MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. O Tribunal do Júri não é (e nem pode ser) instituição infensa a críticas

O Tribunal do Júri não é (e nem pode ser) instituição infensa a críticas

Embora goze de natureza jurídico-constitucional de cláusula pétrea, o Tribunal do Júri precisa ser repensado e aperfeiçoado no Brasil.

domingo, 9 de julho de 2023

Atualizado em 7 de julho de 2023 14:55

Por ocasião do julgamento da (in) constitucionalidade da tese da legítima defesa da honra nos casos de feminicídios, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, fez um apelo à Frente Parlamentar Feminina: que se movimentasse e apresentasse uma proposta de Emenda à Constituição para extinguir o Tribunal do Júri no Brasil.

A fala contundente do ministro repercutiu na comunidade jurídica, que se dividiu entre críticas e apoios ao posicionamento do magistrado.

Essa, no entanto, não foi a primeira vez que o ministro Dias Toffoli desvelou o seu descontentamento com o Tribunal do Júri, que entende ser uma "instituição disfuncional."

De início, é importante que se destaque que a manifestação veemente do ministro não enfrenta aspecto de inequívoca relevância para uma discussão minimamente ponderada e virtuosa sobre o tema do Júri Popular.

Por gozar de natureza jurídico-constitucional de cláusula pétrea, a teor do art. 60, §4º, inciso IV da Constituição da República, a instituição do Tribunal do Júri integra núcleo temático intangível e, consequentemente, imune à ação revisora do Parlamento. As limitações materiais explícitas inscritas no §4º do art. 60 da Constituição incidem direta e decisivamente sobre o poder reformador outorgado ao Legislativo.

O Júri Popular, portanto, compõe núcleo constitucional cuja irreformabilidade, acaso desrespeitada, legitimaria o respectivo controle jurisdicional normativo abstrato.

Isso não significa, contudo, que estejamos diante de Instituição infensa a críticas que visam a aprimorar o sistema de justiça criminal e a aperfeiçoar a estrutura de proteção dos direitos e garantias individuais.

Aliás, são extremamente salutares as reflexões doutrinárias sobre os problemas procedimentais e processuais que se verificam na prática do Júri, sendo certo que o papel da comunidade jurídica também envolve a formulação e proposição de ideias e de pensamentos sobre o papel constitucional e os impactos das normas jurídicas na sociedade.

Veja-se, a propósito, que o procedimento especial do Tribunal do Júri, desde a promulgação da Constituição de 1988, passou apenas por uma reforma estruturante, ocorrida em 2008, que, malgrado tenha trazido alguns avanços, deixou de enfrentar questões essenciais à funcionalidade técnica dos julgamentos populares.

Certamente, o maior problema do Tribunal do Júri diz respeito à falta de fundamentação das decisões exaradas pelos jurados. Como é cediço, os jurados decidem pela famigerada "íntima convicção" e, portanto, não são obrigados a declinar a motivação dos seus convencimentos.

Basicamente, no Brasil, o jurado decide como quer.

Numa democracia constitucional de que derive um processo penal de matiz acusatório, a fundamentação das decisões judiciais afigura-se como princípio elementar constituidor de normatividade.

A íntima convicção, nesse cenário, não goza de assento constitucional e, por imperativo lógico-sistemático, haveria de ser extirpada da ordem jurídico-processual penal, por não sujeitar a decisão proferida a um controle de sua respectiva racionalidade jurídica. 

A exigência de um padrão epistêmico mínimo de fundamentação das decisões dos jurados, inclusive, não esbarraria em nenhuma das características imutáveis do Tribunal do Júri, inseridas no art. 5º, inciso XXXVIII da Constituição.  

O modelo do Júri em outras democracias ocidentais, como a francesa e a portuguesa, exige dos jurados a fundamentação das decisões, com uma formação híbrida (escabinato) do conselho de sentença, entre juízes leigos e togados, que são incumbidos de analisar não só a matéria de fato, mas também de direito.

Outro problema fundamental do Júri Popular no Brasil é o da (não) apreciação da prova pelos julgadores leigos. Os jurados não conhecem o Direito, não conhecem o processo e não compreendem as premissas racionais de valoração da prova.1

Vale dizer, os jurados carecem de conhecimento dogmático mínimo para a realização de juízos axiológicos que envolvem a análise da norma penal e processual aplicável e uma razoável valoração da prova.  

