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Tutela dos contratos com objeto lazer - Aspectos práticos e práticas abusivas em turismo, restaurantes, casas noturnas

O direito ao lazer é correlato ao direito à saúde - homens não são máquinas - não vivem sem descanso - coisa que gere stress nesse tipo de prestação que normalmente é de consumo é apta a frustrar o objeto do contrato - questões que se busca analisar no bojo do presente artigo.

domingo, 2 de julho de 2023

Atualizado em 30 de junho de 2023 14:20

O tema em comento demanda uma atualização em relação a outro comentário que teci há anos atrás, eis que existe evidente evolução em torno de novas questões - já que o direito ao lazer resta um direito muito relevante no texto constitucional (em ao menos quatro dispositivos como se observa pela redação dos consectários lançados nos artigos 6º, caput, 7º, IV, 217, par.3º e artigo 227) e sua tutela beiraria, mesmo, as raias do que hoje vem sendo entendido como valor decorrente da busca da felicidade (há uma PEC em tramitação no Congresso Nacional para viabilizar o reconhecimento desta busca como direito social do indivíduo como o fazem outros ordenamentos mundo afora).

A questão é atual eis que a partir da ideia de respeito ao lazer se tem a própria ideia da proteção a um direito de desconexão como tem sido proposto na seara do direito laboral - como exemplo deste posicionamento:

TRT-3 - RECURSO ORDINARIO TRABALHISTA: ROT 102857920215030043 MG 0010285-79.2021.5.03.0043 Data de publicação: 04/07/2022 DANO MORAL. DIREITO À DESCONEXÃO1. GARANTIAS CONSTITUCIONAIS À SAÚDE E AO LAZER. BENS JURÍDICOS TUTELADOS INERENTES AO EMPREGADO. ART. 223-C DA CLT. Nos termos do art. 223-B da CLT, o dano extrapatrimonial se configura quando há ofensa de ordem moral ou existencial à pessoa física ou jurídica, decorrente de ação ou omissão, sendo que a saúde e o lazer se encontram elencados no rol dos bens juridicamente tutelados inerentes ao empregado (art. 223-C, CLT). Nesse aspecto, o direito à desconexão do trabalho se insere no âmbito das garantias fundamentais à saúde e ao lazer (art. 6º , caput, e art. 7º , IV , da Constituição da Republica ), consectárias do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º , III , CR ), pelas quais o labor não pode ser um fim em si mesmo, mas sim o meio para o trabalhador promover sua subsistência e satisfazer suas necessidades e anseios pessoais, sem prejuízo ao repouso e ao convívio familiar e social. Violado o direito do empregado de se desconectar do trabalho, privando-lhe do devido descanso e do lazer, é cabível a reparação civil, consoante artigos 186 e 927 do Código Civil.

Não se quer evidentemente dizer que lazer seja sinônimo de desconexão - esse conceito seria mais amplo, mas envolve a discussão do lazer como matéria conexa com a proteção da saúde (enquanto direito social - artigo 6º CF) tal como pré-requisito do direito à vida (artigo 5º, caput da Carta Política).

Vários doutrinadores como Rubens Limongi França, o consideram como sendo uma das facetas dos direitos de personalidade de integridade física -  a ideia seria justamente a de que sem lazer (descanso) a própria saúde e por consequência, a vida do indivíduo são postas em risco - vai-se muito além, portanto, da mera violação a direito social como se poderia pensar num primeiro momento, a questão envolve, portanto, direito fundamental na acepção técnica do termo.

Por trás de um pacote de lazer ou de uma atividade de diversão e entretenimento, portanto, não se tem apenas o supérfluo em discussão, mas valores extrapatrimoniais (na acepção ponteana que divide as esferas jurídicas dos sujeitos de direito em setores patrimoniais e não patrimoniais).

E esse caráter de indispensabilidade do objeto para a mantença da vida de qualquer indivíduo, bastaria para justificar a imposição de indenização com fundamento na teoria dos danos morais presumidos (in ré ipsa) quando tal direito é violado, de sorte tal que quando o mesmo, contratualmente garantido, não resta cumprido, enseja a reparação pelo atingimento do setor não patrimonial da esfera jurídica do indivíduo (nos termos como preconizados como dito, por Pontes de Miranda a partir de considerações nas obras de Ennecerus, Wolff, Kypps).

