"Tributo" indireto às mulheres
Apesar de a população feminina ser maioria no país, na política ainda tem uma baixa representação.
sexta-feira, 30 de junho de 2023
Atualizado às 14:10
A tributação indireta é aquela que incide sobre o valor embutido no preço final do produto. Os tributos indiretos são os que mais oneram os contribuintes de fato, exatamente porque incidem sobre o consumo, como, por exemplo, o IPI (Imposto sobre produtos industrializados) e o ICMS (Imposto sobre circulação de mercadorias e serviços). Isso porque tais encargos tributários são repassados aos consumidores finais.
A tributação indireta gera uma regressividade porque fomenta as desigualdades de gênero, tendo em vista o seu caráter anti-isonômico, ou seja, quando o consumidor final de uma mercadoria possui um poder aquisitivo elevado, a tributação é quase indolor, tendo em vista a sua capacidade econômica. Por outro lado, a grande polêmica existe quando tal consumidor é uma mulher de baixa renda que adquire produtos necessários para sua subsistência e higiene pessoal.
Não é difícil compreender esse fenômeno. Os impostos sobre consumo, por serem considerados regressivos, influenciam de forma negativa as questões relacionadas à desigualdade de gênero, exatamente porque oneram principalmente a camada mais pobre da sociedade, mais propensa a despender suas rendas com consumo.
Para ilustrar essa evidência, a partir da análise de dados da POF do IBGE (Pesquisa de Orçamentos Familiares do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2017-2018, enquanto os 10% mais pobres gastam 87% da sua renda em consumo, esse valor cai para 24% entre os que compõem o 1% mais rico (IBGE, 2019).
A FGV Social, em pesquisa publicada recentemente, verificou que a fatia atualmente que corresponde ao 1% da população mais rica do Brasil detém quase a metade da riqueza nacional (49,6%). Também é importante observarmos que os lugares do Brasil com mais renda do IRPF (Imposto de Renda Pessoa Física) por habitante são: por Unidade da Federação: 1.Brasília (R$ 3148) 2. São Paulo (R$ 2063) e 3. Rio de Janeiro (R$ 1754); Capitais: 1. Florianópolis (R$ 4215), 2. Porto Alegre (R$ 3775) e Vitória (R$ 3736); Municípios acima de 50 mil habitantes: 1. Nova Lima na Grande BH (R$ 8897), 2. Santana do Parnaíba/SP (R$ 5791), 3. São Caetano do Sul (R$ 4698), 4. Florianópolis, 5. Niterói (R$ 4192), 6. Santos (R$ 3783).
Por outro lado, a referida pesquisa também demonstrou que a Unidade da Federação com a menor declaração de patrimônio por habitante é o Maranhão (R$6.3 mil). No outro extremo está o Distrito Federal (R$95 mil). Mas, mesmo dentro da capital, há muita concentração de riqueza, liderada pelo Lago Sul (R$1,4 milhões). A renda IRPF por habitante no Lago Sul é R$ 23241 três vezes maior que o Município mais rico do Brasil, que é Nova Lima na Grande BH (R$ 8897).
No estudo "Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos", realizado pelo Fundo de População das Nações Unidas ("UNFPA"), juntamente com o Fundo das Nações Unidas para a Infância ("UNICEF"), 713 mil meninas vivem sem banheiro ou chuveiro em casa; 900 mil meninas não têm acesso à água canalizada em seus domicílios; 6,5 milhões vivem em casas sem ligação à rede de esgoto.
Levando-se em conta uma mulher com cerca de 450 ciclos menstruais durante a vida, estima-se um gasto de, em média, seis mil reais com absorventes descartáveis durante a sua existência. Com isso, a ausência de condições sanitárias mínimas é somada aos problemas gerados pela vulnerabilidade econômica, e pelo uso de formas improvisadas na tentativa de estancar o sangramento menstrual com pedaços de pano usados, roupas velhas, jornal e miolo de pão.
Ou seja, não há dúvida que questões fiscais oferecem uma grande oportunidade de trazer para linha de frente o problema de como efetivar os direitos humanos. Não é à toa que dados da Receita Federal dão conta que a carga tributária incidente sobre absorventes higiênicos é de 27,5%. Do total, há uma média de 18% referente ao ICMS, 1,65% de PIS e 7,60% de Cofins. "Assim, a título de exemplo, um pacote de absorvente higiênico que custa R$ 2,28 contém, aproximadamente, R$ 0,62 somente de tributos".
Tanto é verdade que a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) apresentou, em 2022, o relatório inédito Tax Policy and Gender Equality, que teve por objetivo investigar como os países estão considerando a igualdade de gêneros em suas políticas tributárias, bem como analisar os preconceitos implícitos e explícitos nos sistemas tributários em cada Estado. O estudo foi baseado na resposta dos próprios países participantes do questionário, que totalizaram 43, incluindo o Brasil, membros da OCDE, do G20 e outros.
