Combate à advocacia predatória e a indústria do dano moral: análise do IRDR 5040370-24.2022.8.24.0000/SC
A decisão proferida pelo Tribunal de Justiça Catarinense, ao reconhecer a importância da comprovação efetiva do abalo moral nos casos de invalidação ou nulidade da contratação de cartão de crédito com reserva de margem consignável, também sinalizou um posicionamento firme no sentido de desencorajar a prática da advocacia predatória.
quarta-feira, 12 de julho de 2023
Atualizado às 09:20
O presente artigo se voltará a analisar o precedente proferido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, nos autos do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) 5040370-24.2022.8.24.0000, admitido junto ao Grupo de Câmaras de Direito Comercial, no intuito de "definir se há dano moral presumido (ou não) na hipótese de invalidação da contratação de cartão de crédito com reserva de margem consignável em benefício previdenciário".
Referido precedente, como se verá, tem sua importância no âmbito dos precedentes vinculantes do país por não apenas apreciar as regras dos contratos de empréstimo com reserva de margem de consignação, como também por estabelecer importantes considerações sobre a apuração do dano moral, nas hipóteses de invalidação do negócio jurídico pelo Poder Judiciário e, acima de tudo, por representar marco importante no combate à prática que se consensou denominar como 'advocacia predatória'.
Da legalidade do cartão de crédito com margem consignável
De plano, o acórdão em estudo reconheceu que tanto o empréstimo consignado, como o contrato de cartão com reserva de margem de consignação, configuram modalidade legal de crédito mais acessível, com juros baixos à população1.
Vale ressaltar, ainda, que nos contratos de cartão consignado, se o titular do cartão adimplir a integralidade da fatura, nenhum valor será descontado de sua margem de consignação, e que somente de não pagamento integral da fatura, o valor mínimo da fatura é descontado da sua folha de pagamento, respeitando o limite de 5% do salário do tomador, conforme previsão legal2.
À luz destas considerações iniciais, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina assentou a premissa de que o cartão de crédito com reserva de margem consignável é negócio bancário absolutamente lícito, com amparo em lei, instruções normativas do INSS e em normas de autorregulação bancária e na jurisprudência.
Da necessidade de comprovação dos danos morais
Apesar da legalidade que lastreia os contratos de empréstimo consignado e de cartão consignado de modo geral, o Tribunal Catarinense não deixou de considerar que há situações nas quais a contratação é realizada sem a devida clareza e transparência das condições contratuais, sendo necessário, nestas ocasiões, a pontual intervenção do Poder Judiciário para resguardar o consumidor bancário.
Surge então nestas situações a dúvida, que levou à afetação do incidente: haveria dano moral presumido nessas hipóteses de declaração de nulidade da relação contratual? Nesse sentido, inclusive, foram as considerações preliminares do acórdão em exame:
"A questão que se coloca nos autos é a hipótese de o consumidor formalizar, junto à instituição financeira, contrato de cartão de crédito com reserva de margem consignável que venha, posteriormente, a ser dado como inválido/nulo, surgindo daí a indagação se tal fato ensejaria, por si só, reparação por dano moral in re ipsa, ou seja, a concessão de compensação com base na presunção de ter o consumidor sofrido abalo anímico, dispensando-se quaisquer outras provas".
Para se chegar à conclusão do tema afetado, o acórdão paradigmático começou registrando que para que seja caracterizada a responsabilidade e, por conseguinte, o dever de indenizar, é necessário estar presentes três requisitos: o ato lesivo, a ocorrência do dano (moral ou patrimonial) e o nexo de causalidade entre ambos, nos termos dos arts. 186 e 927, ambos do Código Civil.
Logo, a regra é que a obrigação de indenizar surge apenas com a efetiva comprovação do dano causado a um bem jurídico tutelado de esfera moral, comprovação que, por conseguinte, é feita mediante a análise - fática e jurídica - das circunstâncias envolvidas em cada caso concreto.
Para tanto, considerou o Tribunal que seria "perfeitamente crível que em inúmeros casos, invalidado o contrato, o consumidor não tenha sequer sido atingido no seu patrimônio financeiro (não devolução, na íntegra, do numerário depositado a seu favor), não ocorrendo, em tese, qualquer risco à sua subsistência, e, consequentemente, ofensa à sua dignidade".
O dano presumido, em seu aspecto moral, enquadra-se como uma exceção, admitida pela jurisprudência apenas em limitadas e restritas hipóteses, ligadas a situações de saúde física e mental do indivíduo, ou ainda a direitos da personalidade3.
Considerar o contrário, ou seja, aplicar a presunção do dano moral para demais situações diverge da preocupação genuína - amplamente compartilhada pela doutrina4 e pela jurisprudência majoritárias5 - de que o instituto seja banalizado, aplicando-se a todo e qualquer dissabor cotidiano que venha a ocorrer, sob pena de que seja criada uma categoria de "punição genérica por atos ilícitos", hipótese que fomentaria a chamada "indústria do dano moral"6, o que, por óbvio, não se espera.
Nessa ordem de ideias, acabou restando decidido, por unanimidade, que a eventual anulação do contrato de empréstimo consignado ou de cartão de crédito consignado, por meio de ação judicial, não confere o direito a percepção de dano moral in re ipsa, sendo imprescindível nesses casos a comprovação do abalo moral decorrente do ato, nos termos, inclusive, do que determina o art. 373, I, do CPC.
Do combate à advocacia predatória
Durante os debates, os desembargadores integrantes do Grupo de Câmaras de Direito Comercial consideraram também que a eventual fixação de tese que caracterize como presumida a indenização por dano moral nos casos de descontos indevidos em benefícios previdenciários, provocaria uma verdadeira "indústria de ações" focadas nesse nicho, o que incentivaria a prejudicial prática conhecida como "advocacia predatória", que há muito o Tribunal Catarinense visa combater.