Nessa conhecida alegoria doutrinária, todo e qualquer sujeito de direito (sempre se lembrando que isso englobaria pessoas naturais, jurídicas ou mesmo entes despersonalizados equiparados por lei a sujeitos) teria uma esfera jurídica, que seria o conjunto de todas as suas posições jurídicas (direitos, deveres, poderes, obrigações, ônus etc), que poderia ser dividida em setores patrimoniais (quando as posições jurídicas atinentes ao titular forem suscetíveis de avaliação econômica e expressão monetária) e não patrimoniais - matéria mais própria dos direitos de personalidade (o que não esgota a possibilidade de, em alguma medida aí se inserir a pessoa jurídica que pode ser sujeito apto a perceber indenização por danos morais quando violada sua honra objetiva por exemplo - como o aponta a súmula 227/STJ).

Assim, sem maior possibilidade de erro, se poderia, num primeiro momento, limitar o objeto do campo de estudo do direito ao lazer como algo ínsito e próprio aos seres humanos - ou seja pessoas naturais que vincula, no entanto, as pessoas jurídicas que atuam nesses ramos de atividade que devem ter cautelas redobradas afinal não se pode perder que se tem relações as mais das vezes consumeristas e cujo objeto dos contratos não pode ser tido como frustrado.

Se o consumidor se dispõe a ir a determinado lugar, bar, hotel, restaurante, pousada etc para que possa se desconectar da realidade e haurir o tão desejado momento de lazer - tudo aquilo que o faça retornar à sua realidade, o que possa lhe causar stress - dentro de parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade - violará o escopo do contrato.

A violação do escopo do contrato implica em situação de não adimplemento pelo fornecedor, que se tiver responsabilidade (haftung) estará imbricado em situação de resolução - ou seja além da quebra contratual haverá de indenizar perdas e danos.

Assim, de se ver especificidades de contratos com o objeto lazer, entrando em cena a questão dos contratos turísticos, que, haja vista a habitualidade em que as empresas de turismo atuam e forma de remuneração as qualificam como fornecedoras nos termos da legislação consumerista de regência - e, pelo óbvio, que adquire um pacote turístico, o faz na condição de destinatário final (ninguém emprega, via de regra viagem turística no ciclo produtivo como insumo). Muito difícil, portanto, que se exclua uma contratação desta natureza do âmbito da incidência da lei 8.078/90.

Mesmo que se trate, por exemplo, de uma empresa fazendo um pacote de viagens para seus empregados em um Congresso a trabalho, se realizado em um hotel ou um resort, num final de semana estará envolvida parte do lazer para compensar o fato de terem sido levados para o evento em tais condições - e se houver infortúnios, mesmo seu empregador havendo contratado o hotel o lesado poderá se beneficiar do regime jurídico consumerista eis que será uma vítima de um acidente de consumo - um bystander (consumidor por equiparação - ideia muito corrente sobretudo entre os defensores do maximalismo na interpretação do CDC2).

A aquisição de pacotes de viagens implica, portanto, em relação de consumo (isso, insista-se, pelo próprio finalismo, sem necessidade de se recorrer a outras teorias como o maximalismo ou o finalismo aprofundado), sendo certo que, o que é relevante e diferente nesses casos, é o fato de que o objeto do contrato tem a finalidade de garantia do lazer - por isso, descumprimentos que normalmente não gerariam indenizações em outros tipos de contrato, geram indenizações por danos morais por conta de meros aborrecimentos (Cláudia Limar Marques). Sobre a incidência do CDC à questão, de se destacar, à guisa de mera exemplificação:

