Considerações específicas sobre a lei 14.599/23: Transporte rodoviário de carga e os seguros
Eventual vício de constitucionalidade pelo conteúdo ainda poderá ser arguido, a depender do desdobrar dos acontecimentos.
quinta-feira, 29 de junho de 2023
Atualizado às 08:02
No dia 19 de junho, o Presidente Lula sancionou a lei 14.599, que é a conversão da MP 1.153, de 2022, editada pelo então Presidente Bolsonaro nos últimos dias do seu governo. Com a conversão da lei alterou-se substancialmente a redação original da Medida Provisória, mas se manteve a espinha dorsal da parte que interessa mais imediatamente ao mercado segurador brasileiro.
Consta de seu preâmbulo que ela "posterga a exigência do exame toxicológico periódico para a obtenção e renovação da Carteira Nacional de Habilitação" e "altera a lei 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro), a lei 11.442, de 5 de janeiro de 2007, para dispor sobre seguros de cargas, e a lei 11.538, de 8 de novembro de 2007, para dispor sobre a carreira de Analista de Infraestrutura e o cargo isolado de Especialista em Infraestrutura Sênior".
Interessa-me aqui apenas a parte que trata das alterações da lei 11.442/07 relativamente aos seguros de cargas. Disso tratarei sem juízo de valor, ou seja, sem incensar ou demonizar norma alguma.
A grande preocupação do mercado segurador, especialmente dos seguradores e dos corretores de seguros, é a de bem atender aos segurados e assim protegê-los; no grupo destes estão transportadores e donos de carga. Daí o cuidado em não se aplaudir ou apupar a lei.
As considerações que faço são objetivas, breves e diretas, subordinadas evidentemente ao crivo do contraditório, próprio à dialeticidade do Direito. Para facilitar a boa compreensão de quem se dispuser à gentil leitura, eu as dividirei em tópicos bem específicos e não necessariamente interrelacionados.
I - O tempo rege o ato
Quando da edição da MP 1.153, no fim de dezembro de 2022, muita gente indagou sobre os contratos de seguro celebrados antes da entrada em vigor (dia 29). Respondi que todos continuavam em vigor conforme entabulados. Na condição de negócios jurídicos perfeitos, eles não eram atingidos pela norma.
De 29 de dezembro de 2022 a 19 de junho de 2023 os contratos de seguro deveriam ser celebrados conforme os termos da Medida Provisória, evidentemente. Embora em discussão e, então, a reclamar a conversão pelo Poder Legislativo, a Medida Provisória tinha força de lei e como tal havia de ser respeitada. Todos os contratos, portanto, celebrados sob sua égide deverão ser preservados e cumpridos fielmente, independentemente da nova lei.
A partir de 19 de junho, gostem dela ou não seus atores, os contratos de seguro no ramo de transporte rodoviário de cargas têm de ser celebrados segundo o inteiro teor da lei 14.955.
Por favor, que ninguém confunda interpretação com desobediência. Há espaços para dúvidas e aplicações ao sabor de diferentes interpretações, mas não para descumprimento. Penso que uma dúvida saudável seja representada por esta indagação: e os contratos que foram negociados durante a vigência da Medida Provisória, mas não concluídos até 19 de junho?
Respondo: infelizmente deverão ser renegociados e elaborados de acordo com a lei. A negociação, que é muito importante no ramo do seguro, não configura negócio jurídico perfeito e, por isso, é atingida pela lei.
O tempo rege o ato, e por isso o tempo de cada norma é o que vale para dar ao ato as forma e conteúdo.
De 19 de junho em diante, todos os contratos de seguro no ramo de transporte rodoviário de cargas, os de responsabilidade civil e o de dano, têm que ser materializados de acordo com a nova lei.
Polêmicas de conteúdo à parte, é assim que o Direito se move. É assim que todos somos levados a caminhar.
II - A constitucionalidade
Quando da edição da MP 1.153/02, enxerguei inconstitucionalidade.
Isso porque a ontologia das Medidas Provisórias exige relevância e urgência para seu uso pelo presidente da república. Não enxerguei naquela altura a veraz existência do requisito urgência, principalmente para os seguros. Considerei indevido o uso da espécie normativa.
Nenhum legitimado ativo para ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade exerceu o controle concentrado repressivo perante o Supremo Tribunal Federal e não soube de eventual exercício de controle repressivo difuso por meio de litígio judicial comum, de tal forma que a oportunidade de tanto já passou.
Com a conversão da Medida Provisória em Lei, o Poder Legislativo exerceu o controle preventivo concentrado de constitucionalidade, sendo que não há mais o que se questionar a respeito, ao menos em relação aos elementos informadores de origem.
Eventual vício de constitucionalidade pelo conteúdo ainda poderá ser arguido, a depender do desdobrar dos acontecimentos. Eu, em boa-fé, não enxerguei algum e entendo que a lei é constitucional.
Temia inicialmente algum prejuízo ao pleno exercício do ressarcimento em regresso dos seguradores sub-rogados contra transportadores de cargas ou danadores conexos, ofendendo-se o art. 786 do Código Civil e o Enunciado de Súmula 188 do Supremo Tribunal Federal. Não houve. Houvesse, aí sim a inconstitucionalidade de conteúdo emergiria.
Daí minha opinião, neste momento, de inexistência de vício de constitucionalidade.
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Paulo Henrique Cremoneze
Advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes. Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado. Especialista em Direito do Seguro.