Contribuições para a revisão da súmula 231 - Parte III: O tratamento jurisprudencial da matéria
A mudança de paradigma trazida pela Nova Parte do Código Penal não fez parte das discussões acerca do tema que, como se pretendeu demonstrar nesse breve escorço, tem suas origens fincadas em legislação anterior.
quinta-feira, 20 de julho de 2023
Atualizado às 09:01
Introdução
Nos dois artigos anteriores, demonstramos como a origem da vedação da diminuição da pena abaixo da pena mínima se situa na redação da Parte Geral de 1940, que não diferenciava circunstâncias judiciais e legais, de modo que vigorava a interpretação de que ambas deveriam ser fixadas "dentro dos limites legais".
Também vimos que, depois da reforma de 1984, restaram definitivamente separadas as circunstâncias judiciais e legais, com seu computo em momentos distintos. A elas também foram dados regimes de aplicação distintos. Logo, a imposição de fixação dentro dos limites legais, ainda subsistente no inciso II, do art. 59, da Nova Parte Geral, só poderia alcanças as circunstâncias judiciais.
Nesse artigo, mostraremos como a mudança foi percebida (ou não), pela jurisprudência das Cortes Superiores, procurando analisar a ratio decidendi de acórdãos proferidos após a alteração legislativa.
O advento da Parte Geral de 1984 e a inexistência de vedação expressa
A primeira iniciativa de uniformização do tema partiu do Superior Tribunal de Justiça que, em 1999, editou a Súmula 231 com a seguinte redação: a incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal.
Em 2009, foi a vez de o Supremo Tribunal Federal dar ultimato na questão, o que se fez no julgamento do Recurso Extraordinário 597.270/RS, de relatoria do Min. Cezar Peluso. Na oportunidade, foi reconhecida a Repercussão Geral da questão. Também, por iniciativa da Min. Carmem Lúcia, foi proposta e aprovada questão de ordem, no sentido de se permitir a aplicação do art. 21, parágrafo 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
Por força da mencionada decisão, qualquer pedido que vise a aplicação da pena aquém do mínimo legal por reconhecimento de circunstâncias atenuantes poderá ser denegado pelo Relator, em decisão monocrática, o que, de fato, estreita as possibilidades de exame da matéria por órgãos colegiados das Cortes Superiores.
O fato de uma determinada decisão estar sendo reiteradamente tomada por um tribunal, indica, tão somente, que essa questão está pacificada nessa corte, mas não que o assunto já tenha sido objeto de discussão em reiteradas oportunidades. E isso porque, julgar da mesma forma inúmeras vezes, não quer dizer que o assunto tenha sido discutido inúmeras vezes.
Diante da impassível segurança dos Tribunais Superiores, fomos à ratio decidendi das decisões nas quais se assenta esse sólido posicionamento.
Em 1983, o Min. Djaci Galvão, do Supremo Tribunal Federal assentava não haver qualquer irregularidade na consideração das circunstâncias atenuantes antes das circunstâncias judiciais, mesmo que os efeitos da primeira fossem dissipados.1
É dessa época que remonta a proibição da diminuição da pena, mesmo no cálculo cômputo provisório, pois, de fato, pela interpretação dada ao antigo art. 42, independente da fase de aplicação, o aumento e diminuição das agravantes deveria se ater aos limites legais. No ano de 1982, esse posicionamento foi impresso pelo voto do Min. Moreira Alves, no julgamento do Recurso Extraordinário RE-STF 96.305/PR.2 Posicionamento semelhante viria a ser expresso pelo Min. Rafael Mayer, no julgamento do Recurso Extraordinário RE-STF 97.055/PR.3
Bem assim, até 1984, nenhum dos julgados do Supremo Tribunal Federal que versaram sobre a matéria divergia quanto à impossibilidade de diminuição da pena abaixo do mínimo legal em virtude do reconhecimento de circunstância atenuante.4
De fato, o que nos interessa é como a Suprema Corte passou a tratar do tema após a entrada em vigor da nova parte geral. Nos primeiros julgados que versaram sobre a matéria não se encontrou qualquer fundamentação específica para proibição, apenas considerando-a proibida.
Em 1986, o Min. Sidney Sanches rechaça a tese de redução aquém do mínimo legal, por considerá-la em confronto com os precedentes da E. Corte. Bem assim, inicia-se um continuísmo de um posicionamento fincado em uma legislação que já há muito havia sido derrogada.
