Operação Penalidade Máxima: a cadeia de custódia da prova digital
Terceiro artigo da série debate os contornos legais envolvendo as provas digitais, especialmente no que diz respeito às conversas de WhatsApp amplamente divulgadas pela mídia.
segunda-feira, 19 de junho de 2023
Atualizado às 13:48
O terceiro artigo da série que analisa os nuances da Operação Penalidade Má-xima tratará de matéria que vem sendo amplamente discutida nos tribunais pá-trios: o manuseio de evidência digital extraída do WhatsApp.
A escolha do tema partiu da leitura da denúncia da segunda fase da operação, divulgada pelo MPGO1, de onde se percebe várias menções a trechos de con-versa entre os investigados advindos de: (i) prints de tela dos aparelhos celulares2; (ii) prints de tela da exibição do conteúdo em espelhamento pelo GAE-CO/GO3; e (iii) fotografias dos aparelhos celulares com as conversas abertas4.
Pois bem. Como já anunciado acima, o debate envolvendo o tema do manuseio de evidências digitais ganhou novos contornos com a inclusão, no Código de Processo Penal, de dispositivos legais atinentes à cadeia de custódia da prova.
A inclusão dos arts. 158-A/F ao Código de Processo Penal, promovida pela lei 13.964/19, então, positivou o que já se discutia na doutrina e jurisprudência da denominada cadeia de custódia, que nada mais é do que a preservação e registro do caminho da prova, desde sua coleta até apreciação pelo Poder Judiciário. No ensinamento de Guilherme Madeira Dezem, a cadeia de custódia "refere-se à identificação de que as fontes de prova que foram objeto da perícia foram mantidas íntegras e não viciadas, sujeitas portanto ao escrutínio das partes"5.
Nessa esteira, destaca-se que o STJ, quando do julgamento do RHC 99.735, considerou nula a prova obtida pelo espelhamento de conversas com acesso pelo WhatsApp Web, justificando o acórdão que "tanto no aplicativo, quanto no navegador, é possível, com total liberdade, o envio de novas mensagens e a exclusão de mensagens antigas (registradas antes do emparelhamento) ou re-centes (registradas após), tenham elas sido enviadas pelo usuário, tenham elas sido recebidas de algum contato. Eventual exclusão de mensagem enviada (na opção "Apagar somente para Mim") ou de mensagem recebida (em qualquer caso) não deixa absolutamente nenhum vestígio, seja no aplicativo, seja no computador emparelhado, e, por conseguinte, não pode jamais ser recuperada para efeitos de prova em processo penal, tendo em vista que a própria empresa disponibilizadora do serviço, em razão da tecnologia de encriptação ponta-a-ponta, não armazena em nenhum servidor o conteúdo das conversas dos usuários"6.
Ressalta do julgado a atenção da ministra Laurita Vaz, relatora do caso, que, mesmo ao se deparar com situação na qual o acesso tinha se dado pelo WhatsApp Web, anotou que os riscos da obtenção de conteúdo das mensagens pelo espelhamento em tela ou pelo manuseio direto no aplicativo são os mesmos.
Ou seja, o entendimento se aplica para casos em que o acesso se deu nos mesmos moldes do caso paradigma (via WhatsApp Web), bem como para os casos nos quais o acesso se dá diretamente no aparelho celular. Em ambas as situações, o manuseio da evidência digital diretamente no aplicativo permite a exclusão de mensagens sem que se deixe qualquer vestígio.
Como se vê da leitura da inicial acusatória oferecida na Operação Penalidade Máxima, há indícios de que o conteúdo das conversas foi manuseado pela Au-toridade Policial (no caso, o GAECO) diretamente no aparelho celular e en-quanto este estava conectado à internet. As imagens colacionadas no corpo da denúncia são bastante elucidativas, já que é possível visualizar os ícones de conexão de Wi-Fi7 e de internet móvel8 (4G) ativos.
Essa evidência - de que ambos os aparelhos (tanto o que teve a tela capturada quanto o que foi fotografado) ainda estavam conectados à internet ao tempo da coleta de seu conteúdo - pode tornar a prova nula. Isso se dá justamente na medida em que, conforme esposado no julgado acima, a exclusão de mensa-gens antigas e o envio de novas mensagens não deixam vestígio algum.
O próprio art. 158-B do CPP identifica a cadeia de custódia como o rastreamen-to de vestígios em etapas, dentre as quais o isolamento, previsto em seu inc. II: ato de evitar que se altere o estado das coisas, devendo isolar e preservar o ambiente imediato, mediato e relacionado aos vestígios e local de crime.
É relevante destacar, então, que não há isolamento do aplicativo WhatsApp quando o aparelho a ele vinculado segue conectado à internet, já que novas mensagens podem ser enviadas, apagadas ou recebidas, o que alterará o es-tado das coisas, indo de encontro à norma processual em comento.
Válido ressaltar que a decisão supracitada não é isolada. Pelo contrário, foi rea-firmada pelo STJ em outro caso (cuja numeração não foi divulgada por se tratar de processo em segredo de justiça), mas que, dada a relevância da matéria, teve a decisão noticiada pelo portal de notícias da corte superior9.
Segundo consta no excerto veiculado pela assessoria de imprensa do STJ, o relator do caso, Min. Néfi Cordeiro, destacou que "ainda que o tribunal estadual não entendeu ter havido quebra da cadeia de custódia, pois nenhum elemento probatório demonstrou adulteração das conversas espelhadas pelo WhatsApp Web ou alteração na ordem cronológica dos diálogos", o entendimento da Sex-ta Turma "considera inválida a prova obtida pelo espelhamento de conversas via WhatsApp Web, porque a ferramenta permite o envio de novas mensagens e a exclusão de mensagens antigas ou recentes, tenham elas sido enviadas pelo usuário ou recebidas de algum contato, sendo que eventual exclusão não deixa vestígio no aplicativo ou no computador".
