Falhas e equívocos da resolução 08/10 do Conselho Federal de Psicologia: a nomenclatura dos documentos
No artigo de hoje, faço uma análise da Resolução (dita) mais importante, exarada pelo Conselho Federal de Psicologia, quanto aos tipos de documentos redigidos pelo perito e pelo assistente técnico, a Resolução 08/10.
segunda-feira, 17 de julho de 2023
Atualizado às 13:53
Olá. Colegas Migalheiros!
No artigo de hoje, faço uma análise da Resolução (dita) mais importante, exarada pelo Conselho Federal de Psicologia, quanto aos tipos de documentos redigidos pelo perito e pelo assistente técnico, a Resolução 08/10.
A referida Resolução veio em um contexto em que havia sim a necessidade de regulamentação da atuação da Psicologia Jurídica, mas o teor desta (e da polêmica Resolução 10/10, que foi extinta por sentença em ação civil pública), evidencia o completo desconhecimento do Conselho Federal de Psicologia quanto à atuação dos psicólogos jurídicos (peritos e assistentes técnicos). O CFP continua priorizando a atuação dos peritos, porque é a que mais se aproxima do modelo clínico, único que o CFP ainda consegue entender. Desconhece, ignora e despreza completamente a atuação dos assistentes técnicos, e não faz o mínimo esforço para se atualizar e adequar à evolução da Psicologia Jurídica, preferindo desperdiçar tempo e energias com campanhas infames de revogação de leis federais1. Mas, isso é assunto para outro artigo.
Para comprovar o completo desconhecimento do Conselho Federal de Psicologia, que desde a promulgação da Resolução 08/10, nunca teve a intenção de se informar (até para não aparecerem esses erros desde o início!), dedico este artigo à análise dos tipos de documentos produzidos pelo psicólogo jurídico, comparando esta Resolução com outras Resoluções do mesmo órgão.
Assim, vejamos:
1. Quanto ao documento redigido por Perito, que o CPC chama de "laudo", a Resolução CFP 08/10 chama de "relatório", a saber:
Art. 7º - Em seu relatório, o psicólogo perito apresentará indicativos pertinentes à sua investigação que possam diretamente subsidiar o Juiz na solicitação realizada, reconhecendo os limites legais de sua atuação profissional, sem adentrar nas decisões, que são exclusivas às atribuições dos magistrados.
Ora, se pensarmos que os psicólogos peritos atuam em âmbito judicial, e devem acompanhar os ritos processuais dos códigos, temos que os códigos processuais (civil e penal) chamam o documento do perito de "laudo", então a Resolução deveria se adequar ao termo utilizado pelos códigos (não o faz por inépcia e inércia do CFP!).
Se considerarmos que o laudo do perito psicólogo é decorrente de avaliação psicológica (conforme Resolução 06/19), jamais poderia ser chamado de "relatório" na Resolução 08/10 porque, conforme a Resolução 06/19 um relatório é uma descrição de atendimentos clínicos e não de uma avaliação psicológica.
Este artigo da Resolução afronta diversos artigos do CPC, que determina que peritos redigem laudo. Ocorre que este mesmo CFP promulgou a Resolução 06/19, tentando regulamentar os tipos de documentos redigidos pelos psicólogos, mas observa-se um fortíssimo viés clínico na conceituação de todos os documentos elencados pela referida Resolução. No caso, a Resolução 06/19 conceitua "relatório" da seguinte forma:
Art. 11. O relatório psicológico consiste em um documento que, por meio de uma exposição escrita, descritiva e circunstanciada, considera os condicionantes históricos e sociais da pessoa, grupo ou instituição atendida, podendo também ter caráter informativo. Visa a comunicar a atuação profissional da(o) psicóloga(o) em diferentes processos de trabalho já desenvolvidos ou em desenvolvimento, podendo gerar orientações, recomendações, encaminhamentos e intervenções pertinentes à situação descrita no documento, não tendo como finalidade produzir diagnóstico psicológico.
