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Vigilância na era da informação: buscando a justiça ética e legal numa sociedade interconectada

Embora a vigilância possa contribuir para a segurança e a ordem públicas, é fundamental garantir que o uso dessas tecnologias respeite os direitos fundamentais e esteja sujeito a salvaguardas adequadas.

terça-feira, 25 de julho de 2023

Atualizado em 11 de agosto de 2023 11:26

1. Introdução

Ao longo dos séculos, cidadãos e residentes questionaram os limites do poder estatal em restringir suas liberdades e livre arbítrio. A cada vez que esses limites pareciam ter sido ultrapassados na história, parlamentares e sociedade civil se levantaram. No século XVIII, essa oposição era direcionada contra passaportes e o registro de certas categorias de pessoas em arquivos, como suspeitos de crimes e oponentes políticos. Já no final do século XIX, a opinião pública se opunha à coleta, pelo Estado, de fotografias, que eram vistas como uma ameaça às liberdades das "pessoas honestas". As pessoas expressavam o medo de serem submetidas a classificações arbitrárias, baseadas em critérios opacos, e à privação contestável da liberdade com base apenas nessa categorização.

A partir da Primeira Guerra Mundial, alguns governos conseguiram impor documentos de identidade a todos os seus residentes e, posteriormente, a seus nacionais, com um processo de triagem aplicado em certos países a minorias consideradas indesejáveis. Os cartões de identidade sobreviveram às guerras na França, Itália e Alemanha, enquanto foram abolidos no Reino Unido.

A oposição aos eventos ocorridos durante as guerras levou à adoção, em 1950, da Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH). O objetivo da CEDH era e ainda é prevenir o retorno ao totalitarismo, por meio de um mecanismo que desencoraja os Estados de favorecer a ordem e a segurança em detrimento da preservação das liberdades. Esquematicamente, a CEDH exige, no mínimo, que qualquer interferência em um direito fundamental seja prevista em lei, tenha um propósito determinado e legítimo (que deve corresponder a uma necessidade demonstrada) e seja eficiente e restrita ao estritamente necessário para atingir esse propósito. Esses princípios, também conhecidos como "requisitos de necessidade e proporcionalidade", foram objeto de implementação específica em leis dedicadas à proteção de dados pessoais a partir da década de 1970, levando em conta a crescente digitalização da sociedade.

A partir de 1985, o desenvolvimento da biometria e do reconhecimento facial, bem como seu crescente uso por autoridades públicas e pelo setor privado, tem gerado novas preocupações. As autoridades públicas justificam a implementação e o aprimoramento dessas tecnologias como uma necessidade que não requer discussão, a fim de combater o terrorismo e garantir a segurança. No entanto, até o momento, elas não conseguiram estabelecer evidências de eficiência e valor agregado, considerando que a biometria é uma ferramenta altamente íntima e identificadora. Consequentemente, tanto a sociedade civil quanto os políticos estão pedindo o fim dessa cultura de identificação e controle, amplamente considerada uma ameaça à democracia e ao Estado de Direito.

2. Natureza das Tecnologias de Vigilância

As tecnologias de vigilância, em seu amplo espectro, são complexos mecanismos que abarcam uma vasta variedade de ferramentas e sistemas com o intuito de supervisionar, rastrear e avaliar comportamentos e atividades humanas (Lyon, 2007). Essas tecnologias, conforme explicitado por Clarke (1994), fundamentam-se na coleta sistemática, análise meticulosa e processamento acurado de dados, com o propósito de intensificar a segurança, assegurar o cumprimento de normas regulatórias ou aprimorar operações em múltiplos segmentos da economia.

As tecnologias de vigilância ostentam características peculiares, como ilustrado por Marx (2002), incluindo a capacidade de supervisionar atividades em tempo real ou de gravá-las para revisão em momento oportuno. Além disso, tais tecnologias exibem a habilidade de identificar indivíduos ou comportamentos específicos mediante a análise de padrões de dados. Ball, Haggerty e Lyon (2012) realçam a capacidade dessas tecnologias de sintetizar dados provenientes de diversas fontes, fornecendo, assim, uma visão mais integrada e holística da atividade monitorada.