Note-se a relevância da decisão do então Ministro Néfi Cordeiro: não é necessária a demonstração de adulteração das conversas para que seja declarada a nulidade, afinal a exclusão de mensagens não deixa vestígio algum (sendo im-possível à Defesa fazer prova nesse sentido). Basta, portanto, que se comprove a violação da cadeia de custódia dessa evidência digital (com a demonstração do manuseio inadequado dela) para tornar inválida a prova. E no caso da Ope-ração Penalidade Máxima a própria denúncia parece comprovar que houve manuseio inadequado da evidência digital.
Sobre o tema, ainda merece destaque a decisão proferida pelo TJSC na Apelação 5004504-77.2020.8.24.0079/SC, onde prevaleceu brilhante voto proferi-do pelo ilustre Magistrado Alexandre Moraes da Rosa.
A discussão central do caso julgado era a utilização de printscreen como prova no processo penal. O raciocínio desenvolvido, todavia, amolda-se com perfei-ção ao presente debate, ao anotar que "a prova digital (espécie da prova eletrô-nica) é a obtida e/ou produzida em ambiente eletrônico digital, em que os dados (de base, de tráfego e de conteúdo), em geral, vulneráveis e frágeis, devem ser extraídos e tratados em observância às normas técnicas, sob pena de ineficácia probatória (a conformidade da materialidade é de quem acusa). A aquisição e/ou extração de dados do ambiente digital, especificamente da internet e/ou de aplicativos de mensageria, deve observar os requisitos de Existência, Validade e Eficácia (Teste EVE). A aplicação analógica do art. 411, II, do CPC (Art. 411. Considera-se autêntico o documento quando: [...] II - a autoria estiver identifica-da por qualquer outro meio legal de certificação, inclusive eletrônico, nos ter-mos da lei.) autoriza a invocação das regras técnicas (ABNT-ISO) como parâ-metro de verificação da autenticidade. As Regras Técnicas (Norma ABNT ISO/IEC 27.037:201) são de observância obrigatória (sem elas não há prova da materialidade). A Organização Internacional de Padronização (ISO) editou a Norma ABNT NBR ISO/ IEC 27037:2013 estabelecendo os critérios de trata-mento das evidências digitais, isto é, os requisitos de existência e de validade à preservação da integridade, da autenticidade, da auditabilidade e da cadeia de custódia relativas à evidência digital"10.
No caso da Operação Penalidade Máxima, ao se constatar que houve o manu-seio direto no aplicativo WhatsApp com os aparelhos conectados à internet em mera análise superficial da denúncia, nos parece que houve grave quebra da cadeia de custódia, o que torna inauditável a evidência digital.
A defesa tem o direito de conhecer a totalidade dos citados elementos informa-tivos para rastrear a legalidade da atividade persecutória. De outra maneira, não haveria como identificar provas ilícitas.
Na lição de Geraldo Prado11, "[a] constatação em um processo concreto de que houve supressão de elementos informativos colhidos nestas circunstâncias fundamenta a suspeição sobre a infidelidade de registros remanescentes e re-alça a ineficácia probatória resultante da quebra da cadeia de custódia".
Por conseguinte, quando há quebra da cadeia de custódia no tratamento da prova, doutrina12 e jurisprudência13 concordam no sentido de reputá-la como ilícita, o que redunda na sua exclusão dos autos e na proibição da sua valoração como prova de acusação, assim como suas derivações.
Para Grinover, Fernandes e Gomes Filho14, "as provas ilícitas, sendo conside-radas pela Constituição inadmissíveis, não são por esta tida como provas. Trata-se de não-ato, de não-prova, que as conduz à categoria da inexistência. Elas simplesmente não existem como provas: não têm aptidão para surgirem como provas".
Assim, se confirmada a ilicitude de uma prova pela quebra da cadeia de custó-dia, esta deve ser desentranhada dos autos, sendo possível o reconhecimento da nulidade de eventuais decisões que tenham se utilizado destas em sua fun-damentação.
Em razão disso, e da extrema relevância que as provas digitais têm em um mundo cada vez mais conectado, faz-se premente a análise de forma mais de-talhada do conteúdo de mensagens extraídas do WhatsApp de investigados, mormente quando há dúvidas sobre o respeito à cadeia de custódia.
Isto posto, revisitando a conclusão do último artigo de nossa autoria15 eis que o raciocínio se aplica também aqui: assim como no futebol e em todos os esportes, no processo penal existem regras e, para que os resultados sejam válidos, as regras de um jogo - em uma analogia simplista - que trata da liberdade do indivíduo precisam ser seguidas à risca, afinal "a finalidade as normas proces-suais é a de estabelecer os deveres, os direitos e as garantias para que alguém possa ser condenado, sem que os agentes possam validamente as deixar de lado por preferências (crenças, opiniões ou conhecimentos pessoais dissonan-tes do desenho normativo)"16.
Lorenzo Ottobelli
Pós-Graduando em Direito Penal Econômico na FGV. Bacharel em Direito pela UFPR. Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da UFPR. Membro do Grupo de Estudos Avançados em Investigação Defensiva do IBCCRIM/PR. Advogado na Trauczynski Muffone Advogados.
Igor Rayzel
Bacharel em Direito formado pela Unicuritiba. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Positivo. Engenheiro Ambiental formado pela PUC/PR. Pós-graduando em Controladoria, Compliance e Auditoria na PUC/RS. Advogado Associado no Escritório Beno Brandão Advogados Associados.