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A empresa como vítima dos delitos de criminalidade complexa e sua íntima relação com os procedimentos patrimoniais

Por ser um efeito secundário da pena, o confisco de produto ou proveito dos delitos perpetrados e, pela correta instrumentalização de medidas assecuratórias paralelas ao juízo de culpa do acusado, compreendemos pela aceitação integral das cautelares patrimoniais, haja vista o tempo médio dos processos criminais até a formação do juízo de culpa.

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Atualizado às 11:10

A globalização, hodiernamente, tem viabilizado inúmeros comportamentos sociais que, em tempos  remotos, se percorria um processo burocrático natural para a época. Citamos, como forma exemplificativa, a  remessa de valores para contas bancárias sediadas no exterior, o investimento em bolsa de valores à nível mundial por meio da utilização de determinado aplicativo disponibilizado em smartphone, etc. Trata-se, verdadeiramente, de vínculos culturais, sociais e econômicos entre países estabelecidos em diversos blocos do  globo edificados pela cognominada revolução Técnico-Científico-Informacional.

De outra banda, por melhor que seja o deleite dessas facilidades que a globalização nos confere, há, como sempre houve em todas as evoluções, a proliferação de atos ilícitos por indivíduos que se aproveitam de tais benesses. Naturalmente, tratamos como máxima do "êxodo delitivo informacional".

À luz dessa criminalidade complexa que perpassa fronteiras e, de certo, exige a atuação à contento dos órgãos  de persecução e controle institucional, encetou-se esforços colossais, em escala mundial, para repressão de delitos de elevado potencial ofensivo, tais como as organizações criminosas, a  lavagem de ativos e os crimes contra a administração pública, não se olvidando das medidas necessárias ao  perdimento de bens proveniente dos ilícitos ou em equivalência. Os principais diplomas que possuímos, voltados para o enfrentamento de tais comportamentos ilícitos são: (i) Convenção de Viena, incorporada ao direito pátrio por meio do decreto lei  154/1991, tem por fito o combate ao tráfico de substância entorpecente e, em seu artigo 5º, estabelece as "medidas necessárias ao confisco de produtos derivados dos delitos ou de bens cujo valor seja equivalente ao desses produtos"; (ii) Convenção de Palermo, aderida pelo ordenamento jurídico brasileiro por via do decreto lei 5.015/04, o qual também prevê, em seu artigo 12, "medidas de confisco dos produtos das infrações, assim como a conversão desses produtos em outros bens, ainda que mesclados com bens lícitos", e; (iii) Convenção de Mérida, promulgada pelo Estado Brasileiro mediante decreto 5.687/06, o qual ostenta em seu bojo o combate às práticas de corrupção e cumpre um mister salutar, em seu artigo 31, de "confiscar o produto do delito ou bens cujo valor corresponda ao de tal produto".

Trata-se, portanto, de legislações internacionais que foram incorporados pelo ordenamento jurídico pátrio, a fim de otimizar os atos persecutórios de macrocriminalidade e criminalidade complexa, assim como as medidas assecuratórias pertinentes aos delitos catalogados, do modo que se evite a hipertrofia econômico- financeira daqueles que se projetam em tal cenário.

De outro lado, em muitas oportunidades, empresas de diversos seguimentos e magnitudes - pequeno, médio e grande porte - são alvos dessa aludida criminalidade complexa acompanhada do aparato tecnológico, então disponível. Como mote elucidativo, podemos citar um empreendedor que realiza suas operações conectadas ao seu objeto social e, na via obliqua, realiza pagamento de fornecedores, parceiros, empregados, etc., com utilização de sua conta bancária cujo manuseio ocorre pela rede mundial de computadores, dada a facilitação da digitalização do negócios jurídicos - autorizações e checagens remotas. Ocorre que, em dado instante, o responsável pelo empreendimento constata movimentações financeiras atípicas em sua conta - pessoa jurídica e, portanto, aciona sua gerência para solucionar tal impasse, uma vez que não reconhece as referidas transações. De lege lata e, a depender das circunstâncias fáticas, pode-se deduzir eventual responsabilidade objetiva das Instituições  Financeiras quando há fraudes e delitos praticados por terceiros em operações bancárias . Nesse sentido, havendo tal diálogo prévio entre cliente e Instituição Financeira, sem judicialização de demandas, é possível se deduzir o saldo do valor que  fora objeto de movimentação atípica na conta de seu cliente, gerando, ao nosso sentir, a incidência de instituto de direito civil chamado sub-rogação convencional , o qual acaba outorgando os direitos que pertencia ao empreendedor à Instituição Financeira.