Ora, muito antes da Resolução CFP 06/19, a terminologia comum para documentos que descrevem quadro clínico (de psicólogo, psiquiatra, etc.) ou de desempenho escolar é o "relatório". E a referida Resolução 06/19 veio ratificar a informação de que "relatório" é um documento que descreve o quadro clínico e o processo terapêutico de uma pessoa.
Em nenhum momento a Resolução 06/19 afirma que o relatório é decorrente de avaliação psicológica, e sim de intervenções terapêuticas (ex.: psicoterapia). Então, o termo da Resolução 06/19 está errado ao se referir a "relatório" como documento a ser redigido pelo Perito, e o "relatório" mencionado pela Resolução 06/19 não esclarece que seja utilizado para contexto jurídico, e sim clínico.
Então, na prática, nenhuma das Resoluções 08/10 e 06/2019 estão corretas quanto à nomenclatura do documento a ser redigido pelo psicólogo Perito e Assistente Técnico: a 08/10 chama o documento pericial de "relatório" sendo que o conceito de relatório da 06/19 é completamente diverso de um documento em contexto jurídico feito pelo psicólogo Perito.
Então, jamais poderia ser mantido o termo "relatório" para o documento produzido por um perito psicólogo, inclusive porque: se o perito faz avaliação psicológica (entrevistas, aplicação de testes, observação) para a finalidade de responder a um questionamento da autoridade magistral em um processo judicial, não pode nomear seu documento "relatório" e sim de "laudo", como determinam os códigos processuais (civil e penal). Se o perito chamasse de "relatório" (conforme preceitua a Resolução 06/19) o seu documento, não poderia realizar a avaliação psicológica inerente à sua função e, consequentemente, não teria condições de responder à demanda judicial.
Percebem a contradição?
Pois é. Mas, lamentavelmente, a lista de irregularidade (e, eu diria até ilegalidades!) da Resolução CFP 08/10 não para por aí. Preparem o estômago (ou, conforme a perspectiva que queira dar para a gravidade do caso, o riso, colegas Migalheiros!):
2. Conforme afirmei em outro artigo2, o assistente técnico também tem o direito de conhecer profundamente seu cliente, e utilizar os instrumentos que entender pertinentes, uma vez que terá muitos mais elementos para assessorar o cliente.
Muitos peritos psicólogos acham estranho, "torcem o nariz", alguns até chegam à leviandade de acusar o assistente técnico de "prática antiética", mas o fato é que: assistente técnico também pode/deve fazer sua própria avaliação psicológica, respaldada pelo artigo que muitos fazem questão de "fingir que não conhecem, ou não viram": o § único do art. 8º da Resolução 08/10 do Conselho Federal de Psicologia.
Isso mesmo. O referido dispositivo declara que:
Art. 8º - O assistente técnico, profissional capacitado para questionar tecnicamente a análise e as conclusões realizadas pelo psicólogo perito, restringirá sua análise ao estudo psicológico resultante da perícia, elaborando quesitos que venham a esclarecer pontos não contemplados ou contraditórios, identificados a partir de criteriosa análise.
Parágrafo Único - Para desenvolver sua função, o assistente técnico poderá ouvir pessoas envolvidas, solicitar documentos em poder das partes, entre outros meios (Art. 429, Código de Processo Civil). (sublinhei).
Pelo menos nesse aspecto a referida Resolução 08/10 converge com a legislação processual: o art. 473 § 3º do Código de Processo Civil:
Art. 473. (...)
(...)
§ 3º Para o desempenho de sua função, o perito e os assistentes técnicos podem valer-se de todos os meios necessários, ouvindo testemunhas, obtendo informações, solicitando documentos que estejam em poder da parte, de terceiros ou em repartições públicas, bem como instruir o laudo com planilhas, mapas, plantas, desenhos, fotografias ou outros elementos necessários ao esclarecimento do objeto da perícia.
Embora aqui, haja um erro material na nomenclatura do documento: o § 3º chama de "laudo", não deixando claro se está se referindo somente ao documento do perito, ou se, por algum lapso de redação, teria deixado de mencionar também o "parecer" do assistente técnico (já que o incluiu para também realizar sua própria avaliação). De qualquer forma, o dispositivo legal permite que assistentes técnicos (independente da categoria profissional) também possam realizar sua própria avaliação, e a Resolução CFP 08/10) ratificou essa postura.