As tecnologias de vigilância estão imbricadas em diversos setores da sociedade e, embora sejam ferramentas úteis e necessárias em muitos aspectos, é importante refletir criticamente sobre seus possíveis efeitos e implicações éticas, como delineado por Monahan (2010). É fundamental que sejam incorporadas políticas de governança para assegurar que tais tecnologias sejam utilizadas de forma responsável e com respeito às liberdades e direitos civis.

3. Tipos Comuns de Tecnologias de Vigilância

Um exemplo emblemático de tecnologia de vigilância, amplamente estudado por Norris e Armstrong (1999), são as câmeras de segurança, que têm sido empregadas em residências, corporações e espaços públicos com o intuito de prevenir e elucidar atos criminosos. Com a evolução da tecnologia de circuito fechado de televisão (CCTV), tais câmeras agora são capazes de transmitir imagens e vídeos para um local específico, permitindo o monitoramento ininterrupto de uma determinada área.

O reconhecimento facial, como discutido por Gates (2011), é outro exemplo de tecnologia de vigilância que tem ganhado crescente popularidade. Esta tecnologia, por meio do uso de algoritmos sofisticados e extensas bases de dados de imagens, consegue identificar indivíduos em tempo real, uma ferramenta útil para variadas finalidades, desde a autenticação segura até a busca por suspeitos criminais.

Por fim, tem-se o monitoramento biométrico, que inclui a digitalização de impressões digitais, a análise da íris, o reconhecimento de voz e o monitoramento de batimentos cardíacos, que, segundo Jain, Ross e Prabhakar (2004), tornou-se uma característica comum em muitos sistemas de segurança e dispositivos de consumo.

O emprego dessas tecnologias, apesar de proporcionar inegáveis benefícios em termos de segurança e praticidade, também levanta questões relevantes acerca da privacidade e da proteção de dados, demandando uma constante avaliação ética e jurídica (Solove, 2008).

Câmeras de segurança, por exemplo, são uma ferramenta comum de vigilância utilizada por governos municipais e federais. Conforme discutido por Norris e Armstrong (1999), elas são empregadas em locais públicos para ajudar a prevenir e resolver crimes, bem como para monitorar o comportamento em áreas de alta circulação. A tecnologia de circuito fechado de televisão (CCTV) tem sido uma aliada importante, permitindo o monitoramento contínuo e a análise das imagens capturadas.

O reconhecimento facial, outra tecnologia de vigilância utilizada no setor público, tem sido adotado por forças policiais e agências de segurança para auxiliar na identificação e busca de suspeitos criminais (Gates, 2011). Apesar de seus benefícios para a segurança pública, o uso desta tecnologia também levantou preocupações sobre a privacidade e a possibilidade de usos abusivos.

Ademais, o monitoramento biométrico está sendo implementado em vários setores do governo. Tais tecnologias permitem a autenticação segura de identidade, sendo usadas, por exemplo, em controle de acesso a instalações seguras ou para autenticação em sistemas digitais (Jain, Ross e Prabhakar, 2004). 

4. Avanços Recentes e Tendências Futuras nas Tecnologias de Vigilância: Uma Análise Crítica

Nos últimos anos, observou-se um acentuado progresso nas tecnologias de vigilância, substancialmente impulsionado por avanços em campos como a Inteligência Artificial (IA) e o aprendizado de máquina (Russell & Norvig, 2016). Estes sistemas de vigilância modernos são capazes de detectar automaticamente anomalias ou comportamentos suspeitos, eliminando a necessidade de constante supervisão humana. Além disso, com o aprendizado de máquina, podem se adaptar e aprender a partir de padrões de comportamento, tornando-se mais eficientes na prevenção de ameaças ou incidentes (Hempel, 2018).

A tendência contemporânea é a integração cada vez maior das tecnologias de vigilância. Como exemplificado pela Internet das Coisas (IoT), uma multiplicidade de dispositivos e sensores pode ser conectada para criar uma rede de vigilância abrangente e eficaz (Atzori, Iera & Morabito, 2010). Esta ampla conectividade pode fornecer uma visão mais completa da atividade monitorada, oferecendo insights mais ricos e profundos.

Entretanto, com o avanço dessas tecnologias, surgem preocupações substanciais sobre privacidade e consentimento. Questões relativas ao acesso, uso e armazenamento de dados coletados, assim como a necessidade de transparência e responsabilidade, estão em constante debate e são foco de regulações cada vez mais rigorosas (Zuboff, 2019).