Notadamente, a Instituição Financeira, com todo seu aparato operacional e tecnológico de coleta de  dados, detém meios para alcançar o percurso do valor que fora objeto de movimentações financeiras atípicas e, assim, reaver o montante que fora objeto de pacto com seu cliente correntista, alvo direto da suposta prática  ilícita.

E, portanto, se há outorga integral de todos os direitos do Empreendedor à Instituição Financeira, é  notória a viabilidade, por parte do referido Banco, de proceder com as medidas assecuratórias de estilo, a fim de saldar seu legítimo ressarcimento, seguindo a disciplina dada pelo ordenamento jurídico pátrio - Constituição Federal, Código de Processo Penal e Código Penal.

Logo, adentrando ao cerne do presente artigo - medidas assecuratórias por parte de empresas  vítimas de criminalidade complexa -, o caminho tortuoso do processo penal para todos aqueles que o integram, não pode ter maior reflexo para aqueles que foram alvos de quebra do contrato social pelos sujeitos ativos do  delito e, portanto, convém enaltecer, sim, a autonomia dos procedimentos de persecução patrimonial do investigado ou acusado, ante o procedimento de persecução da culpabilidade.

A EMPRESA COMO VÍTIMA EM DELITOS DE CRIMINALIDADE COMPLEXA E O TRATAMENTO DADO À ESSES ATORES PROCESSUAIS

No cenário legislativo vigente, a vítima ou ofendido ostenta uma posição coadjuvante, entretanto, bastante adequado para a proposta de um processo penal substancial e democrático.

Inicialmente, a nossa Carta da República, em seu artigo 245 , traz uma norma de eficácia limitada quanto a sua aplicabilidade e reforça a necessidade de elaboração de leis infraconstitucionais para conferir assistência às pessoas vítimas de crimes dolosos, assim como seus herdeiros e dependentes.

Na mesma toada, à vítima ou ao ofendido é conferido, quando caracterizada a inércia estatal frente a um dever institucional de iniciativa penal - obrigatoriedade do Ministério Público de intentar a inicial acusatória -, a faculdade de ajuizamento de ação penal privada subsidiária da pública, ante o verbete autorizativo estampado no artigo 5º, inciso, LIX, da Constituição Federal . Ao lado das ações penais de iniciativa privada, o presente instituto tem o condão de atribuir ao ofendido a possibilidade de exercer os poucos resquícios do sistema processual acusatório à nível privado, adotado como regra na Antiguidade .

Tirante essas hipóteses acima elencadas quanto a condução de processos persecutórios em face de seu ofensor, a vítima é tratada pela norma como uma espectadora processual que aguarda  um decreto condenatório por parte do Estado-Juiz, para alcançar a efetiva reparação de eventual dano experimentado em decorrência da conduta do acusado.

Com algumas inovações legislativas, a posição coadjuvante do ofendido fora, uma vez mais, reforçada, máxime a importação de medidas de justiça penal consensual de legislações estrangeiras.

Aduzimos, nessa quadra, o advento da lei dos Juizados Especiais Criminais (lei Federal nº. 9.099/1995), a qual em seus artigos 72, 74, 76 e 89 envida todos os esforços para que haja a reparação dos danos suportados pelo ofendido, seja mediante composição com o acusado ou por oferta de transação penal por parte do representante do Ministério Público e aceite do ofensor, além da suspensão condicional do processo que, uma vez preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos do instituto, estabelece, como condição primacial, a reparação do dano à vítima.

Ainda, com a alteração legislativa do Código de Processo Penal editada pelo cognominado "Pacote  Anticrime" (lei Federal nº. 13.964/2019) instalou-se outra medida de justiça penal consensual, qual seja, o  Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), estampado no artigo 28-A, do Diploma Processual . Nesta hipótese, com diferenciados requisitos objetivos e subjetivos para sua proposta, visto que se alcança, também, delitos de médio potencial ofensivo, poderá o dominus litis mitigar a obrigatoriedade da Ação Penal. E, como regra de  ouro para tal medida consensual, podemos assentar que a reparação do dano ou restituição de coisa à vítima  seria a pedra de toque para tanto.

