A opção pela graduação em Direito no Brasil: vocação ou pragmatismo?
A eventual escolha pelo Direito, sem medo da redundância, é um direito individual, como o da escolha por qualquer outro curso de graduação. No entanto, ela deve se dar de uma forma consciente e livre e com respeito pela vocação, mesmo que os inevitáveis conselheiros de plantão sigam levantando a bandeira do pragmatismo.
terça-feira, 18 de julho de 2023
Atualizado em 21 de julho de 2023 09:47
"O homem que trabalha somente pelo que recebe não merece ser pago pelo que faz".
(Abraham Lincoln)
"Quem descobre sua vocação, não precisa de carreira".
(Carl Stumpf)
É notório o fenômeno da proliferação de cursos de graduação em Direito no país. A quarta edição de estudo realizado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), intitulado "Exame de Ordem em Números", indicava que, em 2018, contavam-se 1.502 cursos, um aumento vertiginoso em relação a 1995, quando só havia 235, o que significava então um crescimento de 539% ao longo de 23 anos (FREITAS, 2020)
Matéria recente publicada no Portal Migalhas, ao final de 2022, apontou que o Brasil é o país com a maior proporção de advogados por habitante do mundo: cerca de 1,3 milhão de advogados exercem regularmente a profissão, entre 212,7 milhões de pessoas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ou seja, proporcionalmente, há um advogado para 164 brasileiros residentes no país. Embora, em números absolutos a Índia esteja à frente do Brasil, com pouco mais de 2 milhões de advogados, considerando-se que a sua população é muito maior do que a brasileira - 1,4 bilhão de indianos comparado aos 212,7 milhões de brasileiros -, a proporção observada no país asiático é de 1 advogado para cada grupo de 700 habitantes, de acordo com dados obtidos da IBA - International Bar Association. No que se refere aos Estados Unidos, os números mostram os mesmos 1,3 milhão de advogados do Brasil, no entanto para uma população de 329,5 milhões de pessoas. As informações foram fornecidas, respectivamente, pela American Bar Association (ABA) e pela Organização das Nações Unidas (ONU) e revelam uma proporção de 1 advogado para cada 253 norte-americanos (MIGALHAS, 2022).
Traço comum desses levantamentos realizados nos últimos anos é a preocupação com a qualidade dos cursos. Em 2018, a certificação conhecida como "Selo OAB", conferida pela entidade de classe, recomendou apenas 161 dos 1.212 cursos analisados (FREITAS, 2020). Estudos semelhantes descrevem o mesmo e preocupante cenário.
Uma das principais razões apontadas para o crescimento descomunal do número de advogados no país é a abertura indiscriminada de cursos de Direito, muitos de qualidade suspeita (MIGALHAS, 2022). No entanto, seria essa uma causa ou mais um sintoma da verdadeira causa? Propõe-se aqui ir um pouco mais à fundo nessa reflexão, ainda que a partir apenas de insights e impressões pessoais, derivadas de minha experiência como advogado, servidor público e professor universitário e de pós-graduação. São reflexões e conclusões rudimentares, extraídas não de um processo metódico e sistemático de observação e investigação. Procura-se, apenas, levantar uma provocação que, certamente, merecerá estudos mais aguçados.
Entendo que o número cada vez maior de bacharéis em Direito no país resulta, em parte, de escolhas pelo curso que, se não em maioria, mas seguramente em grande número, se dão menos por vocação e mais por razões socioeconômicas e culturais. Em muitas situações, estudantes do último ano do ensino médio, que possuem inclinação para as chamadas "ciências sociais", são ostensivamente "sugestionados" a escolher a carreira jurídica, em prejuízo de vocações mais latentes para outras carreiras como as de História, Geografia, Filosofia, Sociologia, Relações Internacionais, Antropologia e outras. Anualmente, o país perde, antes mesmo de ganhar, historiadores, geógrafos, filósofos, sociólogos, internacionalistas, antropólogos e outros potenciais profissionais de áreas afins. A opção pela carreira jurídica, nesses casos, não é resultado de uma inclinação latente e de uma vocação pelo Direito.
A pressão pela escolha da faculdade de Direito costuma vir pela primeira vez das próprias famílias que, legitimamente preocupadas com o futuro dos seus, estimulam a opção pela carreira jurídica por constituir um "porto seguro", um "leque de oportunidades", entre outros chavões e argumentos que apelam sedutoramente para os seus potenciais remuneratórios nada desprezíveis, a começar pelos cargos que podem ser acedidos por concursos públicos e que estão entre os mais bem remunerados e prestigiados do país.
Como bem observa ENTSCHEV (2015):
A influência dos pais e de todas as pessoas com quem se convive pode determinar as escolhas futuras, mesmo que indiretamente. [...] Isso explica a escolha de muitos jovens que optam seguir o caminho já traçado pelos pais. Essa possibilidade pode ser reforçada quando a profissão é associada a um caso de sucesso, por conseguirem notar o lado positivo da profissão com mais facilidade. O mesmo acontece quando há traços negativos decorrentes da profissão, como o estresse, a falta de tempo ou de dinheiro, por exemplo. Neste caso, o exemplo pode repelir a possibilidade de seguir o mesmo caminho para evitar passar pelo mesmo.