Nesse sentido, o futuro das tecnologias de vigilância provavelmente se direcionará para uma integração ainda maior entre sistemas, possibilitando a coleta e análise de dados cada vez mais complexos. Adicionalmente, avanços em campos como a IA e o aprendizado de máquina continuarão a impulsionar o desenvolvimento de sistemas de vigilância cada vez mais sofisticados e adaptáveis (Wang, Zhao & Ye, 2019).

Por outro lado, espera-se um incremento nas medidas de proteção à privacidade, incluindo novas regulamentações e leis, bem como inovações tecnológicas destinadas a garantir a segurança dos dados. Tecnologias como criptografia de ponta a ponta e anonimização de dados são exemplos de técnicas que podem ser implementadas para proteger a privacidade do indivíduo, mesmo em um cenário de intensa vigilância (Greenwald, 2014).

Em suma, as tecnologias de vigilância são componentes essenciais do mundo moderno, desempenhando um papel relevante na segurança, na aplicação da lei e em muitos outros setores. Contudo, à medida que essas tecnologias evoluem, é imperativo garantir que a privacidade e os direitos dos indivíduos sejam respeitados e protegidos.

Hempel (2018) argumenta que as ferramentas de vigilância contemporâneas estão equipadas com sistemas de aprendizado de máquina que têm o potencial de identificar e alertar automaticamente sobre comportamentos anômalos, com base em padrões aprendidos. Tais avanços eliminam a necessidade de monitoramento humano constante, o que aumenta a eficiência dos sistemas de vigilância.

Com a proliferação da Internet das Coisas (IoT), as tecnologias de vigilância têm demonstrado uma tendência crescente para integração e interoperabilidade (Atzori, Iera & Morabito, 2010). Por exemplo, uma variedade de dispositivos e sensores pode ser conectada para criar uma rede de vigilância abrangente que oferece uma visão mais holística da atividade monitorada. Isso, por sua vez, permite a extração de insights mais significativos e profundos.

No entanto, apesar dos benefícios proporcionados por essas inovações, surgem também preocupações profundas relacionadas à privacidade e ao consentimento. Conforme discutido por Zuboff (2019), a questão de quem tem acesso aos dados coletados, como esses dados são utilizados e armazenados, bem como a necessidade de garantir transparência e responsabilidade, são tópicos de intensa discussão e regulamentação.

Olhando para o futuro, é provável que vejamos uma ainda maior integração entre sistemas de vigilância, possibilitando a coleta e análise de dados ainda mais complexos (Wang, Zhao & Ye, 2019). Além disso, o campo da inteligência artificial continua a promover o desenvolvimento de sistemas de vigilância mais inteligentes e adaptáveis, que são capazes de aprender e se ajustar ao comportamento humano.

Por outro lado, a proteção à privacidade também está evoluindo. Greenwald (2014) sugere que podemos esperar avanços tecnológicos destinados a garantir a segurança dos dados, como a criptografia de ponta a ponta e a anonimização dos dados. Essas medidas podem proteger a privacidade dos indivíduos, mesmo em um ambiente de intensiva vigilância. 

5. Questões de Privacidade e Proteção de Dados Pessoais na Era da Vigilância Digital: Uma Análise à Luz da LGPD

Em um contexto cada vez mais digitalizado, a proteção da privacidade e dos dados pessoais tornou-se um assunto de importância primordial. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), aprovada no Brasil em 2018, surgiu como um importante passo em direção à proteção desses direitos. Segundo Siqueira (2019), a LGPD foi concebida com o objetivo de estabelecer diretrizes claras para a coleta, uso, processamento e armazenamento de dados pessoais. De acordo com a lei, as organizações são obrigadas a informar os indivíduos sobre a coleta e o uso de seus dados e a garantir seu consentimento explícito.

As diretrizes estabelecidas pela LGPD também enfatizam a importância da segurança dos dados. Segundo Martins (2020), qualquer vazamento de dados ou falha na segurança pode ter consequências legais graves para as organizações, incluindo penalidades significativas. Além disso, a LGPD estabelece o direito dos indivíduos de acessar, corrigir e excluir seus dados, bem como de contestar decisões tomadas com base em processamento automatizado de dados pessoais.

