É permitido o uso de inteligência artificial generativa para criar e explorar conteúdos "novos" por meio da reconstrução digital da voz e/ou da imagem de pessoa falecida?
Recentes casos de uso de inteligência artificial generativa para a reconstrução digital de voz e imagem de pessoa falecida acenderam o debate sobre a ética e a legalidade desse uso.
quarta-feira, 12 de julho de 2023
Atualizado às 14:41
Recentemente, em entrevista para o programa Today, da BBC Radio 4, da Inglaterra, Paul MacCartney afirmou que uma nova música está sendo produzida com o uso de inteligência artificial para "criar" a voz de John Lennon1. Segundo Paul, a voz de John foi extraída de uma gravação em fita cassete cedida por Yoko Ono (viúva de John).
Outro caso que gerou repercussão - que ocorreu no Brasil - foi o comercial da Volkswagem que reconstruiu, com o uso de inteligência artificial, a imagem da cantora Elis Regina - falecida em 1982 -, para participação no comercial com sua filha, Maria Rita2.
Por fim, de acordo com notícia divulgada pela Folha de São Paulo, no dia 10/7/23, a cantora Madonna teria, supostamente, proibido a recriação da sua imagem para a realização de shows após a sua morte, tendo em vista o receio de que venham a manchar a sua carreira por meio de recriações digitais3.
No caso do comercial da Volkswagem, o Conar, após consumidores questionarem a ética do uso da inteligência artificial para reproduzir a imagem de pessoa falecida, deu início a um processo administrativo para analisar o caso. Além disso, o Conar analisará a validade ou não da autorização de herdeiros para o uso da imagem de pessoa falecida em peça criada por meio de Inteligência Artificial.
Tais notícias levantaram alguns questionamentos: Se vivos, essas pessoas desejariam gravar a música ou participar do comercial? Desejariam elas, quando vivas, diante da possibilidade atual, que a sua voz e/ou a sua imagem fossem manipuladas após a morte para criação de nova(s) canção(ões), solo ou em parcerias, comerciais, shows, etc?
Desses questionamentos, surgiu o seguinte questionamento jurídico: É permitido o uso de inteligência artificial generativa para criar e explorar conteúdos "novos" por meio da reconstrução digital da voz e/ou da imagem de pessoa falecida?
Por primeiro, é importante destacar que, embora a reconstrução digital de imagem e/ou de voz não seja algo atualíssimo, é certo que o aprimoramento das tecnologias de inteligência artificial (generativa) tem ensejado reconstruções cada vez mais verossímeis, que viabilizam a criação de conteúdos "novos" - e não somente a manipulação/alteração de um conteúdo existente -, que podem ser considerados como verdadeiros/reais por pessoas que não têm o conhecimento e o "olhar técnico" para, de imediato, entender que o conteúdo foi criado por meio de reconstrução digital da imagem e/ou da voz. O fenômeno das deep fakes4 é uma das problemáticas decorrentes da reconstrução digital de imagem e/ou voz por meio de inteligência artificial generativa.
Pois bem, com relação à voz e à imagem como direitos individuais legalmente protegidos pela legislação brasileira, cumpre destacar, o seguinte:
O artigo 5º, incisos X e XXVIII, alínea "a", da Constituição Federal, estabelecem, respectivamente, que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação", e que são assegurados, nos termos da lei, "a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas".
O artigo 12 do Código Civil estabelece que "pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei", e que "em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau" (parágrafo único).
O artigo 20 do Código Civil, por sua vez, estabelece que:
Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais.
O parágrafo único complementa o artigo 20 do Código Civil que, "em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes".
Voz e imagem são, nesse sentido, direitos da personalidade - que, lembre-se, são intransmissíveis e irrenunciáveis, conforme disposto no artigo 11 do Código Civil - constitucional e infraconstitucionalmente protegidos, inclusive com a possibilidade de proteção pós morte por parte de qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.
