Contexto histórico da arbitragem e sua evolução no Brasil
A arbitragem, como método alternativo de solução de disputas, traz consigo uma trajetória histórica que remonta às civilizações antigas até sua consolidação como um instituto cada vez mais relevante no cenário jurídico atual.
terça-feira, 18 de julho de 2023
Atualizado às 13:48
A arbitragem é um método alternativo de resolução de conflitos que tem como principal característica, a autonomia da vontade das partes em investir a um terceiro imparcial as prerrogativas de um juiz para decidir determinada controvérsia1. Tal definição é apenas uma dentre outras que foram sendo aperfeiçoadas para trazer a melhor compreensão a esse método.
O que reflete a história no contexto do desenvolvimento do ser humano e como o seu comportamento em sociedade demandou a criação de diferentes sistemas de resolução de controvérsias.
Desde os tempos remotos, os conflitos têm sido uma constante na interação humana. Seja por estruturação psíquica, instinto de sobrevivência ou simplesmente por capricho, o homem encontra-se emaranhado em um complexo de relações sociais que requerem uma abordagem para a resolução dessas divergências. Ao longo da história, diversas abordagens têm sido empregadas, desde a autotutela baseada na imposição da vontade pela força até a autocomposição, onde as partes chegam a um acordo direto.2
Resultado dessa evolução atualmente é a coexistência, com o judiciário estatal, de diversos métodos de resolução de litígios como conciliação, mediação e negociação, compondo o que estudiosos do tema chamam de "Sistema Multiportas", termo que designa uma ampla gama de opções para cada qual, pode ser adotada pelas partes pôr fim a determinada avença.3
O surgimento de um sistema multiportas é reflexo de um assoberbamento dos serviços da justiça estatal já conhecido no Brasil. Segundo dados CNJ em números de 2022, o Poder Judiciário finalizou o ano de 2021 com 77,3 milhões de processos em tramitação, aguardando alguma solução definitiva.
Desses, 15,3 milhões, ou seja, 19,8%, estavam suspensos, sobrestados ou em arquivo provisório, aguardando alguma situação jurídica futura. Dessa forma, desconsiderados tais processos, tem-se que, em andamento, ao final do ano de 2021, existiam 62 milhões de ações judiciais.4
O relatório também detalha o número de processos por cem mil habitantes. Em média, a cada grupo de cem mil habitantes, 11.339 ingressaram com uma ação judicial no ano de 2021, registrando um aumento de 9,9% no número de casos novo por mil habitantes em relação a 2020. Para os magistrados significou uma carga de 1.558 processos baixados para cada juiz em 2021, ou seja, uma média de 6,3 casos solucionados por dia útil do ano, sem descontar períodos de férias e recessos.5
Portanto, é evidente que a implementação de um sistema multiportas se torna essencial para proporcionar mais eficiência ao sistema de justiça, permitindo que certos tipos de conflitos sejam resolvidos de forma ágil e adequada, sem a necessidade de ingressar com ações judiciais formais; o que gera um benefício para o próprio sistema judiciário, contribuindo para a diminuição do acúmulo de processos e o aumento da celeridade e eficácia na resolução de disputas sem abrir mão da segurança jurídica.
Evolução histórica da Arbitragem
Tratando detidamente da arbitragem, o ponto de partida é ter claro em mente que não é um instituto recente, do século XX ou XXI; na verdade, a sua prática tem registro nas civilizações mais remotas como as sociedades sumerianas, hebraicas, gregas e romanas.
Sob a perspectiva do período romano, considera-se três fases importantes em termos de contexto histórico para o entendimento de sua evolução e desenvolvimento dentro do sistema jurídico.
Primeira fase
A característica deste período (754 a.C.) era a obrigatoriedade da utilização da arbitragem e da autonomia do árbitro. Com base nas leis das doze tábuas, surgiu as legis actiones, ou seja, ações legais que eram analisadas pela figura do magistrado público de Roma e tinha como finalidade atender as demandas da época em relação à busca dos cidadãos à resposta do judiciário.
O magistrado público atuava realizando um juízo de admissibilidade na causa, definindo então o procedimento que seria adotado e por fim, as partes escolhiam o arbiter (árbitro) para efetivamente decidir a controvérsia.
Segunda fase
Novos incrementos surgiram na atividade do árbitro que passou a ter a sua função regulada em alguns aspectos e o procedimento passou a ser adotado de forma escrita através de formulários.