TJ-DF - RECURSO INOMINADO RI 07161333720158070016 (TJ-DF) Data de publicação: 18/12/2015 Ementa: JUIZADO ESPECIAL CÍVEL. CONSUMIDOR. AGÊNCIA DE VIAGENS. CONTRATO DE VENDA DE PACOTE TURÍSTICO. EMBARQUE NÃO REALIZADO POR FALTA DE DOCUMENTO HÁBIL DO PASSAGEIRO. CANCELAMENTO DAS PASSAGENS AÉREAS DE VOLTA. AUSÊNCIA DE INFORMAÇÃO ADEQUADA. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. DANOS MATERIAIS COMPROVADOS. DANOS MORAIS CONFIGURADOS. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA. 1. O presente caso trata de pacote turístico adquirido junto a primeira ré, que incluía o transporte aéreo a ser realizado pela segunda ré. Ao proceder ao embarque, foi o autor impossibilitado por não portar os documentos necessários. Adquiridas outras passagens aéreas para o destino, solicitou que não realizassem o cancelamento dos bilhetes de retorno. Todavia, esses foram cancelados, obrigando-o a adquirir outras passagens, além de ter perdido valor correspondente a um dia de passeio. 2. Aplica-se o CDC à questão sob análise, ensejando a inversão do ônus da prova, vez que constatada a vulnerabilidade e hipossuficiência do consumidor, aliados à verossimilhança das suas alegações. Em razão da disposição contida em seu art. 14, a responsabilidade por vício na prestação de serviço é objetiva, devendo a prestadora de serviços responder pelos danos que causar ao consumidor. Portanto, com fundamento no art. 14 da Lei 8.078 /90, o recorrido tem direito ao ressarcimento do preço pago para aquisição de novas passagens de retorno a Brasília (fl. 21), que perfaz o valor total de R$ 1.293,14. 3. Ficou evidente a violação aos direitos da personalidade do consumidor, porquanto experimentou transtornos e aborrecimentos indevidos que extrapolam a frustração cotidiana. Os fatos narrados mostram o abalo psicológico e a intranquilidade sofrida, indenizáveis a título de dano moral. 4. Na fixação do valor da reparação do dano moral, devem-se observar os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, de modo a não aviltar o bom senso, não estimular novas transgressões, impedir o enriquecimento ilícito do ofendido e não causar a ruína do culpado. A indenização não deve ser inócua, diante da capacidade patrimonial de quem paga e, muito menos, excessiva a ponto de significar a sua ruína. De igual modo, o valor não deve ser expressivo a ponto de representar enriquecimento sem causa de quem vai recebê-la, nem diminuto que a torne irrisória. 5. Acertado se mostra o quantum fixado a título de danos morais em R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), tendo em vista o cancelamento da passagem e ainda o dispêndio monetário não programado, para garantir seu retorno e de sua família para Brasília. 6. Deve ser mantida a sentença que julgou parcialmente procedentes os pedidos iniciais, condenando as rés, solidariamente, a pagar ao autor, para ressarcimento dos danos materiais, a quantia de R$ 1.293,14 (um mil duzentos e noventa e três reais e quatorze centavos), acrescida de correção monetária pelos índices do INPC desde o pagamento (08/11/2014), e, também, de juros de mora no percentual de 1% (um por cento) ao mês a partir da data da citação; e a quantia de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), a título de danos morais, acrescida de correção monetária pelos índices do INPC a partir desta sentença, além de juros de mora no percentual de 1% (um por cento) ao mês, a contar da citação. 7. Recurso conhecido e desprovido. Sentença mantida por seus próprios fundamentos. 8. Condeno recorrente vencida ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, que fixo em 15% sobre o valor da condenação atualizado. 9. A súmula de julgamento servirá como acórdão, conforme regra do art. 46 da Lei dos Juizados Especiais Estaduais Cíveis e ainda por força dos artigos 12, inciso IX, 98, parágrafo único e 99, do Regimento Interno das Turmas Recursais.

E, em se aplicando o regime do CDC à questão, observa-se que os pontos obscuros serão sempre interpretados em favor do consumidor que passa, em casos de verossimilhança e hipossuficiência a fazer jus à inversão de ônus probatórios, aplicando-se ao caso, o lapso prescricional quinquenal do CDC (artigo 27) e não o lapso trienal do Código Civil (artigo 206) para ações de indenização.

Mas, mais importante ainda, tem-se que será aplicável o regime da responsabilidade civil objetiva e haverá responsabilidade solidária legal de todos os agentes envolvidos na contratação do pacote turístico (agência de viagens, companhia aérea, hotel, guia de turismo etc).

Isso, além de encontrar fundamento na teoria do risco profissional, encontra respaldo no princípio geral de direito romano pelo qual ubi commoda ibi incommoda, que em tradução literal e livre implica na ideia de acordo com a qual quem aufere as vantagens, arca com as desvantagens de um dado negócio jurídico.