Dali em diante, alguns poucos julgados que se preocupavam em fundamentar as decisões que vetavam a diminuição o faziam, exclusivamente, afirmando que o posicionamento se encontrava consolidado na Corte Suprema, citando-se precedentes,5 alguns deles, inclusive, datados de momento anterior à entrada em vigor da nova disciplina atinente à aplicação da pena.6
Com efeito, o mesmo vício que acometeu o Supremo Tribunal Federal afetou o Superior Tribunal de Justiça que, desde sua origem, repetiu a aplicação de precedentes construídos sob a égide da legislação antiga.7 Reiteradamente, a Corte Superior julgou no sentido de que a vedação seria proibida no ordenamento jurídico brasileiro, calcando-se, fundamentalmente em precedentes de ambos os Tribunais Superiores.
Em 1996, o Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, pela primeira vez, inaugura um dissenso quanto ao tema no Superior Tribunal de Justiça. No julgamento do Resp 68.120/MG de sua relatoria, o Ministro declarou sua adesão à tese de que a vedação da redução infringiria o princípio da individualização da pena. Como fundamento, também invocou a mutabilidade das relações sociais que devem ser percebidas pelo direito, cujo primeiro agente a perceber e a reagir a tais mudanças, antes das leis, é o magistrado.
Embora tenha sido novamente afirmado no julgamento do REsp 151.837/MG,8 o posicionamento quedou-se isolado9 na jurisprudência daquele Tribunal que, alguns anos depois, sedimentaria a questão definitivamente.
Foi imbuído desse espírito que em 22/9/99, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 231, cujo enunciado prevê que a incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal.
O entendimento sumulado teve como paradigma seis julgados daquela Corte Superior: o Resp 146.056/RS de relatoria do Min. Felix Fischer, o Resp 15.691/PR, de relatoria do Min. Pedro Acioli, o Resp 7.287/PR, de relatoria do Min. Willian Petterson, o Resp 32.344/PR, de relatoria do Min. Vicente Chernicchiaro, o Resp 46182/DF, de relatoria do Min. Jesus Costa Lima e o Resp 49500/SP, de relatoria do Min Assis Toledo.
Pois bem. Dirigindo-nos à ratio decidendi dos acórdãos paradigmas encontramos no Resp. 49.500/SP, fundamentação, exclusivamente, em precedentes dos Tribunais Superiores10. No Resp. 46.182/DF, a fundamentação, além de em precedentes jurisprudenciais, se ancorou na doutrina Julio Fabbrini Mirabete.11 Embora, fazendo referência à doutrina de Damásio de Jesus, o Resp. 7.287/PR também se viu fundamentado, essencialmente em precedentes jurisprudenciais.12 Sem qualquer outro fundamento, que não o jurisprudencial, foi julgado o Resp. 32.344/PR13. Melhor fundamentação também não se encontrou no Resp. 15.691/PR14.
Somente no Resp. 146.056/RS é que encontramos fundamentação que, para além de citar precedentes jurisprudenciais, se debruça sobre a temática e busca explicações legais para a vedação da redução.
Segundo o julgado, a limitação legal se daria em razão das expressões "dos limites previstos", incutida no inciso II do art. 59 do Código Penal, e "do limite indicado", contida no art. 67 do mesmo diploma. Também, é manifestada a inadmissibilidade de se chegar à "pena zero". Finalmente, assevera o aresto que:
"a expressão 'sempre atenuam' não pode ser levada a extremos, substituindo-se a interpretação teleológica por uma meramente literal. Sempre atenuam, desde que a pena base não esteja no mínimo, diga-se até aí, reprovação mínima do tipo".15
Como se vê, todos os pontos em que se arrima o único precedente fundamentado que deu origem à Sumula 231 não se sustentam no ordenamento jurídico, tratando-se de interpretação equivocada, ranço da legislação anterior, como pudemos delinear nos artigos anteriores.
A singela existência da expressão "limites" em artigo que trata do concurso de circunstâncias agravantes e atenuantes não pode ser fundamento para se impedir a aplicação da atenuante, mesmo porque, esse limite a que se refere o artigo é o limite indicado pelas circunstâncias preponderantes e não o limite da pena expresso no preceito secundário do tipo penal.