Nesse período as relações comerciais estavam se desenvolvendo, de forma a demandar a necessidade de um amparo legal que alcançasse também as demais regiões frutos das relações comerciais. Criou-se então a figura do pretor, que era o magistrado itinerante que viajava em diferentes regiões comerciais e definia com as partes, os critérios para o procedimento, levando-se em conta os critérios de decisão e a pluralidade de regras.
Dessa fase preliminar era redigido o édito, ou seja, um Decreto que estabelecia as regras convencionadas pelas partes para o procedimento. Nesse contexto surgiu a ideia de compromisso arbitral, pois as partes assinavam o compromisso de se submeterem às regras convencionadas bem como da decisão que fosse proferida pelo eleito.
Terceira fase
Fase que ficou conhecida como Extraordinem Cognitio (Cognição extraordinária) foi o período em que o modelo de arbitramento existente passou a perder força e a figura do árbitro já se concentrava mais no magistrado público, pois o Estado romano (século III d.C) vinha consolidando o seu poder, de forma que tal método de resolução de lide passa a ser completamente estatal.
Fazendo então um salto histórico e jogando luz a um período mais recente, é possível ver a consolidação da arbitragem em um cenário de importância internacional. Um exemplo disso é a Convenção de Nova Iorque de 1958 sobre o reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras que possui quase 160 Estados-membros, sendo a convenção mais abrangente em matéria comercial do mundo.
Arbitragem no Brasil
No que tange ao Brasil a história por trás do surgimento da arbitragem com a força que esta representa atualmente remonta à constituição de 1824, a qual constava a sua previsão no art. 1606; tendo sido prevista também na constituição de 1934; no CPC de 1973 e no Código Civil de 1916 sendo até então sua utilização adotada como um pré-contrato, devendo haver nova pactuação entre as partes para surtir efeito, bem como, exigia-se a homologação, no juízo estatal, o que acabava por inviabilizar a adoção desse instituto no Brasil.
Assim, somente a partir da Constituição de 1988 que a arbitragem começa a ganhar propulsão a ponto de tornar-se um princípio fundamental para a solução de litígios de forma pacífica. Mesmo com tais avanços a arbitragem ainda era mais comumente utilizada nos contratos internacionais assinados no Brasil, visto que já era algo que se praticava de forma habitual no exterior.
Nesse sentido, as relações empresariais no Brasil passaram por modificações, resultando na aceitação da arbitragem como método eficaz para a resolução de conflitos.
Mas o que se via na prática em território pátrio era um desconhecimento desse instituto. Até que um jovem advogado de Recife, Petrônio R. G. Muniz, ao observar, já nos idos dos anos 90 que os processos judiciais perduravam décadas, passou a investigar e estudar alternativas para resolver esse problema, aprofundando então seus estudos sobre arbitragem.
Fato é que o inconformismo de Petrônio Muniz em relação aos processos que demoravam muito no âmbito do Poder Judiciário não era exclusivamente seu. Isso ficou claro através da elaboração de uma pesquisa feita com 1.300 empresários que teve como finalidade saber o que eles pensavam em relação ao sistema de justiça estatal e o que estas pessoas pensavam sobre a intenção de se utilizar um método mais adequado para a solução de conflitos, apresentando assim a arbitragem.
A essa altura Petrônio tinha conseguido o apoio do Instituto Liberal de Pernambuco bem como o projeto foi ganhando a adesão de personagens que hoje são grandes referências no campo da arbitragem. A Advogada e Professora Selma Lemes, que integrou a comissão relatora da Lei de Arbitragem recorda-se do período em que:
O trabalho iniciado por Petrônio, que soube arregimentar soldados para suas fileiras, obtendo a adesão do empresariado nacional, da comunidade acadêmica, dos membros do Poder Judiciário, na pessoa do desembargador carioca Claudio Viana de Lima e do legislativo, por meio do Senador Marco Antonio Maciel, da comissão relatora do anteprojeto: Pedro Batista Martins, Carlos Alberto Carmona e minha, bem como de tantas outras pessoas por esse Brasil afora, foi empreitada de especialista.7
Assim, através da chamada Operação Arbiter, como ficou conhecida essa empreitada de aprovação da Lei de Arbitragem, foi possível de uma vez por todas dar início a um novo marco do instituto da arbitragem no Brasil.
O anteprojeto, elaborado por Carlos Alberto Carmona, Pedro A. Batista Martins e Selma Ferreira Lemes, foi apresentado no Senado Federal pelo Senador Marco Maciel. Após ser aprovado em 1993, foi encaminhado à Câmara dos Deputados, sendo aprovado apenas em 1996. Posteriormente, o projeto foi novamente aprovado pelo Senado Federal e sancionado pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso em 23 de setembro de 1996.
