A tributação excessiva do ICMS sobre os absorventes como forma de discriminação de gênero
A tributação incidente sobre os absorventes vem sendo considerada umas das principais fontes de discriminação de gênero perpetrada pela legislação tributária, sendo um tema questionado mundialmente pelo movimento feminista, visto que se trata de um item essencial que utilizado somente por uma parcela da sociedade.
quarta-feira, 5 de julho de 2023
Atualizado às 08:53
A tributação incidente sobre o consumo vem sendo considerada a principal fonte de discriminação de gênero perpetrada pela legislação tributária, sendo um tema questionado mundialmente pelo movimento feminista. Dentre as matizes debatidas, vem se destacando recentemente na América Latina o intitulado "Tampon Tax", termo utilizado para se referir à tributação incidente sobre os absorventes higiênicos e outros produtos afins, visto que tais produtos são usados exclusivamente por pessoas menstruantes, servindo a uma necessidade biológica essencial, razão pela qual a tributação sobre eles é vista como injusta e discriminatória 1.
O Brasil é um dos países do mundo que mais tributa absorventes (PISCITELLI, 2019)2. Apesar de possuírem alíquota zero de Impostos sobre Produtos Industrializados (IPI), estes itens têm se sujeitado a uma tributação média de 34,48%, de acordo como Impostômetro da Associação Comercial de São Paulo - sendo considerada a alíquota entre 18% e 25% referente ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), 1,65% do Programa de Integração Social (PIS) e de 7,6% da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins).
Devido ao alto percentual apresentado, nos últimos anos movimentos sociais vêm cobrando que os poderes Judiciário, Legislativo e Executivo se posicionem de forma a garantir a isenção ou a alíquota zero para os absorventes. A hipótese apresentada é a de que, a redução ou a isenção dos impostos incidentes nos absorventes poderá ajudar a corrigir a desigualdade de gênero identificada, haja vista que o preço dos produtos pode ser reduzido.
Em razão dessas reivindicações, diversos países diminuíram as alíquotas incidentes sobre absorventes, tornando-os isentos de tributos (DIAMOND, 2020).
Exemplificando, o Quênia foi o primeiro país a suprimir a tributação sobre produtos de higiene menstrual; a Índia eliminou a taxa de 12% sobre os absorventes; a Alemanha retirou a taxação de 19% sobre absorventes. Já na América Latina, um exemplo é o caso colombiano. Em um evento realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC Minas em 20223, a professora Lina Maria Céspedes-Báes, narra que produtos de higiene menstrual estão na lista de isenção tributária, graças a um litígio promovido por um grupo de mulheres, chamado "Menstruacion livre de impuestos", junto à suprema corte colombiana. Na Colômbia, os absorventes e tampões são isentos de impostos desde 2018.
No Brasil, alguns estados vêm adotando essa mesma política em relação à tributação do ICMS, seguindo a autorização dada pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), através do Convênio ICMS 224/17, que autoriza aos Estados que a ele aderirem a concederem isenção do ICMS nas operações internas com produtos essenciais ao consumo popular que compõe a cesta básica, e do Convênio ICMS 187/21, que autoriza os Estados e Distrito Federal a isentar o ICMS nas operações realizadas com absorventes íntimos femininos, internos e externos, tampões higiênicos, coletores e discos menstruais, calcinhas absorventes e panos absorventes íntimos, NCM 9619.00.00, destinados a órgãos da Administração Pública Direta e Indireta Federal, Estadual e Municipal e a suas fundações públicas.
Exemplo são os estados do Rio de Janeiro que reduziu a alíquota para 7% (lei Estadual 8.924/20), o estado do Maranhão que reduziu para 12% (lei Estadual 11.527/21), o estado do Ceará que isentou esses itens de tributação (decreto 34.178/21) e o estado de São Paulo4 que garantiu a isenção do ICMS na venda de absorventes para os entes públicos (decreto 66.388/21).
No caso do estado de Minas Gerais, o Regulamento do ICMS (RICMS - decreto 48.589/23)5 prevê uma alíquota de 18% sobre as operações envolvendo absorventes higiênicos. A lei 6.763/756, por sua vez, traz, em seu art. 12, § 30, inciso III, a possibilidade de redução da alíquota para 12%, desde que autorizado pelo poder executivo. Porém, até o momento, não há nenhum registro da aplicação dessa previsão.