Neste cenário, a adoção de tecnologias de vigilância, como câmeras de segurança e sistemas de reconhecimento facial, deve ser feita de acordo com a LGPD. A coleta e o uso de dados pessoais por tecnologias de vigilância suscitam questões cruciais de privacidade. Como apontado por Solove (2008) e corroborado por Siqueira (2019), a coleta em massa de dados, especialmente quando realizada sem o conhecimento ou consentimento do indivíduo, pode ser interpretada como uma violação da privacidade. A segurança desses dados coletados também se apresenta como um desafio significativo, pois falhas de segurança podem resultar em vazamentos de dados, expondo informações sensíveis e colocando em risco a integridade dos indivíduos envolvidos.

Outro aspecto relevante diz respeito à figura do Encarregado de Proteção de Dados (DPO), que tem a função de mediar as relações entre o titular dos dados e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Este profissional é responsável por garantir a conformidade da organização com as leis de proteção de dados (Martins, 2020).

Em suma, o uso ético e legal das tecnologias de vigilância, conforme regido pela LGPD, é uma questão de fundamental importância para a sociedade contemporânea. Como apontado por Siqueira (2019) e Martins (2020), é essencial garantir que as práticas de coleta e processamento de dados respeitem a privacidade do indivíduo, protejam seus dados pessoais e promovam a transparência na era digital.

A LGPD também estabelece princípios para o tratamento de dados, como o princípio da finalidade, que exige que os dados sejam coletados para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular, e o princípio da necessidade, que limita a coleta de dados ao mínimo necessário para a realização dessas finalidades (Martins, 2020).

Nesse sentido, a implementação efetiva da LGPD é de suma importância para assegurar que as tecnologias de vigilância respeitem os direitos fundamentais dos cidadãos à privacidade e à proteção de seus dados pessoais. Assim, ao se observar a crescente digitalização da sociedade, torna-se cada vez mais crucial que a regulamentação e a aplicação da LGPD sejam efetivamente realizadas. 

6. Riscos de discriminação e vigilância em massa

Os temas de discriminação e vigilância em massa, bem como os limites do poder do Estado e violações dos direitos fundamentais, são de extrema relevância quando consideramos a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil. Esta lei, em vigor desde 2020, tem como um de seus principais objetivos garantir o direito à privacidade e à proteção de dados pessoais dos usuários, bem como definir limites para a coleta e uso de dados pessoais por empresas e pelo governo.

A LGPD determina que o consentimento do titular dos dados é essencial para a coleta e processamento de dados pessoais, reforçando o direito à privacidade. Isso significa que, em teoria, a vigilância em massa sem consentimento explícito não seria permitida segundo a LGPD. No entanto, é importante observar que existem exceções na lei para a segurança pública, defesa nacional, segurança do Estado e atividades de investigação e repressão de infrações penais.

Quanto à questão da discriminação, a LGPD proíbe expressamente o tratamento de dados pessoais para o fim de discriminação ilícita ou abusiva. Isso é relevante no contexto do reconhecimento facial e de outras tecnologias de vigilância que podem ter taxas de erro mais altas para certos grupos demográficos, como mencionado em sua referência a Buolamwini e Gebru (2018).

Por fim, a LGPD também aborda a questão dos limites do poder do Estado. Ela estabelece que o tratamento de dados pessoais deve ser realizado em observância à liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião. Isso sinaliza a preocupação da lei com possíveis violações desses direitos fundamentais pelo poder público.

Apesar da LGPD ser um importante marco regulatório no Brasil, a eficácia de sua aplicação ainda é objeto de discussão. Alguns especialistas, como Laura Schertel Mendes e Danilo Doneda (2020), afirmam que a implementação efetiva da LGPD ainda enfrenta diversos desafios, como a necessidade de uma cultura de proteção de dados no Brasil, a criação de uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados eficiente e a adaptação das empresas e do poder público à nova legislação. 

7.Necessidade de salvaguardas legais e regulatórias para o uso de tecnologias de vigilância

Considerando a natureza complexa e potencialmente intrusiva das tecnologias de vigilância, torna-se vital a existência de salvaguardas legais e regulatórias robustas para orientar seu uso. Essas medidas precisam assegurar transparência, responsabilidade, proporcionalidade e necessidade na utilização de tais tecnologias, e devem prover meios adequados para que indivíduos possam buscar reparação caso seus direitos sejam infringidos (Maras, 2017).