Com a promulgação da Lei de Arbitragem brasileira, o instituto ganhou consolidação real, obtendo o reconhecimento de sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal no final de 2001. Além disso, a incorporação da Convenção de Nova Iorque de 1958 ao ordenamento jurídico brasileiro ocorreu em 2002, fortalecendo ainda mais a arbitragem no país.
E ao longo de seus 27 anos de existência, a referida lei passou por transformações significativas que moldaram sua efetividade e reconhecimento. Em 2015, o Código de Processo Civil e a Reforma da Lei de Arbitragem trouxeram mudanças significativas.
O Código de Processo Civil introduziu avanços relevantes, como a carta arbitral e a proteção da confidencialidade nos casos que exigem a cooperação do Poder Judiciário. Já a Reforma da Lei de Arbitragem autorizou a submissão de conflitos envolvendo a Administração Pública ao processo arbitral, além de abordar questões como tutelas provisórias, sentenças parciais, prescrição na arbitragem e regras para listas de árbitros.
Nesse contexto é cada vez mais crescente os números de casos que vem sendo submetidos a arbitragem. Segundo dados do Arbitragem em Números 2020/2021, estudo coordenado pela Professora Selma Lemes, o número de casos entrantes nas câmaras arbitrais saltou de 289 em 2019 para 322 em 2021, havendo um total de 1047 arbitragens em andamento até 2021, o que em valores representa pouco mais de R$ 55,20 bilhões de reais.
Sua abrangência abarca setores como construção civil; energia elétrica; societário; fornecimento de bens e serviços entre outros, de forma que até mesmo a Administração Pública vem crescendo a sua participação na utilização da arbitragem. Em 2020, houve a participação da Administração Pública Direita e Indireta em 29 novos procedimentos arbitrais, esse número teve uma ligeira redução para 27 casos em 2021.
Tais avanços refletem a evolução contínua da arbitragem no Brasil, consolidando-a como parte essencial do chamado "Sistema Multiportas" de resolução de disputas. Dessa forma, a história da arbitragem no Brasil é marcada por conquistas importantes, desde suas origens antigas até o reconhecimento e aprimoramento alcançados nos últimos anos. A promulgação da Lei de Arbitragem e as subsequentes alterações legislativas reafirmam a relevância desse instituto como uma ferramenta poderosa para a resolução de disputas, fortalecendo a segurança jurídica e promovendo a confiança nos diversos setores em que é empregada.
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1 As prerrogativas de um juiz aqui residem no que prevê a Lei de Arbitragem em seu art. 18, que o árbitro é juiz de fato e de direito da qual da sua sentença não cabe recurso. Em complemento, Gustavo Schmidt ensina que: "Afirmar que o árbitro é juiz de fato e de direito para a causa significa dizer que, no exercício de sua função, é equiparado ao magistrado, sem possuir, contudo, os mesmos poderes e as mesmas prerrogativas previstas na LOMAN - Lei Complementar 35/1979". SCHMIDT, Gustavo da R.; FERREIRA, Daniel B.; OLIVEIRA, Rafael Carvalho R. Comentários à Lei de Arbitragem. São Paulo: Grupo GEN, 2021. pg 135.
2 CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem: mediação: conciliação: tribunal multiportas. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais: Thomson Reuters, 2018. p. 33-35.
3 Nas lições do Professor Lorencini ao tratar sobre o tema, Sistema Multiportas: "(...) é o nome que se dá ao complexo de opções envolvendo diferentes métodos, que cada pessoa tem à sua disposição para tentar solucionar um conflito." (SALLES, LORENCINI, SILVA, 2020 p. 42).
4 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2022: sumário executivo. Brasília: CNJ, 2022. p. 104.
5 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2022: sumário executivo. Brasília: CNJ, 2022. p. 112.
6 Art. 160: Nas civeis, e nas penaes civilmente intentadas, poderão as Partes nomear Juizes Arbitros. Suas Sentenças serão executadas sem recurso, se assim o convencionarem as mesmas Partes.
7 LEMES, Selma. Petrônio Muniz, a história da lei de arbitragem. [S. l.], 2017. Disponível em: http://www.selmalemes.adv.br/publicacoes.asp?linguagem=Portugu%EAs&secao=Publica%E7%F5es&subsecao=T%F3picos&acao=Consulta&especificacao=Artigos. Acesso em: 12 jul. 2023.
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