Justamente a prova, de inexorável função persuasiva, destinada à consecução do convencimento psicológico do juiz.2 Em resumo, o processo penal tem finalidade retrospectiva, em que, através das provas, pretende-se criar condições para a atividade recognitiva do juiz acerca de um fato passado, sendo que o saber decorrente do conhecimento desse fato legitimará o poder contido na decisão.3

Também merecem ressalvas a teatralidade, a espetacularização e o aspecto catártico do Tribunal do Júri, características que tendem a favorecer a acusação em detrimento da defesa e dos direitos fundamentais dos acusados.

Nos casos em que se verifica uma exploração midiática opressiva, o processo penal, em especial os processos de competência do Júri Popular, sofre profunda transformação: de instrumento de racionalização do poder punitivo à ferramenta de entretenimento, galvanizada por enredos construídos com a finalidade de impor sofrimentos aos acusados e a confirmar a hipótese acusatória, não havendo espaços para a garantia de direitos fundamentais.

Evidentemente, os jurados são mais suscetíveis a pressões externas e ignoram, não por má-fé, mas por desconhecimento, as dimensões racionais do processo penal, assumindo como verdade a hipótese descrita na denúncia e encampada ao longo do feito pelo Ministério Público.

A defesa, nesse contexto de hostilidade e de espetacularização, assume papel de antagonista, cuja pretensão, aos olhos dos jurados, seria a impunidade do criminoso e não a estrita observância aos valores do devido processo e do Estado de Direito. 

Por derradeiro, importa salientar a natureza bipartida do procedimento especial para julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

O procedimento do Júri é escalonado, bipartindo-se em duas fases: a da admissibilidade da acusação, conduzida por um juiz togado, e do julgamento meritório da causa pelo conselho de sentença.

Originalmente, o sistema foi concebido para que se estabelecesse um mecanismo de filtragem e de verificação dos fatos imputados pela acusação. Nesse sistema, na fase da admissibilidade da acusação, o juiz togado é incumbido de valorar as provas produzidas e determinar se há ou não lastro probatório mínimo (indícios de autoria e prova da materialidade delitiva) para o julgamento do caso pelos jurados.

Todavia, o que se tem observado na prática forense é que os magistrados togados, sob o cômodo argumento da não usurpação da competência constitucional do Tribunal do Júri, têm se eximido, inclusive, de analisar questões exclusivamente jurídicas, invocando, não raras vezes, brocardos vazios não respaldados pela ordem jurídica vigente, como o "In dubio pro societate", para submeter, indiscriminadamente, os casos penais à análise dos jurados.

A primeira fase do procedimento do Júri fora pensada, justamente, para que houvesse um controle técnico efetivo das imputações, sendo do Poder Judiciário a palavra final sobre questões eminentemente jurídicas, e não dos jurados, leigos em Direito, sob pena de inseguranças, incertezas e discrepâncias judiciais.

Ademais, a disfuncionalidade referida pelo ministro Toffoli guarda estreita relação com a duração dos processos de competência do Júri Popular.

Dados do Conselho Nacional de Justiça, obtidos através de Grupo de Trabalho liderado pelo Ministro Rogério Schietti Cruz, revelaram, em 2019, que os processos que já foram baixados tiveram um tempo de duração de, aproximadamente, seis anos, enquanto os casos pendentes tramitam, em média, há sete anos. O maior tempo de duração dos processos está em São Paulo, com média dos casos baixados de treze anos e 80% dos casos tramitando há mais de oito anos.4

A Constituição da República não impede uma remodelação do Tribunal do Júri, desde que assegurados os seus princípios básicos da plenitude de defesa, da soberania dos veredictos, do sigilo das votações e resguardada a sua competência.

Em nome de um processo penal democrático de viés liberal, compatível com as diretrizes esposadas no texto da Constituição, impõe-se que repensemos e aperfeiçoemos o Tribunal do Júri no Brasil, a fim de que a justiça seja otimizada e que valores republicanos sejam concretizados.

------------------------------

1 Lopes Jr. Aury. Direito Processual Penal. 12 Ed. São Paulo: Saraiva, 2015. P. 853.

2 Aragoneses Alonso, Pedro. Instituciones de Derecho Procesal Penal. 5 Ed. Madrid. Editorial Rubí Artes Gráficas, 1984. P. 251

3 Lopes Jr. Aury. Direito Processual Penal. 12 Ed. São Paulo: Saraiva, 2015. P. 354.

4 https://www.migalhas.com.br/quentes/317006/anteprojeto-de-lei-preve-mudancas-para-otimizar-tribunal-do-juri

João Pedro de Moura Dourado Guerra

João Pedro de Moura Dourado Guerra

Advogado criminalista, sócio do escritório Brasílio Guerra Advogados, especialista em Ciências Criminais e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca