MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Análise do REsp nº 1.514.567: a impenhorabilidade do bem de família integralizado a uma holding familiar

Análise do REsp nº 1.514.567: a impenhorabilidade do bem de família integralizado a uma holding familiar

O STJ acertou ao impossibilitar a penhora indireta do imóvel em questão. Se a holding possui, em seu ativo, unicamente um imóvel que serve de moradia aos sócios, é certo que, indiretamente, a penhora de quotas levaria à penhora deste bem de família.

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Atualizado às 09:43

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça julgou o Recurso Especial nº 1.514.567/SP, cujo tema central da controvérsia consistiu na aplicação, ou não, do conceito de impenhorabilidade do bem de família previsto na Lei nº 8.009/90, no caso de imóvel que, embora pertencente a uma sociedade empresária, seja utilizado pela sócia e por seus familiares como moradia. O julgamento foi conduzido pela Ministra Maria Isabel Gallotti.

No Tribunal de Origem, cuidou-se de uma ação monitória, pela qual a credora buscava o recebimento do valor histórico de R$ 683.731,00, proveniente de sucessivos empréstimos em dinheiro aos devedores, pessoas físicas. Julgados improcedentes os embargos à monitória, sobreveio o trânsito em julgado, de forma que a credora, então, deu início à fase de execução.

Durante o curso do Cumprimento de Sentença, foi constatado que os outros imóveis de propriedade dos devedores já haviam sido expropriados e arrematados em outras execuções.

Deste modo, a credora identificou que os devedores eram detentores da integralidade de quotas sociais de uma empresa de administração de imóveis próprios, registrada em um Cartório de Registro de Títulos e Documentos de São Paulo e, assim, requereram a penhora e avaliação das aludidas quotas sociais. Tendo sido deferida pelo Juízo, a penhora foi realizada e registrada.

Intimados acerca da penhora das quotas da sociedade, os devedores impugnaram o cumprimento de sentença, suscitando a impossibilidade da penhora em razão da extinção da pessoa jurídica diante do falecimento do sócio, a ofensa à affectio societatis, bem como demonstraram que, em verdade, o único ativo da sociedade era um imóvel que se destinava à residência dos devedores e sua família, há mais de 20 (vinte) anos.

Por outro lado, o Juízo de Origem entendeu que a aquisição do imóvel foi realizada de forma fraudulenta, em 08/06/1986, na medida em que a escritura de compra e venda nunca foi levada a registro no cartório de imóveis competente. Ao final, o Juízo determinou que as quotas sociais fossem avaliadas por um perito judicial.

Após avaliação e homologação do laudo pericial, o Juízo deferiu o pedido de adjudicação das quotas sociais pela credora. Inconformados com a decisão, os Devedores interpuseram o Agravo de Instrumento nº 2064058-90.2014.8.26.0000, sustentando que o imóvel detido pela sociedade se tratava de bem de família e que seria, portanto, impenhorável.

Remetido ao Tribunal de Justiça de São Paulo, o Desembargador Paulo Pastore Filho, da 17ª Câmara de Direito Privado, negou provimento ao Agravo de Instrumento dos Devedores, fundamentando que o imóvel não pertencia às pessoas físicas, mas sim, à pessoa jurídica, razão pela qual, era inviável examinar a impenhorabilidade à luz da Lei 8.009/90.

Levada a questão ao Superior Tribunal de Justiça, por meio do Recurso Especial nº 1.514.567/SP, em linhas gerais, a Ministra Maria Isabel Gallotti deu provimento ao recurso especial e determinou o retorno dos autos ao Tribunal de Justiça de São Paulo, a fim que este aprecie novamente as provas dos autos, ou alternativamente, que seja reaberta a instrução probatória à luz do seu voto, apurando-se se os sócios recorrentes, de fato, habitam o imóvel.

Asseverou-se, ainda, no decorrer do acórdão, pela possibilidade de reconhecer o dito imóvel como bem de família, embora seja este de propriedade da sociedade e não dos sócios.

Verificamos, dessa forma, que o acordão preserva a segurança jurídica das empresas familiares - holdings -, à luz da Lei 8.009/90.

