O jurista que foi assistir ao filme da Barbie
Isso sugere pensarmos também sobre uma "Organização para a Libertação do Direito", com a correta compreensão das ilhas das flores e dos continentes das ironias!
terça-feira, 25 de julho de 2023
Atualizado às 12:37
Este texto é uma forma singela de tentar colaborar com algumas questões que são extremamente importantes sobre a aparente e frágil polêmica sobre o atual filme da boneca Barbie, um sucesso de bilheteria de estreia, mas também um recente objeto de crítica moral.
Assisti ao filme no dia de sua estreia ao lado de minha companheira, que dizia bastante animada: "o filme é muito mais para as garotas de minha geração", marcada pela cultura da boneca, num cinema lotado de crianças, adolescentes e adultas de idades variadas, em grande parte vestidas com um aparente uniforme extraoficial cor de rosa.
As críticas disseminadas nas redes sociais antes da estreia (e também depois dela) foram moralmente homogêneas, dividindo-se entre a tradicional pregação moral contra uma suposta propaganda hollywoodiana por uma ideologia de gênero, passando pela campanha (geralmente) religiosa contra o filme sob o argumento de que haveria conteúdo impróprio para a família e para as crianças. Críticas que nos dão mais sono e preguiça do que propriamente vontade de respondê-las, pois vazias e superficiais.
Seu roteiro me pareceu abrigar várias camadas, pois além da leitura simplista de uma boneca num mundo colorido - "a barbielandia" - que atravessa a fronteira de sua realidade para se reconectar à criança emocionalmente a ela vinculada, e o preenchimento do "vácuo político" por parte dos "Kens" em uma adoção monista do patriarcado e a disputa entre ideias de mundo machistas e feministas (e não apenas masculinas e femininas), parece haver algo muito mais profundo, e a genialidade do roteiro supera a recente crítica do Washington Post e as resenhas elogiosas, mas ao estilo blasé, do The New York Times.
O filme faria mais sentido para quem mantivesse na memória o contexto daquele estranho movimento havido no início da década de 1990, a "Organização para a Libertação da Barbie" (Barbie Liberation Organization), no qual grupos militantes na guerra cultural estiveram a alterar de maneira sub-reptícia as vozes da boneca Barbie, trocando-as pelas vozes dos bonecos "G.I. Joe" (Comandos em Ação), pois inconformados com as falas da Barbie sobre o ensino da matemática, vale dizer, um movimento originalmente concebido em um esforço para questionar e, finalmente, mudar os estereótipos de gênero pelos quais a cultura americana seria conhecida depois que a Mattel lançou uma Barbie falante que dizia "a aula de matemática é difícil".
Mas para um professor de direito faria mais sentido, e, talvez (provavelmente) seria muito menos chato, a partir da prévia leitura do texto jurídico de autoria de Rebecca Tushnet denominado "Make Me Walk, Make Me Talk, Do Whatever You Please: Barbie and Exceptions".1
Claro, a questão dos direitos autorias estaria ligada de maneira indelével ao tema de um brinquedo com tal grau de maleabilidade e transformismo, com penetração cultural evidente e manejo de cifras astronômicas, quando o elemento econômico caminha disfarçado por entre as brechas dos significantes propriamente culturais.
Por isso Rebecca Tushnet cita três famosos processos judiciais do "universo Barbie": (1) Mattel v. Pitt; (2) Mattel v. MCA; e, (3) Mattel v. Walking Mountain.
O primeiro caso (Mattel v. Pitt) cuida de situação fascinante. A Senhora Susanne Pitt transformou suas bonecas Barbies em "Dungeon Dolls", com mamilos e órgãos genitais adicionais, e as colocou à venda na internet, postando fotos de suas criações, mostrando bonecas sendo sexualmente torturadas.
Com isso, a proprietária da marca, a gigante Mattel, processou a parte por violação de direitos autorais da Barbie. Menciona-se: "A Sra Pitt escreveu ao tribunal que seu trabalho constituía 'legítima liberdade de expressão artística' e que 'as origens da Barbie podem ser rastreadas até um desenho animado e uma boneca alemã chamada 'Lilli' e que [seu] site [foi] oferecido gratuitamente, 'como entretenimento no mesmo espírito livre do criador original'".
Pois bem, após a constatação da capacidade de transformação, os outros fatores de uso justo favoreceram a demandada (a senhora Pitt), uma vez que o tribunal considerou que a natureza do trabalho da Mattel seria criativa, e, muito embora a Sra. Pitt tenha utilizado todo o trabalho anterior - a cabeça da boneca - ela a teria alterado substancialmente, ideia chave para a compressão do elemento jurídico em disputa.
Assim, quando ocorrem usos transformadores, a quantidade de trabalho pode ser substancial quando isso promover o propósito de criar uma nova mensagem ou significado, e naquele contexto, se considerou que as Dungeon Dolls (alterações realizadas) não apresentariam nenhum perigo aparente de usurpação da marca das bonecas Barbie, reconhecendo-se como improvável que a Mattel desenvolvesse ou licenciasse bonecas "adultas". O tribunal negou a demanda da Mattel para um julgamento sumário, e o caso acabou encerrado sem condenação.
