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Autonomia operacional do Banco Central do Brasil - Aspectos jurídicos, políticos e econômicos

A conquista de um maior grau de autonomia por parte do Banco Central é apenas um passo em busca da disciplina fiscal e monetária, da estabilidade econômica, tendo-se em vista o longo prazo.

terça-feira, 11 de julho de 2023

Atualizado às 14:00

1. Pontos iniciais

A discussão acerca da autonomia operacional dos bancos centrais ganhou o cenário político e econômico após a Primeira Guerra Mundial, quando a maioria dos países se utilizou dos seus Bancos Centrais para financiar seu esforço de guerra. Tal fato não causa nenhuma surpresa, uma vez que desde o surgimento dos primeiros Bancos Centrais o financiamento de guerras existia como uma espécie de contrapartida à concessão do monopólio de emissão. Após o término da Grande Guerra, o mundo viveu um período de descontrole inflacionário, fruto da emissão desenfreada para financiar a máquina de guerra.

Em 1920, aconteceu em Bruxelas uma conferência internacional que tratou de temas financeiros e emitiu uma resolução no sentido de que os países que ainda não possuíssem Bancos Centrais independentes deveriam tomar as medidas necessárias para tanto. Essa não foi a única razão para determinar a predominância, nos campos teórico e prático, da desvinculação dos Bancos Centrais do Estado (autonomia dos Bancos Centrais). Também contribuíram para isso, além dos financiamentos inflacionários do esforço de guerra, o domínio das doutrinas liberais e a crença no automatismo do padrão-ouro (Machado, 1993).

O termo independência dá uma idéia de tomada de decisão sem consulta prévia, sem satisfação, sem prestação de contas a quem quer que seja. O termo autonomia, por sua vez, parece ser o mais adequado, pois quando se discute a autonomia de um banco central está se discutindo a condução e operacionalização da política monetária e de outras por ventura sob sua responsabilidade. Um banco central autônomo tem, portanto, somente autonomia para cumprir aquilo que foi estabelecido pela sociedade e que está representado nos seus estatutos (do banco central). Trata-se, assim, de autonomia operacional para buscar atingir determinadas metas - de inflação, por exemplo - com prestação de contas para a sociedade.

Após a Grande Depressão, com a suspensão do padrão ouro observou-se uma mudança no pensamento político-econômico a respeito do papel e do relacionamento dos Bancos Centrais. Referida posição foi agravada com o fim da Segunda Grande Guerra, pois o modelo de desenvolvimento dominante naquela época pregava uma maior participação do Estado na economia, em busca da reconstrução dos países e retomada do crescimento econômico. Essa posição durou até o final da década de setenta, início da década de oitenta quando o modelo do "wellfare state" entrou em colapso e as idéias liberais voltaram a dominar no campo político-econômico. Tanto é verdade que ao longo dos anos oitenta diversos países, desenvolvidos e em desenvolvimento, passaram por mudanças nos estatutos de seus Bancos Centrais no sentido de lhes outorgar maior autonomia de ação.

2. Aspectos jurídicos

A Constituição Federal de 1988 tratou, no seu artigo 192, de diversos aspectos relacionados ao sistema financeiro nacional. A questão da autonomia operacional do Banco Central do Brasil, veio com a LC 179/21 que "define os objetivos do Banco Central do Brasil e dispõe sobre a sua autonomia e sobre a nomeação e exoneração dos seus diretores; e altera o artigo da lei nº 5.495, de 31 de dezembro de 1964".

Importante ressaltar que o artigo 1º da LC 179/21, apesar de apresentar uma pluralidade de objetivos (zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível e atividade econômica e fomentar o pleno emprego), deixa claro que a função primeira é assegurar a estabilidade de preços. Tal ponto é relevante, pois no artigo 3º da Constituição da República constam como objetivos fundamentais os itens II) garantir o desenvolvimento nacional, e III) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Apesar da estabilidade monetária ser algo importante e, no longo prazo, ao menos do ponto de vista conceitual ser algo que leva a uma melhor condição de vida, especialmente para as camadas mais pobres, no curto prazo, para que se alcance a estabilidade da moeda pode-se ter uma piora da situação econômica e social, o que contrariaria os objetivos fundamentais da República, acima citados.