Para compreender esse fato, os estudos realizados pela OCDE apontam que, para além de uma questão de justiça, a discriminação e a desigualdade de gênero impedem o crescimento da renda de um país, principalmente em economias em desenvolvimento. A perda associada à discriminação de gênero gera redução de produtividade, do nível de educação e da participação das mulheres no mercado de trabalho, sendo essa perda estimada em até US$ 12 trilhões, ou 16% do Produto Interno Bruto (PIB) global.
A análise do relatório demonstra que o Brasil caminha na contramão dos países pesquisados, visto que a maioria dos Estados, inclusive da América Latina, já empreendeu reformas para reduzir vieses de gênero na tributação, dentre elas a redução ou a isenção da tributação sobre produtos de higiene pessoal das mulheres, como, por exemplo, os absorventes higiênicos.
Com foco nesse público em condição de vulnerabilidade social, e com o objetivo de combater a precariedade menstrual, identificada como a falta de acesso a produtos de higiene e a outros itens necessários no período da menstruação, foi que o presidente Lula assinou o decreto 11.432/23, que regulamenta o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, que determina a distribuição a estudantes de ensino fundamental e médio, como também às mulheres que se encontram em situação de vulnerabilidade, e às presidiárias que recebam sem qualquer ônus, de forma gratuíta, absorventes e similares.
Assim, pensar na tributação, também é pensar nas mulheres, já que é sobre elas que recai a função de cuidado. Portanto, é essencial pensar em um modelo tributário em que não haja o risco de maior carga sobre itens necessários, o que poderia levar a um aumento do preço e consequentemente uma regressividade tributária, isso porque atingiria de forma severa aquelas mulheres que ganham menos.
Como é sabido, são as mulheres que, majoritariamente, vão ao supermercado e gastam seu salário, que em geral é menor do que o dos homens, adquirindo bens de consumo imediato para toda a família. São elas as cuidadoras das casas. Então essa tributação maior pode reverberar negativamente, inclusive no que se refere ao acúmulo de renda.
Infelizmente o sistema tributário brasileiro atual tem sido um fracasso na redução das desigualdades sociais, embora existam algumas garantias previstas na Constituição Federal, como por exemplo a progressividade sobre os impostos sobre a renda (art. 153, § 2º, I), a seletividade e a extrafiscalidade de alíquota, bem como o princípio da capacidade contributiva (art. 145, § 1º) e a vedação ao confisco (art. 150, IV), a igualdade entre homens e mulheres (art. 5º, I) especificamente no âmbito da família (art. 226, § 5º), a proibição da discriminação no mercado de trabalho por motivo de sexo ou estado civil (art. 7º, XXX), a proteção especial da mulher no mercado de trabalho (art. 7º , XX, "e"), o planejamento familiar como uma livre decisão do casal (art. 226, § 7°) e o dever do Estado de coibir a violência no âmbito das relações familiares (art. 226, § 8º).
Diante disso, um olhar mais atento para o direito tributário é fundamental. Isso porque o tratamento desigual aqueles e àquelas que se encontram em situação desigual é imperativo constitucional que se coaduna com os princípios da capacidade contributiva, da isonomia, da vedação do confisco e da seletividade. Princípios que as instituições brasileiras abraçaram quando se previu, constitucionalmente, como vetor axiológico, a dignidade da pessoa humana como fundante de nossa sociedade e a estrutura de um Estado Social e Democrático de Direito.
Ocorre que, apenas os institutos citados acima ainda não são capazes de solucionar o problema da regressividade tributária e a desigualdade de gênero, tendo em vista que a tributação sobre o consumo recai sobre o fato econômico, independentemente da pessoa que participa do referido ato.
Como se pode ver, essa incidência tributária sobre o consumo é considerada regressiva ou ruim porque não obedece a princípios importantíssimos como, por exemplo, o da capacidade contributiva, isso porque ao tributar um pacote de macarrão, por exemplo, o milionário e o mendigo, que comprarem aquele macarrão, irão pagar o mesmo tributo embutido no preço do produto, independentemente da imensa disparidade da capacidade contributiva de cada um.
Ademais, considerando que a renda das pessoas mais pobres é totalmente voltada para o consumo de bens de subsistência e de higiene pessoal, a concentração da tributação sobre o consumo torna o modelo tributário injusto, fazendo com que os mais pobres paguem proporcionalmente mais tributos que os mais ricos.
Uma solução seria criar isenções tributárias ou alíquotas diferenciadas para esses produtos de higiene pessoal (absorvente, sabonete, creme dental, escova de dente), bem como aos produtos da cesta básica, medicamentos, energia elétrica e serviços de comunicação, como, por exemplo, acesso à internet. Afinal, não estamos falando de produtos supérfluos, muito pelo contrário, são essenciais.
