Uniformização jurisprudencial ao redor do país acerca da legalidade das plataformas eletrônicas de negociação de dívidas
Pelo que se observa, a instauração dos referidos incidentes, tendência esperada de outros tribunais pátrios, constitui medida acertada pois viabiliza a participação democrática da sociedade na definição de teses tão relevantes e com grande impacto na sociedade.
terça-feira, 11 de julho de 2023
Atualizado às 09:26
As plataformas eletrônicas de negociação de dívidas, tais como "Serasa Limpa Nome" e "Acordo Certo", constituem meios virtuais de aproximação do credor e devedor, aliados da Política Nacional das Relações de Consumo, cuja finalidade é facilitar o pagamento de dívidas (sejam elas prescritas ou não) com vários benefícios, incluindo deságios e opções de parcelamento.
As propostas de negociação apresentadas nas plataformas apenas podem ser visualizadas pelo próprio consumidor que, se optar por acessá-las, deverá criar login e senha intransferíveis. Uma vez inscrito voluntariamente na plataforma, o consumidor poderá aceitar os acordos ofertados pelos fornecedores, como também poderá se descadastrar, ignorando as informações disponibilizadas, sem quaisquer penalidades.
Considerando sua finalidade, o sigilo das negociações e a ausência de prejuízos na desconsideração das propostas, as plataformas em comento não constituem banco de dados negativo (cadastros de inadimplentes) e nem forma de cobrança. Ou seja, as plataformas de negociação apenas conectam consumidores e fornecedores de qualquer parte do país, permitindo a quitação vantajosa, rápida e sigilosa de dívidas de forma remota.
Trata-se, evidentemente, de mecanismo importante no contexto atual marcado pela busca da desjudicialização, composição amigável e novas formas de resolução de conflitos, o que inclui a utilização crescente de Online Disupute Resolution (ODR), que nada mais é do que o emprego de tecnologia na composição extrajudicial de conflitos.
Em que pese as referidas características, diversos consumidores têm ajuizado ações ao redor do país em face dos fornecedores que utilizam as plataformas, alegando, em síntese, que estas se equiparam aos cadastros de inadimplentes e que a inserção de dívidas prescritas nas plataformas seria ilícita - em que pese o STJ1 já ter reconhecido que a prescrição fulmina apenas a pretensão e não o direito subjetivo em si, sendo possível a cobrança extrajudicial de dívidas prescritas.
Diante da multiplicidade de ações e da existência de decisões divergentes sobre o assunto, observa-se uma crescente instauração de incidentes processuais voltados à pacificação da jurisprudência em diversos Estados, o que inclui Incidentes de Uniformização de Jurisprudência (medida cabível no microssistema dos juizados especiais - "IUJ") e Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas ("IRDR").
O primeiro Tribunal a admitir um Incidente para pacificar as matérias em comento foi o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ/RS). Por meio do IRDR 0032928-62.2021.8.21.7000, cujo julgamento foi encerrado em 11 de outubro de 2022, o TJ/RS entendeu, sobretudo, que é legal a inclusão de dívidas prescritas nas plataformas eletrônicas de negociação e que inexiste dano moral em razão da inclusão de dívida prescrita nas plataformas. Veja-se a ementa do julgado:
"INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS - IRDR. AÇÃO DECLARATÓRIA DE DÍVIDA PRESCRITA CUMULADA COM PEDIDO INDENIZATÓRIO POR DANOS MORAIS.
A AÇÃO ENVOLVE O SERVIÇO DISPONIBILIZADO PELA EMPRESA SERASA, CHAMADO "SERASA LIMPA NOME" QUE NEGOCIA DÍVIDAS VENCIDAS HÁ MAIS DE CINCO ANOS.
OBJETO DO INCIDENTE: (I)LEGITIMIDADE PASSIVA DA SERASA EXPERIAN S.A.; (IN)EXIGIBILIDADE DA DÍVIDA EM DECORRÊNCIA DA PRESCRIÇÃO; E - (NÃO) DEFLAGRAÇÃO DE DANOS MORAIS.