A lei Geral de Proteção de Dados - LGPD, estabelece ser dado pessoal a informação relacionada a pessoal natural identificada ou identificável. Neste sentido, sendo a voz e a imagem capazes de identificar ou tornar uma pessoa identificável, são elas dados pessoais protegidos, também, pela referida legislação. No caso, o tratamento da voz e da imagem - salvo exceções legais não aplicáveis aos dois casos concretos acima expostos - demanda consentimento por parte do titular.
Por fim, em termos de legislação especial relativa a direitos autorais, a imagem e a voz encontram amparo na lei 9.610/98, que, dentre outras, dispõe sobre a proteção de obras audiovisuais e de fonogramas, cujos conceitos legais - dispostos, respectivamente, nos incisos VII, alínea "i", e IX, do artigo 5º -, para melhor compreensão, são os seguintes:
i) audiovisual - a que resulta da fixação de imagens com ou sem som, que tenha a finalidade de criar, por meio de sua reprodução, a impressão de movimento, independentemente dos processos de sua captação, do suporte usado inicial ou posteriormente para fixá-lo, bem como dos meios utilizados para sua veiculação;
IX - fonograma - toda fixação de sons de uma execução ou interpretação ou de outros sons, ou de uma representação de sons que não seja uma fixação incluída em uma obra audiovisual;
O artigo 22 da referida lei dispõe que "pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou", cujo complemento se observa no artigo 24, que dispõe sobre os direitos morais do autor nos seguintes termos:
Art. 24. São direitos morais do autor:
I - o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra;
II - o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra;
III - o de conservar a obra inédita;
IV - o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra;
V - o de modificar a obra, antes ou depois de utilizada;
VI - o de retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem;
VII - o de ter acesso a exemplar único e raro da obra, quando se encontre legitimamente em poder de outrem, para o fim de, por meio de processo fotográfico ou assemelhado, ou audiovisual, preservar sua memória, de forma que cause o menor inconveniente possível a seu detentor, que, em todo caso, será indenizado de qualquer dano ou prejuízo que lhe seja causado.
O artigo 29, também da lei 9.610/98, estabelece, como regra, que:
Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:
I - a reprodução parcial ou integral;
II - a edição;
III - a adaptação, o arranjo musical e quaisquer outras transformações;
IV - a tradução para qualquer idioma;
V - a inclusão em fonograma ou produção audiovisual;
VI - a distribuição, quando não intrínseca ao contrato firmado pelo autor com terceiros para uso ou exploração da obra;
VII - a distribuição para oferta de obras ou produções mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para percebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda, e nos casos em que o acesso às obras ou produções se faça por qualquer sistema que importe em pagamento pelo usuário;
VIII - a utilização, direta ou indireta, da obra literária, artística ou científica, mediante:
- representação, recitação ou declamação;
- execução musical;
- emprego de alto-falante ou de sistemas análogos;
- radiodifusão sonora ou televisiva;
- captação de transmissão de radiodifusão em locais de freqüência coletiva;
- sonorização ambiental;
- a exibição audiovisual, cinematográfica ou por processo assemelhado;
- emprego de satélites artificiais;
- emprego de sistemas óticos, fios telefônicos ou não, cabos de qualquer tipo e meios de comunicação similares que venham a ser adotados;
- exposição de obras de artes plásticas e figurativas;
IX - a inclusão em base de dados, o armazenamento em computador, a microfilmagem e as demais formas de arquivamento do gênero;
X - quaisquer outras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas.
Especificamente, com relação ao intérprete, o artigo 92 estabelece o seguinte com relação aos direitos morais:
Art. 92. Aos intérpretes cabem os direitos morais de integridade e paternidade de suas interpretações, inclusive depois da cessão dos direitos patrimoniais, sem prejuízo da redução, compactação, edição ou dublagem da obra de que tenham participado, sob a responsabilidade do produtor, que não poderá desfigurar a interpretação do artista.
Importa lembrar que os direitos patrimoniais relacionados à voz e/ou imagem (consubstanciados em fonogramas ou obras audiovisuais, por exemplo), são passíveis de cessão e transmissibilidade. Logo, ocorrendo o falecimento do (a) autor (a) e havendo sucessores, por exemplo e se o caso, a estes serão transmitidos os direitos patrimoniais relativos à obra, e caberá a eles o direito de reivindicar, explorar e proteger.
