o público e nostalgia. Grandes nomes da música, como Dua Lipa e Nicki Minaj, também fizeram presença na obra e em sua divulgação, atraindo o público jovem.
Muito pertinente é o comentário de Ali Plumb (crítico de cinema da BBC Rádio 1). Para ele, a campanha do filme está em todos os lugares (físicos e virtuais) porque a Mattel, titular da marca Barbie, está vendendo mais do que apenas um filme: "O que você está vendo não é apenas uma promoção para o filme, é para a marca Barbie."3
De fato, poderia se sugerir que toda a campanha por trás do filme faz parte de uma ampla estratégia de reposicionamento da marca Barbie. O live action é um divisor de águas: há o antes e o depois do filme. Essa baliza serve para a própria marca Barbie, mas também para a indústria do audiovisual, e até para uma retomada à estética colorida que vinha sendo abandonada no mundo.
Diante dessa inevitável onipresença, a campanha de marketing excedeu os limites dos próprios produtos da Mattel. Muitas empresas aderiram ao buzz digital e físico entorno do filme, buscando engajamento e captação de clientes, por meio de práticas que em alguns casos podem ser consideradas até mesmo como marketing de emboscada.
Nesse contexto, muitos que surfaram na onda da Barbie sem autorização poderiam ser penalizados por infringirem direitos de propriedade intelectual - que não são poucos. Além dos próprios registros marcários, há direitos autorais e conexos sobre o filme, suas personagens e peças de moda. É possível discutir os direitos que recaem sobre o tão marcante rosa choque purpurinado, sua fonte e identidade visual. É possível pensar em termos de concorrência desleal, aproveitamento parasitário e marketing de emboscada.
Aqui, porém, convida-se o leitor a se lembrar que nem tudo é (só) jurídico. O caso evidencia uma nítida diferença na forma de pensar de advogados e profissionais do marketing. A alta exposição da marca, estampada por todos os cantos, empresas e pessoas, com ou sem autorização, parece o paraíso para os marketeiros, mas o inferno para os advogados. Preocupados com os direitos de propriedade intelectual, a reação dos juristas parece ser automática e absolutamente proibitiva, buscando o enquadramento legal perfeito para fazer cessar qualquer associação por parte de terceiros.
O que muitas vezes se esquece, porém, é que os direitos de propriedade intelectual são faculdades que podem ou não ser exercidas pela titular a partir de suas estratégias comerciais. De fato, não se subestima a importância da educação do público quanto à propriedade intelectual. Tampouco se deixa de observar a relevância que o controle de licenciamento tem para detentores de marcas.
Porém, é preciso se recordar que nem tudo é apenas jurídico - nem mesmo a regulação. Lawrence Lessig4 notoriamente destaca a existência de quatro forças regulatórias que moldam o comportamento de indivíduos na sociedade: as leis, as normas sociais, o mercado, e a arquitetura.
As leis são as regras formais emitidas pelo Estado que estabelecem direitos e obrigações para os cidadãos, desempenhando um papel fundamental, inclusive em relação à propriedade intelectual. Já, as normas sociais são regras não escritas, influenciadas pelas expectativas, tradições e valores culturais. A economia de mercado também desempenha um papel regulatório, por meio da oferta e demanda, influenciando comportamentos e decisões. Já a arquitetura refere-se ao design e à estrutura dos sistemas tecnológicos e sociais. Neste contexto, a arquitetura pode limitar ou ampliar ações de indivíduos.
Lessig destaca que essas quatro forças regulatórias estão em constante interação e podem se reforçar ou entrar em conflito umas com as outras. Tal olhar contemporâneo possui fortes impactos na maneira de se compreender a forma mais eficiente de gerir direitos de propriedade intelectual.
É evidente que, do ponto de vista da regulação legal, observados limites legais e constitucionais, a titular das marcas Barbie pode fazer cessar muitas campanhas e produtos que vem sendo circulados recentemente. Entretanto, é necessário também observar os comportamentos do mercado e das normas sociais - Se a nova Barbie se propõe mais inclusiva, qual mensagem estaria sendo passada para o público consumidor através do exercício de direitos cuja natureza é a oposta: exclusiva? Será que não era justamente essa onipresença que se esperava ao investir quantias exorbitantes em marketing?
Cabe apenas à titular dos direitos decidir quais usos da marca serão ou não tolerados. De todo modo, o caso serve para nos lembrar que a assessoria jurídica deve se adequar às demandas do cliente. Mesmo que haja um dever funcional de se antecipar e informar riscos, não se deve perder de vista que o Jurídico é apenas parte de um contexto regulatório muito maior. É preciso cautela para que o remédio não seja pior que a doença. Sem valor mercadológico sobre a marca, não há marca a se proteger. A Barbie é tudo, o Direito é só o jurídico.
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1 https://veja.abril.com.br/cultura/o-efeito-da-pandemia-no-cinema-bilheteria-brasileira-caiu-78-em-2020
2 https://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/2022/09/baixa-oferta-de-filmes-e-crise-economica-travam-retomada-dos-cinemas-no-pos-pandemia.shtml
3 https://www.bbc.com/portuguese/articles/ceqw2896q1jo
4 LESSIG, Lawrence. Code and other laws of cyberspace. Basic Books, 2006.
Pedro de Abreu M. Campos
Advogado especialista em Propriedade Intelectual, mestrando em Direito Civil Contemporâneo e membro do Comitê de Copyright da INTA.