Não é demais lembrar que a lei Federal nº. 12.850/2013, o qual define as organizações criminosas  e confere outras providências processuais, trata, uma vez mais, das regras de consenso no processo penal e,  nesta oportunidade, lida com delitos de elevado potencial ofensivo. Em seu artigo 4º, inciso IV da aludida Legislação Penal Extravagante , há delimitação do instituto da colaboração premiada e traz, não só a possibilidade de recuperação total ou parcial do produto ou proveito das infrações penais praticadas e, a doutrina mais autorizada acerca do tema, defende, ainda, a possibilidade de entrega de bens lícitos em substituição aos adquiridos ilicitamente, diante da possibilidade de perda de valor equivalente.

Conforme já havíamos manifestado anteriormente, a ritualística processual penal, por força de suas  alterações legislativas inspiradas no direito anglo-saxão, caminha a passos largos para o consenso integral, em todos os crimes encartados em nossa legislação.

Quanto às vítimas, sejam elas pessoas físicas ou fictas, ex vi legis, lhes restam o legítimo interesse  de buscar todos os meios suasórios para alcançar a reparação do dano sofrido oriundo da prática de ilícitos penais. E, para tanto, algumas medidas assecuratórias, também encartadas na Legislação Penal adjetiva, encontram-se disponíveis seja na fase investigatória, seja na fase processual, conforme passaremos a expor de  forma minudente.

MEDIDAS ASSECURATÓRIAS PROPRIAMENTE DITAS E A LEGITIMIDADE  ATIVA DA EMPRESA VÍTIMA

Importante sinalizarmos, inicialmente, que as medidas assecuratórias previstas no Código Processual Penal são compreendidas como procedimentos acessórios e autônomos à luz do procedimento penal  que visa estabelecer a culpa em sentido amplo do imputado.

A finalidade das medidas assecuratórias, que passaremos a discorrer, tem como consequência o acautelamento de bens do imputado, para ulterior ressarcimento ao ofendido , devendo-se aguardar a conclusão  de procedência por parte do juízo de culpa.

Em termos claros, poderá o ofendido intentar todas as medidas assecuratórias em face do investigado ou acusado, quais sejam: (i) sequestro de bens imóveis; (ii) sequestro de bens móveis; (iii) especialização e registro da hipoteca legal; (iv) arresto de bens imóveis; (v) arresto subsidiário de bens móveis.

Essa liberalidade legal conferida ao ofendido, a bem da verdade, é uma conquista democrática com espeque na duração razoável do processo e na celeridade processual, pois na própria Exposição de Motivos do  Código de Processo Penal, ao abordar questões atinentes a ações civis ex delitcto se demonstrava certa relutância quanto as medidas cautelares patrimoniais, sem se olvidar do tom pessimista com aqueles que têm  por fito a busca de suas reparações:

"O projeto não descurou de evitar que se torne ilusório o direito à reparação do dano, instituindo ou regulando eficientemente medidas assecuratórias (sequestro e hipoteca legal dos bens do indiciado ou do responsável civil), antes mesmo do início da ação ou do julgamento definitivo, e determinando a intervenção do Ministério Público, quando o titular do direito à indenização não disponha de recursos pecuniários para exercê-lo. Ficará, assim, sem fundamento a crítica, segundo a qual, pelo sistema do direito pátrio, a reparação do dano ex delicto não passa de uma promessa vã ou platônica da lei".

Por mais que se repute um trabalho hercúleo, de fato, quanto a identificação de patrimônio auferido pelo investigado ou acusado e, sua conseguinte custódia cautelar para fins de reparação de dano, tem-se que a  evolução do aparato investigatório e atuação conjunta dos órgãos de persecução penal muito contribuiu a título de êxito em tais medidas cautelares patrimoniais. Não menos importante, com o desenvolvimento de um racional protetivo, não só dos órgãos de controle, mas também dos ofendidos, imbuídos no precípuo interesse de recuperar seu patrimônio que fora objeto de locupletamento por parte do investigado ou acusado, inúmeros leading cases tem refletido em sucesso e efetividade no que concerne as medidas assecuratórias.

