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Licença para operar: criptoativos e regulação

Marco Legal dos Ativos Virtuais começa a valer nesta semana e as autorizações para as atividades ainda são uma incógnita.

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Atualizado às 13:40

O Marco Legal dos Ativos Virtuais (lei 14.478/22), conhecida como a lei das Criptomoedas, entra em vigor dia 20 de junho de 2023, nesta terça-feira.

Já sabemos que nesta lei há previsões claras de que o Poder Executivo iria definir qual seria a autoridade competente para regulamentar as atividades envolvendo os chamados "ativos virtuais". Até o dia 14 deste mês, esta indefinição era ainda ansiada pelo mercado para ser sanada.

Sem muitas surpresas, no dia 14 de junho houve a publicação do decreto 11.563/23, que apontou o Banco Central do Brasil (BACEN) como sendo a autoridade que irá regulamentar as previsões da Lei das Criptomoedas. Aguarda-se, a partir de agora, o disciplinamento das atividades envolvendo criptoativos por meio da eleição, por exemplo, dos requisitos que deverão ser respeitados pelos prestadores de serviços envolvendo ativos virtuais (os chamados "VASPs" - virtual assets service provider), como as exchanges (espécie de "corretoras de criptoativos").

Como primeiras medidas, espera-se a abertura de audiências públicas para que sejam oportunizadas contribuições por agentes do mercado que já estão atuantes, como startups, exchanges e associações de empresas. Afinal, a interlocução com o mercado é de suma importância para que a regulamentação se dê de forma proporcional, não desestimulando ou mesmo inviabilizando as atividades envolvendo criptoativos.

Conforme já antecipado pela Lei de Criptomoedas, as empresas já em atividade no mercado brasileiro provavelmente terão a concessão de um prazo para adequar-se às novas diretrizes. Apesar de já termos no Brasil uma série de exchanges operando, é importante lembrar que até hoje nenhuma delas possui licença definitiva para operar ativos virtuais, nem mesmo a B3.

Uma afirmação que corremos pouco risco de errar é a de que não será fácil estar em conformidade com tantas leis. Já é sabido que os criptoativos que se afeiçoarem a valores mobiliários ainda estarão sob fiscalização da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), estando, portanto, submetidos à lei 6.385/76, que regula o mercado de capitais. Portanto, nada muda com relação à competência desta autarquia.

Considerando que muitos projetos envolvem criptoativos com uma natureza mista, é plenamente possível haver a submissão à regência regulatória e fiscalizatória concomitante de ambas as autoridades, tanto do BACEN, como da CVM. Ainda mais porque uma confusão muito comum por agentes do mercado é achar que apenas a natureza jurídica do token irá definir a competência regulatória, quando, em verdade, as atividades exercidas pela empresa também são passíveis de atrair o arcabouço regulatório e fiscalização de mais de uma autoridade.

Essa confusão não é sem razão. Reguladores mundo afora estão enfrentando a mesma dificuldade no enquadramento regulatório de tokens, começando pela compreensão da natureza jurídica destes ativos. Nos Estados Unidos, por exemplo, ainda se arrasta a discussão sobre se os criptoativos são ou não valores mobiliários (securities) ou commodities (como o bitcoin). No Brasil, isso foi superado ao se estabelecer que sempre que o token representar um valor mobiliário haverá incidência da legislação aplicável a esta espécie.

No início de junho deste ano, em um processo movido contra a corretora Binance, a Securities Exchange Comission (SEC) reputou como sendo valores mobiliários ao menos 12 tokens (como BNB, SOL, MATIC e ADA cardano). Notavelmente, o token ether (ETH) não constou nesta listagem. Tais assunções são importantíssimas do ponto de vista jurídico, pois irão disciplinar a legislação aplicável. Prova disso é o incessável embate entre a SEC, reguladora dos valores mobiliários, e a Commodities and Futures Trading Commission (CFTC), reguladora do mercado futuro de commodities e de derivativos.

No Brasil, a partir do reconhecimento do BACEN como autoridade regulatória dos ativos virtuais, o enquadramento jurídico-regulatório está com contornos mais assertivos, facilitando o compliance das empresas. Evidentemente são aguardadas algumas definições objetivas, especialmente quanto às VASPs.