Essa possibilidade voltada à implementação de benefícios fiscais acerca dos itens supracitados funciona como instrumento do sistema tributário para a correção das distorções socioeconômicas, entre elas a desigualdade de gênero.
Uma outra hipótese de solução para o referido problema da regressividade seria a devolução do imposto pago por famílias de baixa renda. O mecanismo tem sido apelidado de "cashback" pelos envolvidos na reforma tributária. Apesar de ser importante pensar em como o mecanismo funcionará, a iniciativa é relevante, se pensarmos em uma devolução [do imposto pago] para as mulheres vulneráveis economicamente.
Outra questão importante para a redução da desigualdade de gênero seria a concessão de benefícios fiscais a empresas que contratarem mais mulheres, que as colocarem em cargos de gestão ou que empregarem vítimas de violência doméstica.
No entanto, verifica-se que não é uma tarefa fácil, isso porque incentivos fiscais, como isenções ou redução de alíquota, implicam em renúncia de receita, o que pode gerar um desequilíbrio nas contas públicas. Será uma tarefa para o poder legislativo, bem como o executivo juntamente com a participação de toda sociedade em prol de uma carga tributária mais justa.
Cabe ainda destacar que o poder judiciário também está atento ao problema da desigualdade, tendo em vista algumas decisões relevantes, como o caso da ADIn 5422, na qual os ministros do STF definiram a não incidência do Imposto de Renda Pessoa Física sobre as pensões no Direito de Família. Apesar de não ter como fundamentação a questão de gênero, a discussão sobre desigualdade entre homens e mulheres esteve presente em diversos votos.
Ou seja, verifica-se que a tributação envolvendo a desigualdade de gênero também é relevante no âmbito do STF, como por exemplo, o RE 576.967, no qual a Corte considerou que a incidência de contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade fere a isonomia entre homens e mulheres.
Outro julgado do STF que merece destaque foi o RE 714139/SC, no qual foi fixada a tese de que "adotada, pelo legislador estadual, a técnica da seletividade em relação ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS, discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços". No entanto, como as duas categorias são as que mais arrecadam impostos, haverá um grande impacto nas contas estaduais. Sendo assim, depois de muita análise, decidiu-se que a referida decisão valeria a partir de 2024, devido ao plano plurianual, ou seja, a partir daí toda a disciplina orçamentária estará adequada à redução forçada de tais alíquotas do ICMS sobre as operações de fornecimento de energia elétrica e serviços de telecomunicação.
Na prática, teremos menos regressividade tributária em relação aos serviços de comunicação e de energia elétrica, isso porque os mesmos são essenciais, considerando a técnica da seletividade de alíquota, na qual permite uma tributação maior para produtos supérfluos e uma tributação menor para produtos necessários.
Além disso, é preciso levar em conta que, para compensar a possível perda de receita pública decorrente dos incentivos fiscais supracitados, outras medidas também poderiam ser tomadas, como por exemplo, uma análise mais apurada das despesas públicas, inclusive com a redução de gastos desnecessários, e, em último caso, a criação de um imposto residual pela União (por meio de Lei Complementar), para tributação das embarcações e aeronaves com isenção daquelas que prestam serviços de transportes de passageiros, para não onerar o preço da passagem do consumidor final.
Quem sabe, assim, teremos mais igualdade tributária, e mais mulheres na política brasileira. Apesar de a população feminina ser maioria no país, na política ainda tem uma baixa representação. Quem sabe, assim, teremos mais igualdade no mercado de trabalho. Apesar de o índice de escolaridade da população feminina ser mais alta, as mulheres enfrentam um cenário desfavorável na busca por um emprego e na atribuição de seus salários. Por fim, quem sabe, assim, teremos mais igualdade e menos assédio e violência contra as mulheres, isso porque, tanto o assédio quanto a violência, infelizmente, ainda fazem parte da realidade da maioria das mulheres brasileiras.
Onízia de Miranda Aguiar Pignataro
Mestre em Direito Tributário, Internacional e Econômico pela Universidade Católica de Brasília, Conselheira da OAB-DF, gestão 2019/2021. Advogada Sócia do Escritório SLB Advogados, Membro da Comissão de Assuntos Tributários da OAB-DF, Especialista em Direito Público, Professora de Direito Tributário e Processo Judicial Tributário no IDP, UPIS, UNICEUB, e também professora na Escola Superior de Advocacia - ESA-DF. Escritora e pesquisadora com participação ativa no grupo inscrito no CNPq, sobre Terceiro Setor e a Tributação Nacional e Internacional: formas de integração e repercussões na sociedade.