Mas, mesmo com previsão normativa, muitos psicólogos assistentes técnicos desconhecem que têm o direito/dever de realizar a avaliação psicológica, e muitos psicólogos peritos "se aproveitam" disso para realizarem procedimentos sumários, deploráveis, incompletos, superficiais, muitas vezes com viés tendencioso, baseados em uma única entrevista e os "pseudo-laudos" ficam prontos praticamente no mesmo dia!
3. A Resolução CFP 08/10 não define que tipo de documento o assistente técnico judicial deve elaborar quando precisa se manifestar acerca do laudo pericial; limita-se a afirmar que "assistente técnico elabora quesitos", mas quem conhece rotina de andamento processual sabe que, em nome do contraditório, o magistrado concede prazo de 15 dias úteis para manifestações das partes, e o assistente técnico precisa emitir seu documento;
Mesmo quando o assistente técnico judicial realiza sua própria avaliação psicológica, objetivando conhecer melhor a demanda do cliente, não o faz de forma autônoma, e sim em comparação com o laudo pericial. O documento continua sendo um 'parecer', porém com o acréscimo de suas próprias conclusões avaliativas, que serão comparadas com as conclusões periciais.
A Resolução 06/19 aborda a questão do "parecer" como um documento de manifestação de opinião técnica acerca de qualquer elemento, mas não especifica que deva ser um documento exclusivo do Assistente Técnico judicial. Peritos psicólogos podem emitir um parecer sem terem realizado avaliação psicológica, emitindo opiniões técnicas acerca de outros elementos do processo, judiciais ou extrajudiciais; assim como Assistentes Técnicos podem emitir um parecer sem que tenha havido um documento técnico (ex.: um laudo pericial) e sim exclusivamente documentos judiciais ou extrajudiciais.
A resolução CFP 06/19 menciona o "parecer" de forma genérica: não especifica que seja um documento de assistente técnico, e também não especifica que seja em contexto judicial.
Quem afirma que "assistente técnico redige parecer" são os Códigos de Processo, Civil e Penal (e, ainda assim, sem especificar de que categoria profissional).
A conclusão de que o assistente técnico redige parecer é uma associação interpretativa das três normas elencadas acima.
Impressionante como existe um Departamento Jurídico dentro do CFP que continua desconhecendo a atuação da Psicologia Jurídica e permite que conselheiros de formação exclusivamente clínica denominem aleatoriamente os instrumentos e práticas dentro da prática exclusivamente clínica, desvalorizando as especificidades das demais áreas.
Tem "conserto"? Claro que tem!
Sem adentrarmos em posições extremas (porém, ideais!) de se exigir a substituição dos atuais conselheiros e do Departamento Jurídico que demonstra reduzido conhecimento de questões processuais, por uma gestão formada por profissionais efetivamente interessados e dispostos a conhecer as particularidades de cada uma das áreas específicas da Psicologia (e descobrir, depois de 30 anos de Psicologia Jurídica no Brasil, que ela tem muitas diferenças em relação à Psicologia Clínica!), os psicólogos jurídicos devem exigir a reformulação da referida Resolução CFP 08/10, para adequar-se à realidade da atuação dos psicólogos jurídicos: peritos e assistentes técnicos.
É isso o que queria manifestar neste artigo. Espero que tenham apreciado a leitura, e me coloco à disposição para o debate saudável.
Até os próximos artigos!
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1 SILVA, D.M.P. A infame nota técnica 4/22 do Conselho Federal de Psicologia Migalhas. Ribeirão Preto, 15/05/2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/386493/a-infame-nota-tecnica-4-22-do-conselho-federal-de-psicologia.
2 SILVA, D.M.P. O psicólogo assistente técnico também faz avaliação? Migalhas. Ribeirão Preto, 23/01/2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/380060/o-psicologo-assistente-tecnico-tambem-faz-avaliacao.