Uma delas diz respeito a quais requisitos serão exigidos para a abertura e concessão de licença para uma empresa prestadora de serviços de ativos virtuais. Afinal, segundo o artigo 2º da lei 14.478, as "prestadoras de serviços de ativos virtuais somente poderão funcionar no País mediante prévia autorização de órgão ou entidade da Administração Pública federal".

Da leitura desta norma, é válido pensar que, não havendo subsunção da atividade empresarial ao teor do artigo 5º da lei 14.478, não se exigirá a obtenção da licença. Ou seja, é admissível a interpretação de que, mesmo que haja algum token ou criptoativo como parte da atividade empresarial, mas desde que não haja a configuração da empresa como VASP, a leitura lógica da norma aponta à conclusão de que não será necessária a obtenção de licença para operar.

Segundo o artigo 5º da referida lei, considera-se prestadora de serviços de ativos virtuais a pessoa jurídica que executa, em nome de terceiros, pelo menos um dos seguintes serviços de ativos virtuais: (a) a troca entre ativos virtuais e moeda nacional ou moeda estrangeira (comprar cripto com real ou dólar, por exemplo); (b) troca entre um ou mais ativos virtuais (comprar bitcoin com ether, por exemplo); (c) transferência de ativos virtuais (realizar saques de criptoativos para uma wallet externa de outra pessoa, por exemplo); (d) custódia ou administração de ativos virtuais ou de instrumentos que possibilitem controle sobre ativos virtuais (realizar a custódia de criptoativos, como bitcoin, de terceiros); ou (e) participação em serviços financeiros e prestação de serviços relacionados à oferta por um emissor ou venda de ativos virtuais.

À vista disso, caso a atividade empresarial logre êxito em não se enquadrar em alguma dessas previsões seria possível haver seu desenquadramento legal como sendo tecnicamente uma "prestadora de serviço de ativo virtual", o que nos leva à conclusão, sob esta ótica interpretativa, de que nem toda atividade empresarial que tenha algum criptoativo em sua atividade necessitará de licença do BACEN. O importante, que fique claro, é a empresa consulte formalmente as autoridades neste sentido, a fim de evitar qualquer desconformidade com a legislação vigente.

Por fim, como forma de evitar esquemas de pirâmide financeira e crimes contra a poupança popular, espera-se que o BACEN discipline a exigência de reservas financeiras mínimas para determinadas atividades, para fins de garantia de liquidez financeira dos seus tokens, evitando, com isso, os conhecidos e tão temidos problemas de "saques" pelos investidores.

Outra medida que provavelmente seja abordada é a exigência de comprovação de segregação patrimonial entre a empresa e seus clientes (ou mecanismos de governança que atinjam o mesmo fim), de modo a garantir que os ativos financeiros dos clientes não fiquem sob risco da atividade empresarial da própria empresa prestadora de serviços de ativos virtuais.

A exigência de políticas KYC (conheça seu cliente) e AML (antilavagem de dinheiro e anticorrupção) para obtenção de autorização para operar também não será uma novidade, pois o próprio Marco Legal dos Ativos Virtuais já prevê a necessidade de respeito à boas práticas de governança, transparência nas operações e abordagem baseada em riscos, além de segurança da informação e proteção de dados pessoais.

Além das políticas KYC/AML serem uma boa prática, são também medidas para o cumprimento legal do artigo 9º e 10 da lei 9.613/98 (em especial seu Capítulo VI - "Da Identificação dos Clientes e Manutenção de Registros"). Relembre-se que a Lei das Criptomoedas previu a alteração não só desta lei que dispõe sobre os crimes de lavagem de dinheiro, como também da lei que disciplina os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (lei 7.492/86), incluindo as VASPs como pessoas jurídicas equiparadas ao conceito de instituição financeira (artigo 1º).

De um modo geral, a definição do BACEN para regulamentar o mercado de ativos virtuais é uma notícia esperada. O plano piloto do Real Digital e a iniciativa do LIFT marcaram o pioneirismo do Brasil em relação à matéria de regulação de criptos no mundo todo e restou clara a competência técnica da autoridade para o assunto. Agora o mercado anseia pelos próximos passos, com expectativa de haver diálogo, proporcionalidade e incentivo à tecnologia blockchain.

Fernando Struecker

Fernando Struecker

Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Certificado em Blockchain Foundation (EXIN). Advogado, sócio do Struecker Hungaro Advogados.

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