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A barbárie comportamental e a força do Direito

Parece, porém, que alguns que se dizem conservadores dos bons costumes não se intimidam, nem se envergonham de retroceder. No estado de barbárie, pautado por uma liberdade comportamental e de expressão sem limites, não há o que conservar, a não ser a destruição.

terça-feira, 25 de julho de 2023

Atualizado às 08:13

Logo após a notícia das hostilidades sofridas pelo Ministro Alexandre de Moraes e sua família em Roma, seus opositores começaram a compartilhar em grupos de Whatsapp e em outros aplicativos de mensagens e redes sociais justificativas para o ocorrido. O ataque ao Ministro seria, na verdade, uma defesa, porque o filho de Moraes e sua equipe não teriam sabido escutar vaias e teriam, por sua vez, destratado os que foram inicialmente apontados como agressores1. Após o incidente, foi apresentada uma nova explicação dos fatos pelo advogado da família, relacionada à dificuldade de acessar a sala VIP do aeroporto, restrição aparentemente não sofrida pelo Ministro e injustamente imposta a seus clientes2. Noticiou-se também que o advogado entregou à Polícia Federal um vídeo em que se veria o Ministro fazendo foto da família e chamando seus membros de bandidos3.

Essas narrativas de autotutela (ou seja, de briga) desempenhada por brasileiros no aeroporto de Roma, em quaisquer das versões não se justificam. São violações de regras comportamentais, de etiqueta e jurídicas. O mais grave: a violação às regras comportamentais e de etiqueta são tão intensas que passam, elas mesmas, a ser uma questão jurídica, dentro do atual cenário de acirramentos políticos, e em que se pretende invocar as mais variadas formas de liberdade de expressão para violações a direitos.

Trata-se de uma cena infeliz e patética, retrato da falta de contenção dos sentimentos agressivos em sociedade, e da falta de conhecimento sobre como manifestar descontentamento cívico ou mesmo individual. Uma revelação do instinto primitivo solto a trazer danos ao convívio social.

Agressões verbais em público podem configurar infração jurídica (como calúnia, difamação ou injúria, por exemplo). Caso se tratasse de um comportamento isolado contra determinadas pessoas, já deveria ser por essa só razão reprimido. Contudo, no contexto de agressões às instituições, as manifestações ocorridas no aeroporto tornam-se ainda mais graves, porque se revelam uma incitação e decorrem de uma provocação maior, orquestrada num ambiente de violência política e de ataque ao Poder Judiciário, especialmente aos Ministros do Supremo Tribunal Federal. A realidade revela como os Ministros vêm se sujeitando a uma escalada de violência4. Vaiar autoridades e atacá-las verbalmente num ambiente não institucional semeando tumulto é um desrespeito não apenas às autoridades, mas aos outros passageiros que têm o direito à paz na realização de seus afazeres. Se o Ministro errou inicialmente e foi também agressivo (o que se admite para fins argumentativos como uma das versões da história), caberia chamar as autoridades do aeroporto, que são sempre tantas.

O significado das normas jurídicas advém do texto, mas também do contexto social em que se inserem. Em seu livro A força do Direito, Frederick Schauer destaca como a lei pode ter um efeito relevante na imposição de comportamentos que inicialmente são rejeitados (como o desenvolvimento da tolerância para o convívio), mas depois são amplamente aceitos. Ele cita como exemplo as leis que aboliram a segregação nas escolas públicas americanas e estabeleceram a obrigação da convivência, o que terminou levando a uma genuína internalização de uma maior tolerância racial5.

Nessa conjuntura, a liberdade de expressão deve ser interpretada dentro da compreensão de como os indivíduos e a sociedade de cada época vivenciam o poder das palavras, e a responsabilidade/irresponsabilidade com que as empregam. Ataques verbais com conteúdo discriminatório ou depreciador da democracia, principalmente quando realizados de forma agressiva e não racional, merecem ser reprimidos, com a mesma intensidade com que intencionam ferir e desestabilizar. E assim deve ser, não apenas para que o agressor seja punido, mas para que haja uma disciplina social, uma conscientização sobre o potencial lesivo do discurso. As normas e decisões judiciais que restringem e sancionam condutas como as ocorridas no aeroporto de Roma, portanto, não representam excesso de limitação à liberdade de expressão, mas sim seu conteúdo civilizatório mínimo.   

Já faz tempo que a sociedade considera anormal desavença em espaços públicos, tendo passado por inúmeras evoluções, como a proibição de mortes por divertimento, de duelos, de ataques físicos e verbais das mais variadas espécies. Parece, porém, que alguns que se dizem conservadores dos bons costumes não se intimidam, nem se envergonham de retroceder. No estado de barbárie, pautado por uma liberdade comportamental e de expressão sem limites, não há o que conservar, a não ser a destruição.  

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1 https://jc.ne10.uol.com.br/colunas/jamildo/2023/07/15547081-e-falso-que-filho-de-alexandre-de-moraes-agrediu-idoso-em-aeroporto-em-roma-entenda-a-confusao.html

2 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/07/19/advogado-suspeitos-agressao-alexandre-de-moraes.htm

3 https://mail.google.com/mail/u/0/#inbox/FMfcgzGtwDGqprTSrxKDjJWCKqjvspMS

4 https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/07/hostilidade-a-moraes-se-soma-a-outras-contra-ministros-do-stf-veja-casos.shtml

5 SCHAUER, Frederick.  The force of Law. Cambridge, Massachussets: Harvard University Press, 2015, pp.102, 103 e 147

Raquel Cavalcanti Ramos Machado

VIP Raquel Cavalcanti Ramos Machado

Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil. Integra o Observatório de Violência Política contra a Mulher.

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