  • Confira a integra do artigo aqui.

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1 Para evidenciar que o entendimento da seara laboral sobre o tema não é isolado se aponta a título de exemplificação:  TRT-1 - RECURSO ORDINÁRIO: RO 1018483320175010082 RJ Data de publicação: 29/03/2019 DANO EXISTENCIAL. JORNADA EXTENUANTE. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DE PREJUÍZO. Na esfera trabalhista, a existência de danos existenciais é caracterizada como a conduta antijurídica do empregador, que afeta as relações sociais do obreiro, como o direito ao lazer, ao convívio com a família e amigos, entre outros. É o direito do trabalhador à desconexão. O direito à desconexão objetiva a liberdade do empregado para usufruir de tempo livre, além do tempo despendido em trabalho, para ter convívio familiar e social, praticar atividades físicas e de lazer, sem qualquer preocupação com questões relativas ao trabalho exercido, resultando em boa qualidade de vida, o que vai ao encontro do princípio da dignidade humana, previsto no artigo 1º , III da Constituição Federal . Ocorre que a configuração do dano existencial é condicionada à comprovação do prejuízo causado pelas condutas do empregador, demonstrando-se as limitações do empregado em relação à sua vida fora do ambiente de trabalho. No caso em apreço, não houve tais comprovações. Recurso que se dá parcial provimento.

TRT-2 - 10002444320145020614 SP Data de publicação: 05/02/2015 DIREITO À DESCONEXÃO DO TRABALHO. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. JORNADA ILEGAL. ABUSO DO PODER DIRETIVO. CABIMENTO DA INDENIZAÇÃO PELO DANO IMATERIAL. O direito à desconexão do trabalho é de natureza fundamental, patrocinado, ao lado das normas constitucionais e infraconstitucionais de controle de jornada, pelas internacionais de garantia dos direitos humanos, eis que a constante disponibilização para o labor implica malferimento dos direitos ao lazer, ao convíVio social e familiar e à educação. Comprovada nos autos a extrapolação habitual dos limites constitucionais e legais da duração do trabalho (artigo 7º , inciso XIII , da Constituição Federal e artigo 59 , caput, da CLT ), bem como o desrespeito ao descanso semanal do empregado (artigo 1º , Lei 605 /1949), com comprometimento da sua integridade física e emocional, conclui-se que a ré agiu de forma abusiva, extrapolando os limites do pode diretivo, devendo responder, assim, pela reparação de ordem moral. Indenização devida. Recurso a que se dá provimento no particular.

TRT-1 - Recurso Ordinário Trabalhista: RO 1008143220175010079 RJ Data de publicação: 15/07/2020 RECURSO ORDINÁRIO. HORAS DE SOBREAVISO. DIREITO À DESCONEXÃO. SÚMULA Nº 428 DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. O uso de aparelho celular fornecido pela empresa ao empregado, por si só, não caracteriza o regime de sobreaviso. No entanto, considera-se em sobreaviso o empregado que deve permanecer com o aparelho ligado fora da duração normal do trabalho, sendo acionado para o serviço durante o descanso, em regime equivalente a um plantão no qual não usufruía verdadeiramente do direito à desconexão, com liberdade para decidir o que fazer ou não fazer durante seu período de descanso. Recurso ordinário do reclamante conhecido e provido.

2 STJ - PETICAO DE RECURSO ESPECIAL: REsp 1711266 Data de publicação: 16/11/2022 FURTO DE COFRE PESSOAL EM HOTEL. AUSÊNCIA DE VEROSSIMILHANÇA DAS ALEGAÇÕES. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. IMPOSSIBILIDADE. REEXAME. SÚMULA 7 /STJ. AGRAVO IMPROVIDO. 1....colisão e furto de caminhão de sua frota, inclusive durante o período de repouso noturno, bastando que estacione, gratuitamente, seus veículos em pátios de oficinas, de postos de gasolina, de restaurantes, hotéis...CONSUMIDOR BYSTANDER. ART. 17 DO CDC . 1

Júlio César Ballerini Silva

VIP Júlio César Ballerini Silva

Advogado. Magistrado aposentado. Professor. Coordenador nacional do curso de pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil e em Direito Médico.

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