Uma forma de garantir essas proteções é através da criação de leis que regulamentem a coleta, armazenamento e uso de dados pessoais, tal como o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) implementado na União Europeia (EU). Adicionalmente, a implementação de mecanismos de supervisão e fiscalização efetivos se torna crucial para assegurar a conformidade com estas regulamentações e garantir que a utilização das tecnologias de vigilância esteja em conformidade com princípios éticos e legais.

Além das regulamentações legais, a participação ativa da sociedade civil e organizações de defesa dos direitos humanos se mostra fundamental para a proteção dos direitos individuais. Estas entidades têm um papel importante na defesa da transparência, no monitoramento da utilização das tecnologias de vigilância e no apoio a indivíduos que possam ter sido afetados por violações de privacidade e outros abusos (Amnesty International, 2020).

O envolvimento de especialistas em ética, direitos humanos, tecnologia e áreas afins também se torna crucial para avaliar e mitigar os riscos éticos e legais associados ao uso dessas tecnologias de vigilância. Nesse contexto, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) do Brasil surge como um exemplo dessas salvaguardas. A LGPD regula a coleta, o armazenamento, o tratamento e a utilização de dados pessoais, requerendo, entre outras coisas, o consentimento do titular dos dados para sua utilização, equilibrando assim a necessidade de coleta de dados para fins de segurança com o direito fundamental à privacidade.

Ressalta-se que a regulação não deve apenas se limitar à proteção de dados. Salvaguardas adicionais podem incluir medidas para garantir transparência no uso das tecnologias de vigilância, obrigatoriedade de avaliações de impacto sobre a privacidade antes da implementação dessas tecnologias, e a existência de mecanismos de recurso para indivíduos cujos direitos possam ter sido violados pelo uso dessas tecnologias.

Em face à rápida evolução das tecnologias de vigilância, é imperativo que as salvaguardas legais e regulatórias sejam continuamente revistas e atualizadas para que permaneçam eficazes. Isso demanda um engajamento ativo tanto de legisladores quanto de especialistas em tecnologia, direito e ética.

Por fim, é crucial que as salvaguardas legais e regulatórias sejam aplicadas de forma efetiva. Isso requer não apenas a existência de mecanismos de fiscalização adequados, mas também a vontade política para assegurar que as violações das regras sejam devidamente punidas.

A efetiva implementação dessas salvaguardas é um processo contínuo que deve evoluir junto com as tecnologias de vigilância. Isso envolve um monitoramento constante para identificar possíveis abusos e tomar medidas corretivas quando necessário.

Além disso, é necessário um compromisso firme por parte das autoridades e dos responsáveis pela aplicação da lei, de modo a garantir que as leis e regulamentos sejam respeitados. É também essencial que exista uma consciência pública sobre os direitos individuais e como eles podem ser afetados pelo uso dessas tecnologias. O papel da educação e da conscientização pública é, portanto, de extrema importância neste contexto.

A colaboração entre legisladores, especialistas em tecnologia, organizações de direitos humanos e a sociedade em geral é fundamental para garantir que o uso de tecnologias de vigilância seja regulamentado de forma a proteger os direitos e liberdades individuais, enquanto permite a utilização responsável dessas tecnologias para fins legítimos.

Em suma, a adoção de salvaguardas legais e regulatórias robustas é de extrema importância para garantir que o uso de tecnologias de vigilância seja realizado de uma maneira que respeite os direitos humanos, proteja a privacidade individual e evite abusos. Estes desafios foram discutidos por importantes juristas, como Laura Schertel Mendes, que enfatiza a necessidade de atualização constante dessas salvaguardas para acompanhar as mudanças tecnológicas e garantir a proteção efetiva dos direitos dos cidadãos (MENDES; DONEDA, 2020). 

8. Recomendações para a Implementação Responsável de Tecnologias de Vigilância em São Paulo

A Prefeitura de São Paulo está avançando com uma licitação para instalar mais de 2.000 câmeras de reconhecimento facial na cidade, após a derrubada de uma liminar que suspendeu o processo (Metropoles, 2023). Esta iniciativa marca um importante passo em direção ao uso de tecnologias de vigilância avançadas em larga escala na cidade, o que poderia ter implicações significativas para a privacidade e os direitos dos cidadãos.