Para um aprofundamento e reflexão do que foi discutido no parágrafo anterior, vale a leitura do texto do professor Lênio Streck, no qual ele indaga se a autonomia do Banco Central é compatível com a Constituição (Streck, 2023). Aliás, o tema foi objeto de apreciação do Supremo Tribunal Federal, em 2021, quando foi decidido por oito votos a dois pela constitucionalidade da lei complementar (LC 179/21). A discussão não foi na linha levantada pelo professor Streck, mas sim na de que a lei sofria de vício de iniciativa por ter sido proposta pela Câmara dos Deputados e não pelo Executivo.

3. Aspectos econômicos

Para a literatura majoritária, no campo econômico, um maior grau de autonomia operacional de um Banco Central traz como aspectos positivos a maior credibilidade na condução da política monetária, orientada para o médio e longo prazo, com um menor grau de interferência política. Em contrapartida, os objetivos e mecanismos de atuação do Banco Central devem ser claramente colocados e suas ações necessitam mostrar-se transparentes para a sociedade.

Um modelo de independência deve abranger, basicamente, os seguintes aspectos:

  1. Mandato por prazo determinado para sua diretoria;
  2. Objetivo estatutário claramente definido e o mais restrito possível (manter a estabilidade da moeda);
  3. Limitação ao financiamento direto ao Tesouro;
  4. Sólido mecanismo de accountability;
  5. Autonomia financeira em relação ao Governo. (Swinburne & Castello-Branco, 1992)

A grande vantagem da autonomia dos Bancos Centrais, nas palavras de FRY (1993) é que com a autonomia elimina-se, ou ao menos minimiza-se a incongruência temporal entre o ciclo político e o ciclo econômico. O ciclo político é de curto prazo, com eleições de quatro em quatro anos (senão de dois em dois); o ciclo econômico, por sua vez, é de médio e longo prazo. Assim, o esforço de estabilidade macroeconômica, com controle da inflação, pode exigir ajustes de longo prazo, o que irá conflitar com os interesses políticos de curto prazo. Nessa visão, o objetivo de estabilidade da moeda, de controle inflacionário acaba sendo visto como algo mais importante a ser buscado.

Um ponto a ser observado é que um maior grau de autonomia dos Bancos Centrais, nos países em desenvolvimento acabou sendo, ainda que de forma indireta, imposto, quer seja por organismos multilaterais como o Fundo Monetário Internacional, quer seja por empresas de rating, que viam num maior grau de autonomia dos Bancos Centrais, a garantia de políticas monetárias mais sustentáveis, com maior estabilidade para os países, no longo prazo. A esse respeito vale à pena ver os artigos de GRILLI et. al. (1991) e Arnone et. al. (2006).

4. Aspectos políticos

Fazendo o gancho com o item anterior temos um problema em potencial a ser resolvido. A magnitude do problema vai variar de país para país, em função do seu nível de desenvolvimento, do seu nível de renda, e do suporte estatal oferecido em áreas essenciais. Ora, o objetivo de estabilidade da moeda (controle da inflação) é de longo prazo. Para atingi-lo pode ser necessário a adoção de uma política monetária mais contracionista, com alta das taxas básicas de juros. Percebe-se claramente que o ônus é no presente, em troca de um bônus no futuro. Como dito, anteriormente, em países ricos, com renda elevada. Uma retração econômica para que se ajuste a taxa de inflação terá um impacto muito diferente do mesmo tipo de ajuste num país pobre, com uma renda extremamente desigual.

Cabe, portanto, uma análise do impacto político de decisões deste tipo. Está é a razão pela qual é de fundamental importância uma ampla discussão na sociedade acerca da concordância com a autonomia operacional do Banco Central, bem como a sua extensão, os seus limites. Uma das críticas que se ouve é que se trata de muito poder, concedido a quem não teve nenhum voto e que, no limite, tem autonomia para decidir o rumo a ser tomado (em política monetária), sem ouvir quem foi eleito com a maioria dos votos.

5.  Considerações finais

Um primeiro ponto que precisa ficar claro é que um Banco Central autônomo equivale a dizer que a instituição recebeu um mandato explícito da sociedade no sentido de preservar a estabilidade da moeda acima de qualquer outra prioridade - tal como crescimento econômico, geração de empregos. Deste modo, é preciso ter bastante transparente o modelo de Banco Central que se pretende, e o custo de se buscar a estabilidade monetária. Por outro lado, parece bastante evidente, pelos diversos estudos já realizados, que do ponto de vista da estabilidade macroeconômica, quanto maior for o grau de independência do Banco Central, maior será a sua possibilidade de sucesso.