TESES DEFINIDAS:
1) RECONHECIDA A LEGALIDADE DA INCLUSÃO, NO SERVIÇO "SERASA LIMPA NOME", DE DÍVIDAS PRESCRITAS;
2) AUSENTE DIREITO A INDENIZAÇÃO PELO ALEGADO ABALO MORAL SOFRIDO PELA PARTE DEVEDORA QUE TEVE SUA DÍVIDA PRESCRITA INCLUÍDA NA PLATAFORMA DE NEGOCIAÇÃO.
3) DECLARADA A ILEGITIMIDADE DA EMPRESA SERASA PARA RESPONDER DEMANDAS QUE ENVOLVAM A (IN)EXISTÊNCIA OU VALIDADE DO CRÉDITO PRESCRITO INCLUÍDO NA REFERIDA PLATAFORMA.
(...)".
Na sequência, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJ/RN) também admitiu um IRDR, 0805069-79.2022.8.20.0000, abordando, preliminarmente, uma questão processual: considerando que nas situações analisadas as dívidas prescritas não estão sendo cobradas (não há exigência de pagamento pelos credores), inexiste pretensão resistida/lide e, portanto, o consumidor não possui interesse de agir. Adentrando ao mérito, em consonância com o TJ/RS, o TJ/RN entendeu que a prescrição fulmina o exercício do direito de ação e não o direito subjetivo em si. Veja-se a ementa do julgado:
"DIREITO CIVIL E PROCESSUAL. INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS - IRDR. TEMA 9/TJ/RN. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. INSCRIÇÃO NA PLATAFORMA 'SERASA LIMPA NOME'. DÍVIDA PRESCRITA HÁ MAIS DE CINCO ANOS. CONTROVÉRSIA ACERCA DA POSSIBILIDADE DE RECONHECER A PRESCRIÇÃO COMO OBJETO AUTÔNOMO DO EXERCÍCIO DO DIREITO DE AÇÃO.
TESE FIXADA:
1) É INADMISSÍVEL INCLUIR O RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO NO ROL DOS PEDIDOS FORMULADOS NA AÇÃO.
2) PRESCRIÇÃO, QUANDO HÁ, FULMINA O EXERCÍCIO DO DIREITO DE AÇÃO. AUSENTE, NO CASO, O INTERESSE PROCESSUAL DO AUTOR.
3) NECESSIDADE DE EXAME DA RELAÇÃO DE DIREITO MATERIAL QUANDO DO RECONHECIMENTO DA FALTA DE INTERESSE PROCESSUAL OU DE AGIR, SENDO INÚTIL, NA ESPÉCIE, EXTINGUIR O PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO.
4) PREJUDICADA A ANÁLISE DAS QUESTÕES ALUSIVAS À ALEGADA INEXIGIBILIDADE DA DÍVIDA; EXCLUSÃO DO REGISTRO NO CADASTRO "SERASA LIMPA NOME"; E PRETENSÃO INDENIZATÓRIA POR DANOS MORAIS. SUCUMBÊNCIA EXCLUSIVA DA PARTE AUTORA.
(...)."
Além dos Incidentes acima, no âmbito do Juizado Especial Cível Estadual do Amazonas (JEC-AM), foi instaurado IUJ (processo 0003543-23.2022.8.04.9000), cujo mérito foi julgado no dia 1º de junho de 2023. A turma de Uniformização entendeu majoritariamente que (i) as plataformas de negociação de dívidas não se confundem com cadastros de inadimplentes; (ii) a apresentação de propostas de negociação de dívidas prescritas nessas plataformas é legítima e não configura indevida restrição de crédito, já que não há qualquer impacto no score do consumidor; e, por conseguinte, (iii) a negociação e dívidas prescritas nas plataformas não configura ato ilícito ensejador de dano moral. Veja-se a ementa do julgado:
"INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. DIREITO DO CONSUMIDOR. PLATAFORMA DE NEGOCIAÇÃO DE DÍVIDAS. NATUREZA DIVERSA DE ÓRGÃO DE PROTEÇÃO AO MERCADO DE CONSUMO. INSTRUMENTO QUE SE PRESTA TÃO SOMENTE À INTERMEDIAÇÃO DE ACORDO ENTRE CREDORES E DEVEDORES. REGISTROS QUE NÃO SE CONFUNDEM COM NEGATIVAÇÃO. REFLEXOS NO CREDIT SCORE. INEXISTÊNCIA. AUSÊNCIA DE CONSEQUÊNCIAS GRAVOSAS AO CONSUMIDOR. IRREGULARIDADE NÃO VERIFICADA. AUSÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO.