Embora a vigilância possa contribuir para a segurança e a ordem públicas, é fundamental garantir que o uso dessas tecnologias respeite os direitos fundamentais e esteja sujeito a salvaguardas adequadas. Neste sentido, a cidade de São Paulo poderia considerar as seguintes recomendações à luz dos recentes desenvolvimentos:

a) Transparência: A cidade deve divulgar completamente o funcionamento do sistema de vigilância, incluindo como os dados serão coletados, armazenados e usados, bem como quaisquer parcerias com empresas privadas.

b) Regulamentação e salvaguardas legais: É crucial que existam leis e regulamentos que governem o uso de tecnologias de vigilância. Estas devem incluir disposições para garantir a privacidade dos cidadãos, limitar o uso indevido dos dados coletados e fornecer meios para buscar reparação no caso de abusos.

c)  Revisão Independente: Considerar a implementação de uma revisão independente do uso de tecnologias de vigilância, que poderia incluir especialistas em privacidade, direitos humanos e ética.

d) Avaliação de impacto na privacidade: Antes da implementação de novas tecnologias de vigilância, a cidade deve realizar uma avaliação de impacto na privacidade para entender e mitigar quaisquer riscos à privacidade dos cidadãos.

e) Treinamento e sensibilização: Aqueles que operam sistemas de vigilância devem receber treinamento adequado para entender os direitos de privacidade e como evitar abusos.

A implementação de tais medidas ajudaria a garantir que a cidade de São Paulo possa beneficiar-se das potenciais vantagens de uma maior vigilância, como a melhoria da segurança, sem comprometer os direitos de privacidade e as liberdades civis de seus cidadãos. 

9. Conclusão 

No contexto de São Paulo, a interseção entre vigilância e privacidade ganha uma dimensão crítica à medida que a cidade se prepara para adotar tecnologias de vigilância em larga escala, como o sistema de câmeras de reconhecimento facial. Nesse cenário, a busca por um equilíbrio entre a segurança pública e a proteção dos direitos individuais emerge como um desafio de importância fundamental. A análise detalhada do panorama nos conduz a reflexões que apontam para um caminho de vigilância responsável e transparente, capaz de respeitar os valores fundamentais de uma sociedade democrática e tecnologicamente avançada.

As recomendações cuidadosamente delineadas para a implementação das tecnologias de vigilância destacam que a transparência é a base de qualquer estrutura sólida. A divulgação integral do funcionamento dos sistemas de vigilância é o primeiro passo para cultivar a confiança dos cidadãos e evitar a desinformação. Ao lado disso, a regulamentação clara e firme, apoiada por leis específicas, assegura que as tecnologias de vigilância sejam utilizadas de maneira ética e dentro dos limites dos direitos individuais.

A avaliação de impacto na privacidade emerge como uma ferramenta essencial para antecipar possíveis riscos e mitigá-los de maneira proativa. Tal abordagem demonstra um compromisso real com a proteção dos cidadãos e contribui para a construção de sistemas de vigilância que funcionem com responsabilidade e respeito. A supervisão independente, juntamente com a participação pública e a colaboração de especialistas, fortalece ainda mais a garantia de que o uso de tecnologias de vigilância não resulte em abusos.

A educação e conscientização do público são pilares para uma adoção informada e reflexiva das tecnologias de vigilância. Uma sociedade bem-informada tem maior capacidade de avaliar as vantagens e desvantagens, bem como de monitorar a implementação das tecnologias de vigilância, garantindo que os interesses coletivos sejam preservados.

Ao amarrar esses pontos, emerge uma visão clara de um caminho a seguir. São Paulo, ao adotar tecnologias de vigilância, tem a oportunidade de construir um modelo exemplar que equilibra a segurança com o respeito à privacidade e aos direitos individuais. A busca por esse equilíbrio não é apenas um imperativo ético, mas também um meio de fortalecer a confiança dos cidadãos nas instituições e no progresso tecnológico.

A trajetória rumo a um ambiente de vigilância responsável e transparente em São Paulo é uma jornada que requer compromisso contínuo. Por meio da colaboração entre a administração pública, a sociedade civil, especialistas e cidadãos, pode-se moldar um futuro onde vigilância e privacidade coexistam em harmonia, representando não apenas uma conquista local, mas um exemplo inspirador para outras cidades ao redor do mundo.

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Thiago Ferrarezi

Thiago Ferrarezi

Advogado, Contador e Engenheiro de Produção. Especialista em Direito do Estado (UFRGS). Mestre em Gestão e Políticas Públicas (FGV). Doutorando em TIDD com foco em Inteligência Artificial (PUCSP).

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