Outro aspecto muito relevante a ser considerado é que a independência, a autonomia, de um Banco Central, não é algo a ser instituído por decreto. Na realidade, a busca da autonomia adequada a determinado país, em dado momento, faz parte de um processo de amadurecimento lento, gradual,  e deve ser precedida de intensa discussão  e participação da sociedade até que se defina o padrão adequado, lembrando-se que não existe independência plena, absoluta entre a autoridade monetária e o Governo, uma vez que além dos canais formais existem os canais informais que permitem ao Governo influenciar, em maior ou menor escala,  na condução da política monetária. Este me parece um ponto que não foi observado no caso brasileiro. Não houve uma ampla e efetiva discussão, em todas as instâncias e entidades representativas da sociedade.

O grau de autonomia de um Banco Central depende, portanto, de fatores específicos tais como quadro macroeconômico, organização política, grau de conscientização e participação da sociedade, além do grau de organização do sistema financeiro, dentre outros. Deve ficar claro também que a independência em relação ao governo não é condição necessária nem suficiente para garantir a existência de um Banco Central forte e atuante, capaz de garantir a estabilidade da moeda e a solidez do sistema financeiro, mas nem por isso deixa de ser importante buscá-la (Erb, 1989).

Um ponto a considerar é que não se deve ter em mente que o Governo (Executivo) não busque a estabilidade de preços. O Governo quer sim a estabilidade da moeda, ele a busca como qualquer um. O que ocorre é que em determinadas circunstâncias o Governo pode ser levado a buscar mais enfaticamente outros objetivos de curto prazo, não menos nobres, como o crescimento, a geração de empregos, em detrimento da estabilidade da moeda. Como o Governo é um ente político, que é cobrado, via eleições, no curto prazo, entre buscar a estabilidade da moeda como objetivo de longo prazo, com frutos a serem colhidos no longo prazo, e buscar o crescimento econômico, com frutos no curto prazo, ainda que com sacrifício da meta de longo prazo (estabilidade), o Governo, com razão, do ponto de vista puramente prático, de sobrevivência política, fica com o curto prazo.

É necessário, todavia, perceber que a independência em termos formais nem sempre se reflete da mesma forma, com a mesma intensidade, na esfera real. Entre o formal e o real deve-se buscar o possível, levando-se em conta as especificidades da economia, do grau de desenvolvimento econômico e social, além da forma de relacionamento dos diversos agentes sociais (Pandeló,1995).  

Para concluir, vale a pena refletir que a independência do Banco Central do Brasil não será a solução para todos os problemas da economia, para os males do país, não será o que levará a estabilidade instantânea dos preços. A conquista de um maior grau de autonomia por parte do Banco Central é apenas um passo em busca da disciplina fiscal e monetária, da estabilidade econômica, tendo-se em vista o longo prazo. É fundamental que em contrapartida a autonomia exista um forte mecanismo de prestação de contas, até como forma de legitimar as ações praticadas pelo Banco Central e imunizá-lo, dentro do possível, de pressões políticas.

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ARNONE, Marco, LAURENS, Bernard, and SEGALOTTO, Jean-François. Measures of Central Bank Autonomy: Empirical Evidence from OECD, Developing and Emerging Markets Economies. International Monetary Fund Working Paper. IMF WP06228, 2006.

ERB, Richard - O Papel dos Bancos Centrais. Finanças & Desenvolvimento. FMI/BIRD, dez. 1989.

FRY, Maxwell - The Fiscal Abuse of Central Banks. IMF Working Paper. 1993.

GRILLI, V. MASCIANDARO, D., and TABELLINI, G. Political and Monetary Institutions and Public Financial Policies in the Industrial Countries. Economic Policy, vol. 13, 1991.

MACHADO, Regina Maria Arruda Bastos - Bancos Centrais - Banco Central do Brasil. BACEN/CFP, 1993.

PANDELÓ, Domingos R. Jr. - Considerações Sobre a Independência do Banco Central do Brasil. Revista Pensando o Brasil, Ano III, N. 11. USP, 1995.

STRECK, Lenio Luiz. A Autonomia do Banco Central é Compatível com a Constituição? Consultor Jurídico, 16/02/2023.

SWINBURNE, Mark & CASTELO-BRANCO, Marta - Bancos Centrais Autônomos. Finanças & Desenvolvimento. FMI/BIRD, mar.1992.

Domingos Rodrigues Pandelo Junior

VIP Domingos Rodrigues Pandelo Junior

Graduado e mestre pela FGV/SP. Doutor pela Unifesp. Especialista em direito empresarial e público (IBMEC) e em Holding Familiar ( Verbo Jurídico). Experiência em M&A.

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