- A celebração de contratos lato sensu depende de uma avaliação recíproca de idoneidade da outra parte e de sua capacidade financeira de adimplir as obrigações contraídas no negócio jurídico realizado.
- Essa avaliação de risco depende dos instrumentos de proteção ao crédito, isto é, arquivos de consumo, que se dividem em bancos de dados negativos - cadastros de devedores, em que as informações de débito são um fim em si mesmo, e bancos de dados positivos - instituídos pela Lei do Cadastro Positivo (lei 12.414/12), que compilam o histórico de adimplência e os compromissos financeiros do consumidor a fim de atender ao interesse comercial ou futuro, com informações diretas e particularizadas em relação ao indivíduo cadastrado.
- A prescrição ilide tão somente a exigibilidade do crédito por meios coercitivos, não suprimindo a sua existência e a possibilidade de oferta de pagamento, desde que razoável e sem abusividade, para adimplemento voluntário do consumidor.
- Considerando-se as premissas sobreditas, fixaram-se as seguintes teses:
- Primeira tese: As plataformas de negociação de dívidas não possuem a mesma natureza dos instrumentos de proteção ao mercado de consumo, i.e., dos serviços de proteção ao crédito, e os registros delas constantes não configuram negativação - inscrição em cadastros ou banco de dados desabonadores do histórico do consumidor para fins de análise de risco - não estando sujeitos, portanto, ao prazo do art. 43, §1º da lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) desde que respeitados o sigilo das informações e a ausência de coerção para aderir às propostas.
- Segunda tese: A inserção de registro de dívidas prescrita sem plataformas de negociação é legítima e não configura indevida restrição de crédito, por não afetar o credit score do consumidor.
- Terceira tese: O registro de débito, mesmo prescrito, em plataformas eletrônicas de negociação de dívida, não configura ato ilícito ensejador de dano moral e, portanto, da correspondente reparação.
- Incidente de uniformização de jurisprudência".
Por fim, importante esclarecer que também foi instaurado IRDR perante o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (processo 1844426-44.2022.8.13.0000), envolvendo plataformas eletrônicas de negociação de dívidas e cobrança extrajudicial de dívida prescrita, que já foi admitido e aguarda julgamento de mérito.
Pelo que se observa, a instauração dos referidos incidentes, tendência esperada de outros tribunais pátrios, constitui medida acertada pois, ao ampliar o debate em torno das matérias controvertidas, viabiliza a participação democrática da sociedade na definição de teses tão relevantes e com grande impacto na sociedade. Além disso, confia-se que os demais tribunais, que ainda não uniformizaram suas jurisprudências sobre as matérias em comento, sigam o mesmo entendimento já adotado pelo TJ/RS, TJ/RN e JEC/AM, em prol da segurança jurídica nacional e do melhor direito, e considerem em suas decisões a licitude das plataformas de negociação de dívidas e sua importância para o meio social e econômico.
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1 AgInt no AREsp 1.592.662/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 31/8/20, DJe de 3/9/20; REsp 1.694.322/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 7/11/2017, DJe de 13/11/2017; e AgInt no AREsp 1587949/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 21/09/2020, DJe 29/09/20.
Luiz Virgílio P. Penteado Manente
Advogado.
João Miguel Gava Filho
Advogado.
Harumi P. Hioki
Advogado.