Já em relação ao IPI, mesmo que estes itens já possuam a tributação zerada, foi apresentado o PL 3.085/19 que pretende estabelecer a alíquota zero em texto de Lei como uma garantia de que o Poder Executivo não altere diretamente as alíquotas, considerando que o potencial de incidência do IPI limitaria o acesso de meninas e mulheres de baixa renda a tais bens, além de poder resultar em carga tributária diferenciada entre homens e mulheres.
Veja-se, portanto, que todas as iniciativas adotadas, expostas anteriormente, reforçam o caráter essencial do absorvente. Entretanto, como visto, essa essencialidade não é aplicada na prática, uma vez que a maioria dos estados brasileiros não considera o absorvente como um produto sanitário de primeira necessidade, classificando-o no grupo de cosméticos, perfumaria, artigos de higiene pessoal e de toucador, o que possibilita a incidência de alíquota do ICMS elevada e reforça a visão de que o absorvente se trata de um item supérfluo.
Considera-se essencial aquilo que é indispensável para garantir uma existência digna para todo ser humano7. Para reforçar esse entendimento, a Constituição Federal de 19888 prevê de forma expressa (art. 153, § 3º, I e 155, §2º, III) a seletividade em função da essencialidade para o ICMS, de forma que quanto mais essencial for o produto, a mercadoria ou o serviço, menor deverá ser a alíquota.
Para Danilevicz (2009)9, bem essencial não é só aquele que atende necessidades biológicas básicas do ser humano, mas também o exigível para assegurar a adequada integração social do cidadão, com observância mínima à dignidade humana. Portanto, para a autora, a essencialidade deve estar vinculada aos produtos que prestigiem o princípio da dignidade humana no contexto do mínimo existencial garantido.
Nessa esteira, de se destacar que o afastamento do caráter essencial e alta tributação incidente nos absorventes contribuem com um fenômeno chamado 'Pobreza Menstrual'. O termo refere-se à situação de vulnerabilidade e precariedade que as pessoas menstruantes estão sujeitas por não possuírem acesso adequado a itens de higiene pessoal, incluindo os absorventes e semelhantes. Já reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma questão de saúde pública, a pobreza menstrual é vivenciada por cerca de 12% da população mundial.
Um estudo10 publicado em maio de 2021, realizado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) em conjunto com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), denominado "Pobreza menstrual no Brasil: Desigualdades e violações de direitos", que faz uma análise do fenômeno no país, comprovou que as pessoas menstruantes não têm a possibilidade realizar de três a seis trocas diárias de absorventes, conforme indicação ginecológica.
Isso ocorre uma vez que uma família em situação de vulnerabilidade e com baixa rende tende a dedicar um percentual menor de seu orçamento para itens de higiene menstrual, dado que a prioridade é a alimentação e sobrevivência. O documento salienta que "(...) diante de uma situação de insegurança alimentar no domicílio, haverá prioridade para o consumo de alimentos em detrimento dos produtos para conter o fluxo menstrual.". Novamente reforçando o grande impacto exercido pelos absorventes no orçamento das famílias mais pobres.
Dessa forma, considerando que a menstruação é uma condição inevitável e involuntária, ou seja, trata-se de um fator biológico, as pessoas que menstruam que não possuem condições de arcar com a compra de absorventes e semelhantes tendem a buscar alternativas para manter o convívio social durante seu período menstrual, tendo sido reportado que essas pessoas fazem uso de soluções improvisadas para conter o sangramento menstrual com pedaços de pano usados, roupa velhas, jornal e até miolo de pão.
Buscando reparar estes problemas, em outubro de 2021 o ex-presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei Federal 14.214/2111, que instituiu o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual. A norma determina que estudantes dos ensinos fundamental e médio, mulheres em situação de vulnerabilidade e presidiárias recebam, de forma gratuita, absorventes para sua higiene pessoal.
Essa medida representa um avanço rumo ao combate da pobreza menstrual e segue a recomendação 21/20 feita pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), direcionada aos presidentes da República e do Congresso Nacional, sugerindo a criação de uma política nacional de superação da pobreza menstrual.