É ainda importante ressaltar que a indigitada "interpretação teleológica" a que se refere o Min. Felix Fischer, exibe-se como interpretação contra legem e in malam partem.
A edição da Súmula 231, contudo, não impediu que novos e em número crescente pedidos de redução de pena aquém do mínimo legal fossem dirigidos aos Tribunais Superiores. Por outro lado, alguns Tribunais de Justiça, principalmente o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, passaram a aceitar a tese e aplicar a diminuição da pena.
Dessa imensa gama de julgados, impende-se que se faça referência aos votos da Min. Ellen Gracie16, que fixou entendimento semelhante ao expresso pelo Min. Felix Fischer no julgamento do Resp. 146.056/RS. Também, destaca-se o voto proferido pelo Min. Eros Grau no HC 93.511/RS em que, embora não entrando na questão interpretativa dos dispositivos, demonstrou a preocupação com a possibilidade de fixação de "pena irrisória" ao se permitir a diminuição da atenuante abaixo do mínimo.17
Conclusão
A jurisprudência consolidada no Supremo Tribunal Federal, sobre o tema em análise, remonta à período anterior à entrada em vigor da Nova Parte Geral do Código Penal. Mencionado entendimento foi adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, desde sua origem, sendo cristalizado na Súmula 231, que deverá ser revisitada pela 3ª Seção da Corte da Cidadania.
A mudança de paradigma trazida pela Nova Parte do Código Penal não fez parte das discussões acerca do tema que, como se pretendeu demonstrar nesse breve escorço, tem suas origens fincadas em legislação anterior. Uma legislação que não contemplava uma importante mudança no sistema de aplicação do tema: a adoção do método trifásico.
No próximo artigo, procedendo-se a uma leitura particularizada das funções dos marcos penais, defenderemos que a admissão da redução da pena aquém do mínimo legal pelo reconhecimento das circunstâncias atenuantes não autoriza, de forma simétrica, o aumento da pena além da pena máxima, por reconhecimento de agravante.
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1 HC-STF 60.473/RJ. Rel. Min. DJACI FALCÃO. J.: 11.02.1983.
2 RE-STF 96.305/PR. Rel. Min. MOREIRA ALVES. J.: 02.03.1982.
3 RE-STF 97.055/PR. Rel. Rafael Mayer. J.: 13.08.1982.
4 HC- STF 58567/RS Relator: Min. DJACI FALCAO. J.: 07/04/1981. SEGUNDA TURMA; HC- STF 59008/RS. Relator: Min. DÉCIO MIRANDA. J.: 21/08/1981. SEGUNDA TURMA; RE-STF 95102/SP. Relator: Min. CORDEIRO GUERRA. J.: 22/09/1981. SEGUNDA TURMA; HC-STF 56723/PR. Relator: Min. DÉCIO MIRANDA. J.: 06/03/1979. SEGUNDA TURMA; RC-STF 1318. Relator: Min. CUNHA PEIXOTO. J.: 16/02/1979. PRIMEIRA TURMA.
5 HC 65505/DF. Relator: Min. OSCAR CORREA. J.: 12/02/1988. PRIMEIRA TURMA; HC 65868/SP. Relator: Min. FRANCISCO REZEK. J.: 02/03/1988. TRIBUNAL PLENO; HC 68641/DF. Relator: Min. CELSO DE MELLO. J.: 05/11/1991. PRIMEIRA TURMA; HC 68474/DF. Relator: Min. NÉRI DA SILVEIRA. J.: 11/06/1991. SEGUNDA TURMA; HC 67822/SP. Relator(a): Min. CELIO BORJA. J.: 03/04/1990. SEGUNDA TURMA; HC 69328/SP. Relator: Min. MARCO AURÉLIO. J.: 28/04/1992. Segunda Turma; HC 68641/DF. Relator: Min. CELSO DE MELLO. J.: 05/11/1991. PRIMEIRA TURMA; HC 70047/SP. Relator: Min. CELSO DE MELLO. J.: 21/09/1993. Primeira Turma; HC 70979/SP. Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. J.: 08/11/1994. Primeira Turma; HC 72523/SP. Relator: Min. MAURÍCIO CORRÊA. J.: 13/06/1995. SEGUNDA TURMA; HC 73867/SP. Relator: Min. MARCO AURÉLIO. J.: 14/05/1996. SEGUNDA TURMA; HC 74084/SP. Relator: Min. NÉRI DA SILVEIRA. J.: 17/12/1996. Segunda Turma; HC 74301/SP. Relator: Min. MAURÍCIO CORRÊA. J.: 29/10/1996. Segunda Turma; HC 74167/RJ. Relator: Min. MAURÍCIO CORRÊA. J.: 27/08/1996. Segunda Turma; HC 73924/SP. Relator: Min. MARCO AURÉLIO. J.: 06/08/1996. Segunda Turma; HC 73717/SP Relator: Min. NÉRI DA SILVEIRA. J.: 06/08/1996. Segunda Turma; HC 74916/SE. Relator: Min. MAURÍCIO CORRÊA. J.: 15/04/1997. Segunda Turma; HC 75726/SP. Relator: Min. ILMAR GALVÃO. J.: 11/11/1997. Primeira Turma.