Como é sabido, a holding familiar é um instrumento que tem como função principal manter ("to hold") e gerir os bens móveis ou imóveis da família, de sorte que as pessoas físicas passem a deter somente as ações ou quotas da holding, pessoa jurídica esta que forma uma única estrutura societária, o que permitiria planejar economicamente a sucessão e os tributos, visando a melhor gestão dos ativos patrimoniais1. O cerne do planejamento familiar é possibilitar que os imóveis não sejam objeto de Inventário em caso de falecimento do sócio que os integralizou.

Além disso, a constituição da holding pode acarretar uma economia tributária para locações e vendas, bem como segregar o patrimônio dos sócios dos riscos decorrentes de atividades operacionais de suas empresas.

Conforme apontado pelo Ministro Raul Araújo, do STJ, no Recurso Especial nº 1.514.567/SP, os empresários, frequentemente expõem o seu patrimônio pessoal ao risco da sua atividade mercantil. Desta forma, a Lei 8.009/90 busca garantir que os imóveis - mesmo integralizados em uma holding -, nos quais os sócios e sua família constituam residência, não sejam penhorados, sob pena de violarem os direitos constitucionais de moradia (art. 6, da CF) e a própria proteção da família (art. 226, da CF).

Na hipótese em apreço, entendemos que, caso fosse verificado que a sociedade familiar possuísse outros bens em seu ativo, a adjudicação das quotas sociais pelo credor deveria limitar-se a um percentual do capital social que equivalesse ao patrimônio líquido da sociedade, deduzindo-se o valor do imóvel impenhorável. Assim, hipoteticamente, se o patrimônio líquido da sociedade fosse R$ 100.000,00, composto pelo imóvel residencial no valor de R$ 60.000,00 e outros bens, no valor de R$ 40.000,00, a penhora deveria limitar-se a 40% do capital social, a nosso ver.

Acreditamos que, mediante essa cautela, seria evitada a adjudicação indireta do bem de família.

Por outro lado, constata-se que, o único ativo integralizado na sociedade era um imóvel de moradia dos sócios e de seus familiares. Logo, autorizar a adjudicação em favor do credor, seria o mesmo que adjudicar o imóvel em sua integralidade, o que não poderia ocorrer.

Sob esse panorama, Luiz Edson Fachin2 já ressaltou, em outra oportunidade, que a impenhorabilidade da Lei nº 8.009/90, ainda que tenha como destinatários as pessoas físicas, merece ser aplicada para as pessoas jurídicas, às firmas individuais e às pequenas empresas com conotação familiar.

Deste modo, observamos que o posicionamento tomado pelo Juízo de Origem e pelo e. TJSP traz insegurança jurídica ao não aplicar a lei 8.009/90 no caso in concreto, na medida em que cria um cenário desfavorável aos devedores e viola o princípio do mínimo vital.

Logo, o c. STJ acertou ao impossibilitar a penhora indireta do imóvel em questão, pois, embora os bens adjudicados pelo credor sejam quotas sociais, se a sociedade possui, em seu ativo, unicamente um imóvel que serve de moradia aos sócios, é certo que, indiretamente, ocorreria a penhora deste provável bem de família, violando-se, assim, a lei 8.009/90, em seu âmago. 

Referências:

FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro, Renovar, 2001.

PEREIRA DA SILVA, Fábio. Holding familiar: visão jurídica do planejamento societário, sucessório e tributário. São Paulo: Trevisan Editora, 2015.

___________

1 PEREIRA DA SILVA, Fábio. Holding familiar: visão jurídica do planejamento societário, sucessório e tributário. São Paulo: Trevisan Editora, 2015.

2 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 154.

Cristiano Padial Fogaça

Cristiano Padial Fogaça

Sócio do escritório Fogaça Murphy Advogados. Advogado. Mestre em Direito Comercial pela PUC-SP. Professor no curso de especialização do COGEAE/PUC-SP.

Gustavo Rocco Corrêa

Gustavo Rocco Corrêa

Advogado. Bacharel em Direito pela Faculdades Metropolitanas Unidas - FMU; Pós-graduado em Processo Civil - EBRADI; Pós-graduando em Direito do Consumidor pela Universidade Candido Mendes.

Matheus Lira

Matheus Lira

Advogado e sócio do escritório Fogaça Murphy Advogados. Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduado em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca