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Exigência de dolo de apropriação em crimes tributários - A mudança certeira

Ao exigir a prova do dolo de apropriação, resta fortalecido o princípio da legalidade estrita, que determina que a interpretação e aplicação das normas penais devem ser restritas aos termos expressos na legislação.

terça-feira, 4 de julho de 2023

Atualizado às 14:00

Por muito tempo, quando falávamos em crime de apropriação indébito, a orientação do Superior Tribunal de Justiça - seguida por todas as Cortes Estaduais - era de que para o referido delito não era necessário haver exigência de dolo específico, mas sim, apenas genérico para a configuração da conduta delitiva.

Mas afinal de contas, o que significa dolo genérico?

O dolo genérico é a vontade de praticar uma conduta, porém, sem uma finalidade específica. O dolo específico, por sua vez, é a vontade consciente de praticar a conduta com uma finalidade especial e específica; ou seja, dirigida a o fim de se apropriar indevidamente daqueles valores.

Hoje, portanto, sem essa comprovação específica da real vontade do agente de se apropriar de tais valores para si, não está mais configurado o crime de apropriação indébita tributária.

A intenção, consubstanciada no dolo de apropriação, tornou-se requisito para configuração do crime.

Vejamos o escólio do Supremo Tribunal Federal sobre o tema:

Direito penal. Recurso em Habeas Corpus. Não recolhimento do valor de ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço. Tipicidade. 1. O contribuinte que deixa de recolher o valor do ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço apropria-se de valor de tributo, realizando o tipo penal do art. 2º, II, da lei 8.137/90. 2. Em primeiro lugar, uma interpretação semântica e sistemática da regra penal indica a adequação típica da conduta, pois a lei não faz diferenciação entre as espécies de sujeitos passivos tributários, exigindo apenas a cobrança do valor do tributo seguida da falta de seu recolhimento aos cofres públicos. 3. Em segundo lugar, uma interpretação histórica, a partir dos trabalhos legislativos, demonstra a intenção do Congresso Nacional de tipificar a conduta. De igual modo, do ponto de vista do direito comparado, constata-se não se tratar de excentricidade brasileira, pois se encontram tipos penais assemelhados em países como Itália, Portugal e EUA. 4. Em terceiro lugar, uma interpretação teleológica voltada à proteção da ordem tributária e uma interpretação atenta às consequências da decisão conduzem ao reconhecimento da tipicidade da conduta. Por um lado, a apropriação indébita do ICMS, o tributo mais sonegado do País, gera graves danos ao erário e à livre concorrência. Por outro lado, é virtualmente impossível que alguém seja preso por esse delito. 5. Impõe-se, porém, uma interpretação restritiva do tipo, de modo que somente se considera criminosa a inadimplência sistemática, contumaz, verdadeiro modus operandi do empresário, seja para enriquecimento ilícito, para lesar a concorrência ou para financiar as próprias atividades. 6. A caracterização do crime depende da demonstração do dolo de apropriação, a ser apurado a partir de circunstâncias objetivas factuais, tais como o inadimplemento prolongado sem tentativa de regularização dos débitos, a venda de produtos abaixo do preço de custo, a criação de obstáculos à fiscalização, a utilização de laranjas no quadro societário, a falta de tentativa de regularização dos débitos, o encerramento irregular das suas atividades, a existência de débitos inscritos em dívida ativa em valor superior ao capital social integralizado etc. 7. Recurso desprovido. 8. Fixação da seguinte tese: O contribuinte que deixa de recolher, de forma contumaz e com dolo de apropriação, o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da lei 8.137/1990". ( RHC 163.334, Rel. Ministro ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 18/12/2019, DJe 12/11/2020; grifei)

No STJ, de igual modo, existem precedentes que aplicam exatamente o quanto foi firmado pelo STF. Veja-se:

"PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ART. 2º, II, DA LEI 8.137/1990. FALTA DE RECOLHIMENTO DO ICMS PRÓPRIO DECLARADO. DOLO DE APROPRIAÇÃO E CONTUMÁCIA NÃO CONSTATADOS PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. PRETENSÃO DE RESTABELECER A CONDENAÇÃO. INVIABILIDADE. ENTENDIMENTO FIRMADO PELO STF NO RHC 163.334/SC. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. 'O contribuinte que deixa de recolher, de forma contumaz e com dolo de apropriação, o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990' ( RHC 163.334/SC, Rel. Ministro ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 18/12/2019, DJe 12/11/2020; grifei). 2. Inexistindo demonstração, no acórdão recorrido, da contumácia e do dolo de apropriação, é inviável o restabelecimento da condenação. 3. Agravo regimental desprovido". ( AgRg no REsp n. 1.943.290/SC, de minha relatoria, QUINTA TURMA, julgado em 28/9/2021, DJe de 4/10/2021.)

Me parece que está encerrada, ao menos por enquanto, a era das decisões que afirmavam que o tipo penal estaria satisfeito com a simples omissão no recolhimento do tributo, sem a necessidade de comprovação do dolo de apropriação, o que por certo configurava verdadeiro absurdo, já que a falta de recolhimento pode ocorrer sem intenção criminosa por uma série de fatores, como erros na interpretação da complexa legislação tributária, preenchimento inadequado de guias, dificuldades financeiras entre outros.

Essa abordagem mais rigorosa por parte dos Tribunais Superiores é essencial para evitar a criminalização excessiva de condutas inadvertidas ou meramente negligentes. A compreensão de que o dolo de apropriação deve ser demonstrado contribui para evitar injustiças, garantindo que apenas aqueles que agiram de forma intencional para fraudar o fisco sejam responsabilizados criminalmente.

Além disso, ao exigir a prova do dolo de apropriação, resta fortalecido o princípio da legalidade estrita, que determina que a interpretação e aplicação das normas penais devem ser restritas aos termos expressos na legislação. Essa medida evita interpretações amplas e arbitrárias, assegurando a segurança jurídica e o respeito aos direitos dos cidadãos.

No âmbito prático, a exigência também contribui para direcionar os esforços das autoridades competentes para casos mais relevantes, em que há evidências claras de má-fé e intenção criminosa. Dessa forma, recursos e energia são direcionados de forma mais eficiente, fortalecendo o combate à sonegação fiscal e à corrupção.

Tainah Lasmar Leon

Tainah Lasmar Leon

Advogada especialista em Direito Penal Empresarial. Foi Assessora Jurídica do Ministério Público do Estado de Mato Grosso por mais de uma década. Atuou no GAECO e em outros núcleos sensíveis.

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