A seu turno, o segundo caso (Mattel v. MCA) cuidou de fato ocorrido na década de 1990, quando a Mattel protocolou requerimento judicial perante o Tribunal Distrital da Califórnia, apresentando ações judiciais contra a MCA (gravadora americana da famosa banda Aqua contra a não menos famosa música que você já imaginou), alegando que a referida música violaria a marca registrada da Barbie e a transformava em um objeto sexual, referindo-se a ela como "Blonde Bimbo", tendo igualmente alegado que a embalagem da capa do single usava a Barbie rosa, uma marca registrada de propriedade da Mattel.
A professora Rebecca Tushnet observou, neste sentido, que: "O uso da banda Aqua foi expressivo e referencial. O título da música descrevia a música, em vez de identificar seu produtor. A música zombava da Barbie e dos valores que Aqua pensava que ela representava com letras como 'A vida em plástico é fantástica'. Você pode escovar meu cabelo, me despir em todos os lugares/Imaginação, a vida é sua criação.... Sou uma loira bimbo, em um mundo de fantasia/Vista-me, aperte-o, sou sua boneca".
Prosseguiu, distinguindo: "o tribunal enfatizou que a própria Barbie era o alvo da música, não o meio para criticar uma terceira coisa. Como resultado, a análise de confusão tradicional era inadequada e os interesses da liberdade de expressão mereciam mais peso".
Com isso foi prolatada a decisão no sentido de que a música Barbie Girl deveria ser protegida como uma paródia sob a doutrina de marca registrada de uso nominativo e sob a Primeira Emenda da Constituição dos EUA.
Por fim, o terceiro caso (Mattel v. Walking Mountain) foi um processo havido entre a Mattel e a empresa Tom Forsythe em que a primeira processou a segunda pela produção e venda de fotografias retratando bonecas "Barbie". A Mattel alegou que o uso do nome e imagem da Barbie pela Forsythe em sua série de fotos "Food Chain Barbie" teria infringido seus direitos autorais, marcas registradas e identidade visual, mas o resultado não foi o esperado, uma vez que o Tribunal considerou que as reivindicações de marca registrada e imagem comercial da Mattel eram "infundadas ou irracionais" e, portanto, ordenou que a Mattel pagasse 1,8 milhão de dólares em custas judiciais e honorários advocatícios para Forsythe.
Correu rapidamente! Subiram as letras finais. E assim me flagrei pensando em Chico Science, e na frase inicial da "Praieira", antes do filme, "pra ficar pensando melhor"! Pensei também que melhor seria apenas encara-lo como entretenimento, mas enxergaria a dificuldade de uma tal empreitada quando igualmente me recordaria de Lenio Streck, inspirado por Martin Heidegger, a partir da impossibilidade de grau zero de sentido e do papel do círculo hermenêutico:
"(.) a tese da resposta correta em um sistema "não avançado" não é uma possibilidade, e, sim, uma necessidade. Isso implica a superação do esquema sujeito-objeto, a partir dos dois teoremas fundamentais da hermenêutica: o círculo hermenêutico e a diferença ontológica, superando qualquer possibilidade da existência de grau zero de sentido ("ideologia do caso concreto"), resgatando a tradição autêntica (sentido da Constituição compreendido como o resgate das promessas da modernidade) e reconstruindo, a partir dessas "premissas", em cada caso, a integridade a coerência interpretativa do direito"2
Seguramente haveria melhor maneira de homenagear alguém do que fazer alguns breves comentários sobre um filme, embora deitar pena sobre o tópico também sirva ao mesmo propósito. Por que razão este texto é uma singela homenagem à Dinah Lima, Celina Yasmin Silva Aguiar, Giulia Lima Barros e a todas as minhas alunas do 1º/2023 da disciplina Introdução ao Direito 1, na Faculdade de Direto da UnB, e ex-alunas de todos os tempos, e colegas professoras e advogadas, que bem sabem sobre a artificialidade das críticas e sobre a necessidade de procurar mais profundamente nas diversas camadas de todas as narrativas.
Enfim, e em modo de conclusão, ao assistir ao filme, retive a multiplicidade de narrativas dentro de outras narrativas, como um sonho dentro de um sonho, algo que remeteu ao movimento "Organização para a Libertação da Barbie", e sua complexa significação quase "nonsense", que atrairia a leitura reflexiva de Felix Cohen3 (a partir de Rudolf von Jhering), aliado aos múltiplos mundos de alterabilidade da realidade com recorte protetivo dos elementos de marca e dos direitos aurorais, encharcados do mais profundo traço fictício que somente o direito é capaz de produzir, com as bençãos de Jeremy Bentham4, nossa Barbie das ficções jurídicas!
Isso sugere, em muitos pontos, pensarmos também sobre uma "Organização para a Libertação do Direito", com a correta compreensão das ilhas das flores e dos continentes das ironias!
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1 TUSHNET, Rebecca. Make Me Walk, Make Me Talk, Do Whatever You Please: Barbie and Exceptions", In: "Intellectual Property at the Edge: The Contested Contours of Intellectual property", 2014.
2 STRECK, Lenio. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito. Rev. Fac. Direito UFMG, n. 52, 2008, p. 150.
3 COHEN, Felix. Transcendental Nonsense and the Functional Approach. Columbia Law Review, n. 6, v. XXXV, june, 1935.
4 BENTHAM, Jeremy. Constitutional Code, Works, Vol. IX, Bowring, ed., 1843, p. 77-78; também na versão reimpressa: C.K. OGDEN. Bentham' Theory of Fictions. New York: Kegan Paul, 1932; Também a tradução espanhola: BENTHAM, Jeremy. Teoría de las Ficciones Jurídicas. Madrid: Marcial Pons, 2005.