Em vista do exposto, é possível afirmar que não há dúvidas com relação à proteção legal do direito à voz e à imagem de pessoas vivas, bem com relação à proteção das pessoas falecidas - cuja iniciativa fica a cargo do cônjuge, dos ascendentes ou dos descendentes, especialmente com relação a obras fonográficas e/ou audiovisuais (quando o caso). Por óbvio, o objetivo é que a pessoa tenha a sua honra, reputação e/ou obras protegidas, em vida ou após a morte.
É importante destacar que a legitimidade dos sucessores - ou de quem de direito -, para proteger, reivindicar e explorar direitos patrimoniais relacionados a obras fonográficas ou audiovisuais diz respeito a obras originalmente existentes quando do falecimento da pessoa - ou seja, conteúdos originais, cuja pessoa, de algum modo, concordou com ele quando gravou, atuou, produziu, divulgou, etc.
Ocorre que, com o advento da inteligência artificial, a imagem e/ou voz das pessoa podem ser alteradas e editadas para criar novos conteúdos (comerciais, filmes, vídeos, canções, entre outras possibilidades), tudo isso sem que haja o consentimento e autorização do titular da imagem e/ou voz - já que morto, obviamente -, de modo que não há como saber se a pessoa concordaria ou não com os novos conteúdos criados por meio da reprodução da sua voz e/ou da sua imagem. Nesse sentido, indaga-se: Os sucessores têm legitimidade para permitir a reconstrução digital de pessoa morta para a produção de conteúdos novos?
Com relação à proteção do direito à voz e à imagem de pessoa morta, frente ao uso de inteligência artificial generativa para a reconstrução digital, mediante interpretação teleológica-sistemática, é possível afirmar que, considerando que voz e imagem são direitos da personalidade irrenunciáveis e intransmissíveis, e dados pessoais cujo tratamento demanda consentimento do titular, com base de proteção constitucional e infraconstitucional - inclusive com legislação específica quando se trata de obra audiovisual e/ou de fonograma -, para todos os efeitos, salvo disposição em sentido contrário - formal e validamente manifestada pela pessoa em vida -, é vedado o uso de inteligência artificial generativa para criar e explorar conteúdos "novos" por meio da reconstrução digital da voz e/ou da imagem de pessoa falecida, não tendo os sucessores, portanto, legitimidade para permitirem o uso neste sentido
Em que pese essa conclusão, diante da ausência de regulamentação específica, com o objetivo de evitar discussões futuras post-mortem acerca da possibilidade ou não, bem como dos limites - quando o caso - do uso de inteligência artificial generativa para criar e explorar conteúdos "novos" por meio da reconstrução digital da voz e/ou da imagem de pessoa falecida, é recomendável que a pessoa que não deseja a sua reconstrução digital ou que tem limitações quanto a isto, expresse a sua vontade ainda em vida, por meio de testamento e/ou contrato escrito, conforme o caso, de modo a evitar ou limitar o uso para este fim após sua partida.
-----------------------
1 Disponível em: https://www.bbc.co.uk/programmes/p0ftvczc. Acesso em 13 de junho de 2023.
2 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/389733/conar-abre-processo-etico-contra-volks-por-imagem-de-elis-em-comercial . Acesso em 10 de julho de 2023.
3 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2023/07/madonna-proibe-que-usem-hologramas-para-recria-la-em-caso-de-morte-diz-jornal.shtml. Acesso em 11 de julho de 2023.
4 Para uma compreensão sucinta e objetiva, vide : https://jornal.usp.br/ciencias/como-inteligencia-artificial-deepfakes-e-agencias-de-checagem-atuam-na-arena-da-desinformacao/.
João Felipe Oliveira Brito
Sócio no OBMA Advogados | Professor Universitário | Especialista em Direito Civil e Processo Civil e Mestre em Direito pela FMU.