Por outro lado, caso as alíquotas do ICMS aplicadas sobre os absorventes se mantenham no mesmo patamar aplicado aos bens supérfluos, esse item continuará mais caro aos consumidores finais, pois o ICMS se trata de um tributo indireto, ou seja, é recolhido pelo fabricante/revendedor, contribuinte de direito, mas seu valor é embutido no custo do produto de modo a repercutir financeiramente no patrimônio de terceiro adquirente final (contribuinte de fato).
Tendo isso em vista, não deveria ser uma tarefa difícil reconhecer a essencialidade dos absorventes para as pessoas que menstruam, sendo o meio mais comum para possibilitar o convívio social durante o ciclo menstrual.
Sendo assim, não restam dúvidas de que as questões fiscais afetam diretamente no índice de pobreza menstrual no Brasil, sendo necessária a realização de políticas tributárias que ofereçam oportunidade de trazer foco para o problema de como efetivar os direitos humanos. Nesse sentido, urge a criação e efetivação de políticas fiscais que visem à garantia dos direitos fundamentais das mulheres, sendo concretizada por meio da desoneração ou mitigação da carga tributária dos absorventes, principalmente em relação ao ICMS, que representa a maior carga tributária para o item atualmente.
---------
1 Aqui usaremos o termo 'pessoas menstruantes' para representar mulheres, pessoas do sexo feminino e membros da comunidade LGBTQIA+ (pessoas trans, intersexo e não-binárias) que passam pelo ciclo menstrual.
2 PISCITELLI, Tathiane. Tributação de gênero no Brasil. Valor Econômico. São Paulo, 01 de ago. de 2019. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/fio-da-meada/post/2019/08/tributacao-de-genero-no-brasil.ghtml. Acesso em 12 de jan. de 2022.
3 SILVA, Lívia Maria Lucca. A potência simbólica da tributação como instrumento de empoderamento feminino: um olhar à luz da Teoria da Encriptação do Poder / Lívia Maria Lucca Silva. Belo Horizonte, 2022. 133 f. : il. Orientadora: Marinella Machado Araújo Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito.
4 PODER360. SP zera ICMS para compra de absorventes por mulheres pobres. Poder360, 30 de dez. de 2021. Disponível em: https://www.poder360.com.br/governo/sp-zera-icms-para-compra-de-absorventes-por-mulheres-pobres/. Acesso em 11 de jan. de 2022.
5 MINAS GERAIS. RICMS 2023. Regulamento do Imposto Sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias
e Sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual
e Intermunicipal e de Comunicação. Secretaria do Estado de Fazenda, 2022. Disponível em: http://www.fazenda.mg.gov.br/empresas/legislacao_tributaria/ricms_2002_seco/sumario2002.html. Acesso em 20 de jan. de 2022.
6 MINAS GERAIS. Lei 6763, de 26 de dezembro de 1975. Consolida a Legislação Tributária do Estado de Minas Gerais e dá outras providências. Secretaria do Estado de Fazenda. Disponível em: http://www.fazenda.mg.gov.br/empresas/legislacao_tributaria/leis/l6763_1975_01.html. Acesso em 20 de jan de 2022.
7 MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
8 BRASIL. Constituição da República Federativa de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2022]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 15 de jan. de 2022.
9 DANILEVICZ, Rosane Beatriz J. O princípio da essencialidade na tributação. Direito tributário em questão. Revisa da FESDT/Fundação Escola Superior de Direito Tributário n. 3. Porto Alegre: FESDT, 2009. Disponível em: https://fesdt.org.br/docs/revistas/3/artigos/13.pdf. Acesso em 25 de jan. de 2022.
10 UNICEF. UNFPA. Pobreza Menstrual no Brasil: Desigualdades e violações de Direitos. Maio, 2021. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/media/14456/file/dignidade-menstrual_relatorio-unicef-unfpa_maio2021.pdf. Acesso em 15 de jan. de 2022.
11 BRASIL. Lei 14.214, de 06 de outubro de 2021. Institui o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual; e altera a Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, para determinar que as cestas básicas entregues no âmbito do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) deverão conter como item essencial o absorvente higiênico feminino. Brasília, DF, 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/Lei/L14214.htm#:~:text=L14214&text=Institui%20o%20Programa%20de%20Prote%C3%A7%C3%A3o,essencial%20o%20absorvente%20higi%C3%AAnico%20feminino. Acesso em 12 de jan. de 2022.