6 HC-STF 70.883/SP. Rel. Min. Celso de Mello. J.: 08.03.1994
7 REsp 7.287/PR, Rel. Ministro WILLIAM PATTERSON, SEXTA TURMA, julgado em 16/04/1991, DJ 06/05/1991; REsp 15.695/PR, Rel. Ministro ASSIS TOLEDO, QUINTA TURMA, julgado em 18/12/1991, DJ 17/02/1992; REsp 15.691/PR, Rel. Ministro PEDRO ACIOLI, Rel. p/ Acórdão Ministro LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, SEXTA TURMA, julgado em 01/12/1992, DJ 03/05/1993; REsp 32.344/PR, Rel. Ministro LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, SEXTA TURMA, julgado em 06/04/1993, DJ 17/05/1993; REsp 46.182/DF, Rel. Ministro JESUS COSTA LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 04/05/1994, DJ 16/05/1994; REsp 49.500/SP, Rel. Ministro ASSIS TOLEDO, QUINTA TURMA, julgado em 29/06/1994, DJ 15/08/1994;RHC 5.193/SP, Rel. Ministro VICENTE LEAL, SEXTA TURMA, julgado em 12/02/1996, DJ 25/03/1996; REsp 68.120/MG, Rel. Ministro LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, SEXTA TURMA, julgado em 16/09/1996, DJ 09/12/1996; REsp 146.056/RS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 07/10/1997, DJ 10/11/1997; REsp 89.563/PI, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 18/02/1997, DJ 17/03/1997; REsp 97.553/MG, Rel. Ministro LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, SEXTA TURMA, julgado em 19/12/1996, DJ 31/03/1997
8 REsp 151.837/MG, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, Rel. p/ Acórdão Ministro LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, SEXTA TURMA, julgado em 28/05/1998, DJ 22/06/1998.
9 Vale, ainda, destacar a decisão proferida no Resp 93.104/PE, em que o Min. Vicente Leal admitiu a redução abaixo do mínimo na segunda fase de aplicação da pena, para depois se aplicar a incidência de causa de aumento (REsp 93.104/PE. Relator: Min. VICENTE LEAL. J.: 12 de maio de 1997. Sexta Turma).
10 REsp 49500/SP, Rel. Ministro ASSIS TOLEDO, QUINTA TURMA, julgado em 29/06/1994
11 REsp 46182/DF, Rel. Ministro JESUS COSTA LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 04/05/1994
12 Resp 7.287/PR. Rel. Min. Willian Petterson. 6ª Turma. J.: 16.04.1991.
13 Resp 32.344/PR. Rel. Min. Vicente Chernicchiaro. 6ª Turma. J.: 06.04.1993
14 Resp 15.691/PR, Rel. Min. Pedro Acioli. 6ª Turma. J.: 1º.12.1992
15 Resp 146.056/RS. Rel. Min. Felix Fischer. 5ª Turma. J.: 07.11.1997
16 HC 92926/RS. Relatora: Min. ELLEN GRACIE. J.: 27/05/2008. Segunda Turma. HC 94540/SP. Relatora: Min. ELLEN GRACIE. J.: 27/05/2008. Segunda Turma.
17 HC 93511/RS. Relator: Min. EROS GRAU. Julgamento 26/02/2008. Segunda Turma.
Bruno Salles Ribeiro
Sócio do escritório Salles Ribeiro Advogados.