O autor demonstra o quanto é comum o dilema entre a escolha por uma profissão rentável e segura, mas que não satisfaz, e a opção por uma atividade atrativa, mas que não traz "rapidamente" estabilidade financeira" (ENTSCHEV, 2015). É compreensível que os potenciais do mercado, uma remuneração média atraente, entre outros aspectos, sejam levados em conta na escolha pela futura carreira profissional. A pergunta é até que ponto eles devem prevalecer sobre os que estão relacionados à vocação. Justifica-se que uma vocação e inclinação latente por História, por exemplo, seja esmagada por argumentos pragmáticos em favor de uma escolha pelo Direito? Orientadores vocacionais estão bem familiarizados com essa questão e talvez não haja uma resposta pronta para ela. No contexto complexo e delicado da decisão por uma carreira profissional que, em tese, deve ser tomada de forma consciente, autônoma e livre por adolescentes de 17/18 anos, poucos conseguem permanecer blindados dos argumentos sedutores e convincentes dos conselheiros e campeões do pragmatismo.
A justificativa para essa interferência na escolha passa, invariavelmente, pela maior experiência e uma suposta maior sabedoria de quem aconselha, daquele que deseja "abrir os olhos" do "adolescente sonhador" para os perigos que uma opção "impensada e romântica" pode trazer, como um arrependimento tardio, em meio a uma vida de privações e dificuldades. Um cenário tenebroso é pintado para o futuro. "Você vai morrer de fome", "professor ganha uma miséria", "artistas plásticos não são reconhecidos no Brasil", entre outros jargões comuns, são utilizados para dissuadir o jovem para que não se "atire no precipício".
Em um país em que o empreendedorismo e a autorrealização individual são quase tratados como pecados mortais e há uma compreensiva atratividade pelos cargos estáveis do setor público (especialmente do Poder Judiciário), é natural que, no frigir dos ovos, a escolha pelo que soa "seguro" acabe pesando muito na mente de um jovem, mesmo que, no futuro, o resultado seja um universitário frustrado que descobrirá, já mergulhado em compêndios, códigos e "vade mecums", que não tem nenhuma vocação para o exercício da advocacia, da magistratura e de outras funções. Descobrirá, também, que a conexão lógica e automática que foi estimulado a pensar existir entre o gosto que possuía pelas disciplinas de ciências humanas, nos tempos de colégio, com o gosto pelo Direito não é tão lógica e automática assim. Alguns terão coragem de logo resgatar suas vocações e buscar outra carreira, enquanto outros estarão fadados a exercer para sempre uma profissão que escolheram sem nenhum traço de paixão ou talvez mergulhar em outra profissão igualmente insatisfatória, depois de receberem o diploma. Haverá aqueles, ainda, que talvez descubram a vocação e a paixão pelo Direito já cursando a faculdade. Sou um desses, felizmente. Desaconselhado por familiares historiadores a cursar História, encontrei prazer e satisfação no Direito. O sonho de, um dia, cursar uma faculdade de História, contudo, não morreu.
O certo é que é preciso aperfeiçoar, em nossas escolas públicas e privadas, os mecanismos de escolha das futuras carreiras profissionais pelos alunos do campo das humanidades. Profissionais de Orientação Vocacional precisam ser ouvidos e valorizados. A eventual escolha pelo Direito, sem medo da redundância, é um direito individual, como o da escolha por qualquer outro curso de graduação. No entanto, ela deve se dar de uma forma consciente e livre e com respeito pela vocação, mesmo que os inevitáveis conselheiros de plantão sigam levantando a bandeira do pragmatismo.
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FREITAS, HYNDARA (2020). "Brasil tem mais de 1.500 cursos de Direito, mas só 232 têm desempenho satisfatório". In: Portal Jota. Disponível em: https://www.jota.info/carreira/brasil-tem-mais-de-1-500-cursos-de-direito-mas-so-232-tem-desempenho-satisfatorio-14042020#:~:text=O%20Brasil%20%C3%A9%20o%20pa%C3%ADs,o%20crescimento%20foi%20de%20539%25. Acesso em 13 de julho de 2023.
ENTSCHEV, Bernt. "A Influência dos Pais na Escola Profissional dos Filhos". IN: BOLIVAR, Romulo. Proenem (www.proenem.com.br). Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/Downloads/A_INFLUENCIA_DA_FAMILIA_NA_ESCOLHA_DA_PR.pdf. Acesso em 17 de julho de 2023.
MIGALHAS (2022). "País tem 1 advogado a cada 164 pessoas; nível dos cursos preocupa OAB". Matéria da Redação publicada em 03 de agosto de 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/370971/pais-tem-1-advogado-a-cada-164-pessoas-nivel-dos-cursos-preocupa-oab. Acesso em 13 de julho de 2023.