A advocacia predatória é caracterizada pela atuação de profissionais que buscam obter vantagens indevidas por meio de práticas abusivas, valendo-se da vulnerabilidade e falta de conhecimento dos consumidores. Esses advogados muitas vezes exploram a inexperiência ou fragilidade dos clientes, induzindo-os a ingressar com ações judiciais desnecessárias, visando apenas obter lucro pessoal.
No contexto do combate à advocacia predatória, caracterizada também pela busca excessiva e despropositada por indenizações por danos morais, o julgamento desse IRDR se revelou crucial. O uso indiscriminado do pedido de indenização por dano moral, sem uma real fundamentação, vem sobrecarregando o sistema judiciário e prejudicando a efetividade da justiça.
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ao analisar o caso em questão, reafirmou que o dano moral presumido deve ser excepcional, sendo necessário comprovar a efetiva lesão aos sentimentos, abalo ou inquietação espiritual ou psíquica. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) também tem adotado esse posicionamento, evitando a banalização do instituto.
Essa exigência de comprovação se alinha com a necessidade de coibir práticas abusivas e o enriquecimento ilícito por parte de profissionais inescrupulosos que se valem da judicialização excessiva para obter vantagens financeiras indevidas. Com essa abordagem, o julgamento em estudo contribui para a promoção da ética e da responsabilidade na atuação dos advogados, bem como para a preservação do sistema judiciário.
Além disso, ao estabelecer critérios mais rigorosos para a caracterização do dano moral, o julgamento também colabora para evitar o crescente número de demandas judiciais infundadas que sobrecarregam o Poder Judiciário, prejudicando a eficiência e a celeridade na resolução dos conflitos.
Nessa mesma linha, convêm o destaque do IRDR n. 0801887-54.2021.8.12.0029/500007, do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, ocasião na qual restou decidida tese no sentido de que "o Juiz, com base no poder geral de cautela, nos casos de ações com fundado receio de prática de litigância predatória, pode exigir que a parte autora apresente documentos atualizados, tais como procuração, declarações de pobreza e de residência, bem como cópias do contrato e dos extratos bancários, considerados indispensáveis à propositura da ação, sob pena de indeferimento da petição inicial, nos termos do art. 330, IV, do Código de Processo Civil".
O precedente ora em estudo, ao lado do IRDR 0801887-54.2021.8.12.0029/50000, do TJMS, portanto, representa mais um marco para o combate da advocacia predatória, em termos de precedente vinculante no país.
Conclusão
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em julgamento de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, registrou que o cartão de crédito com reserva de margem consignável é negócio bancário absolutamente lícito, com amparo em lei, instruções normativas do INSS e na jurisprudência.
Restou fixada, ainda, tese vinculante no sentido de que nas hipóteses judiciais em que se reconhece a nulidade do negócio jurídico entabulado, a condenação por danos morais não pode ocorrer de modo in re ipsa, ou seja, presumido. Deste modo, necessário que sejam sempre apuradas as evidências e provas produzidas no caso concreto para que o magistrado possa decidir se deve ou não julgar procedente a pretensão a reparação por danos morais.
Desta forma, a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça Catarinense, ao reconhecer a importância da comprovação efetiva do abalo moral nos casos de invalidação ou nulidade da contratação de cartão de crédito com reserva de margem consignável, também sinalizou um posicionamento firme no sentido de desencorajar a prática da advocacia predatória. Essa postura contribui para a proteção dos consumidores, evitando que sejam vítimas de abusos e garantindo que as demandas judiciais sejam pautadas pela busca da justiça e da equidade.
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1 Advogado. Doutorando em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Presidente da Comissão de Direito Bancário da OAB/SP (Pinheiros). Membro da Comissão de Direito Bancário do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Consultor Jurídico da Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN). Assessor Jurídico de Conselheiro do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN). E-mail: [email protected].
2 à época dos fatos em julgamento, apenas 3,06% ao mês - art. 16, III, da IN nº 138 do INSS.
3 art. 1º, § 1º e art. 6º, § 5º da Lei 10.820/03 - já com a redação dada pela Lei n° 14.431/22, além do art. 5°, V, c, da IN n° 138 do INSS
4 In re ipsa: os entendimentos mais recentes do STJ sobre a configuração do dano presumido. Disponível em https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2022/11092022-In-re-ipsa-os-entendimentos-mais-recentes-do-STJ-sobre-a-configuracao-do-dano-presumido.aspx. 11/09/2022.
5 SANTANA, Héctor Valverde. Dano moral no direito do consumidor [livro eletrônico] / Héctor Valverde Santana ; apresentação Claudia Lima Marques ; Antonio Herman V. Benjamin e Claudia Lima Marques, coordenação. -- 2. ed. -- São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2019.
6 AgInt no AREsp n. 1.701.311/GO, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, DJe de 22/3/2021.); (AgInt no AREsp n. 1.354.773/MS, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, DJe de 24/4/2019.); (AgInt no AREsp n. 2.110.525/SP, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 29/8/2022, DJe de 31/8/2022
8 Expressão utilizada para se referir aos casos em que, de forma recorrente, o pedido daqueles que se sentiam lesados não corresponde, de fato, ao narrado e provado no processo. Definição disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/270552/a-industria-do-dano-moral-versus-a-industria-do-mero-aborrecimento.
9 TJMS - IRDR n. 0801887-54.2021.8.12.0029/50000 - Seção Especial Cível - Rel. Des. Marcos José de Brito Rodrigues, publicação em 31/05/22