No ponto, podemos citar os recentes casos alusivos à supostas práticas de pirâmides financeiras (crime contra a economia popular) que vitimou inúmeros ofendidos com promessas de retorno no tocante à investimentos em criptoativos. Na oportunidade, foram apreendidos veículos de  luxo, jóias, R$ 13,8 milhões e R$ 150 milhões em bitcoins, tornando seguro, após o curso do processo e eventual condenação por parte do juízo de culpa, a reparação dos danos que as vítimas sofreram .

De certo, quando o ofendido consegue elencar o inequívoco dano auferido com tais práticas sub- reptícias, a demonstração de evolução patrimonial contemporânea ao delito que fora sujeito passivo, registros de viagens do suspeito ou acusado para o exterior, patrimônio incompatível com a condição de fortuna do suspeito ou acusado, declarações pretéritas de Imposto de Renda que demonstrem uma expressiva evolução patrimonial, pode-se dizer que os requisitos das medidas assecuratórias estão preenchidos, aos olhos da jurisprudência atual.

O fato é que, na via da criminalidade complexa, o patrimônio auferido de maneira ilícita funciona  como uma mola propulsora para outras condutas ilícitas e, o caminho estanque para se evitar a proliferação de  outros nichos criminosos se encontra no restabelecimento do status quo ante, instrumentalizado pelas medidas assecuratórias.

CONCLUSÕES

Diante das reflexões desenvolvidas nesse artigo, desde a adesão de padrões internacionais  de medidas assecuratórias, até a viabilidade de determinadas ações que visem proteger o ofendido ou vítima da  criminalidade complexa, temos que o espírito dos institutos aqui tratados visam franquear a ideia pela qual não podemos depositar toda fé no juízo de culpa, com eco no computo da pena. Por ser um efeito secundário da  pena, o confisco de produto ou proveito dos delitos perpetrados e, pela correta instrumentalização de medidas  assecuratórias paralelas ao juízo de culpa do acusado, compreendemos pela aceitação integral das cautelares patrimoniais, haja vista o tempo médio dos processos criminais até a formação do juízo de culpa.

Por outra via, a irreversibilidade da medida, por mais que pareça ser um argumento direcionado e objetivo quanto à defesa do acusado, não contempla eficácia e efetividade no âmbito da persecução criminal,  pois mesmo que, ao final do processo, se compreenda pela absolvição do acusado quanto ao juízo de culpa, o levantamento das medidas assecuratórias torna-se cogente e, em caso de eventual alienação antecipada de bem, em nada reflete negativamente no patrimônio do acusado. Pelo contrário, uma vez aportado tal numerário em  conta bancária de custódia judicial, tais valores estão sujeitos à correção monetária nos moldes da Tabela Prática do Tribunal respectivo. Ou seja, o acusado alcança rentabilidade e não depreciação em eventual alienação antecipada.

Quanto ao ofendido ou vítima da criminalidade complexa e, seu poderio na busca pelas informações e coleta de dados atinente ao patrimônio do acusado ou investigado, temos que, dentro da teoria  dos jogos, há sim, um fair play nesse aspecto, de modo que a máxima do "chumbo trocado não dói" deve prevalecer. Patrimônio recuperado em âmbito de persecuções penais tornaram-se a finalidade das vítimas, não  só de lege lata, mas também pela consciência e interesse daqueles que são vítimas de delitos econômicos, perpetrados sem qualquer aspecto de violência ou grave ameaça, as quais não pretendem qualquer revanchismo.

A base de um Estado Democrático de Direito se funda, também, no direito à propriedade privada e a premissa do esforço e resultado reflete bastante no ditado: "Dai a César o que é de César!". Logo, nada mais  legítimo do que conferir aos ofendidos o direito incessante de recuperação do seu patrimônio.

Marco J. Eugle Guimarães

VIP Marco J. Eugle Guimarães

Advogado criminalista, LLM em Direito Penal Econômico pela FGV/SP, LLM em Direito e TI pela POLI-USP; Certificado em Ciências Criminais pela Georg-August-Universität-Göettingen.

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