A não-recepção do artigo 144 do Código Penal
A interpelação judicial conta com a colaboração do futuro réu em vista da própria condenação.
sexta-feira, 16 de junho de 2023
Atualizado às 15:03
1.O estado da arte do princípio da presunção de inocência
A Constituição Federal de 1988 reinaugurou a ordem jurídica brasileira com um amplo rol de direitos e garantias individuais, dos quais se destaca a presunção de inocência. Tal princípio tem trazido uma série de debates recentes na comunidade jurídica, em especial no que tange à constitucionalidade do que se convencionou a chamar de "prisão em segunda instância". A questão de fundo dessa controvérsia se deve ao dispositivo constitucional que vincula a presunção de inocência ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
At. 5º.
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
O Supremo Tribunal Federal (STF) mudou algumas vezes de entendimento acerca do tema. Até o ano de 2009, considerava a Suprema Corte viável a execução antecipada da pena, entendimento que sofreu radical alteração no julgamento do HC 84.078, de relatoria do ministro Eros Grau. Naquela ocasião, a Suprema Corte entendeu que a execução antecipada da pena era incompatível com a ordem constitucional vigente. No entanto, caso presentes os requisitos da prisão preventiva, o réu poderia ter cerceada a sua liberdade, porém de forma cautelar.1
Em 2016, o cenário virou novamente com o julgamento do HC 126.292, de relatoria do ministro Teori Zavascki, tendo sido retomado o entendimento de que a presunção de inocência seria afastada com decisão de segunda instância que confirmasse a sentença condenatória.
A cena sofre reviravolta e, em 2019, por ocasião do julgamento das ADCs 43, 44 e 54, todas de relatoria do ministro Marco Aurélio, o Pretório Excelso retoma o entendimento de que a presunção de inocência somente pode ser afastada por força do trânsito em julgado, interpretação literal do dispositivo supratranscrito.
Até que se julgue em sentido contrário, o entendimento oficial atual do STF é de que nem mesmo uma decisão judicial tem poder suficiente para afastar a constitucional presunção de inocência de um réu em um processo penal.
Eis o estado da arte do princípio da presunção de inocência no Brasil.
2. Reflexos da presunção de inocência no processo penal
O princípio ora retratado traz uma série de consequências para o Direito Processual Penal. Dois princípios muito conhecidos são o in dubio pro reo e o nemo tenetur se detegere, aquele referente à hermenêutica jurídica e este relativo à produção de provas. Caso persista dúvida razoável depois de toda a instrução probatória, o magistrado deve decidir pela absolvição: do princípio da presunção de inocência decorre o benefício da dúvida.
De igual modo, uma vez presumida a inocência do acusado, o ônus da prova somente pode recair para a acusação. Em termos de instrução probatória, não há que se falar em colaboração do acusado, uma vez que o que se está tentando afastar é a presunção de sua inocência, do que decorrerá, via de regra, na privação de sua liberdade. O direito ao silêncio, constitucionalmente previsto, é uma das manifestações concretas do princípio de que ninguém será obrigado a produzir prova contra si mesmo - nemo tenetur se detegere.
Art. 5º
LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;
Outra concretização do citado princípio está no reconhecimento da não-recepção da expressão "para o interrogatório" constante no artigo 260 do Código de Processo Penal. Na ADPF 444, a Suprema Corte entendeu que é inconstitucional a condução coercitiva para interrogatório.
Art. 260. Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença
Trata-se de um consectário lógico da presunção de inocência e da vedação à autoincriminação. Se o réu/acusado/preso tem o direito de permanecer calado sem nenhum prejuízo, qual seria o sentido de conduzi-lo coercitivamente? Para que ele exerça o silêncio perante a autoridade? Isso além de violar o bom senso afronta a economicidade do processo, uma vez que todo um aparato estatal terá de ser deslocado para conduzir uma pessoa que, ao cabo, poderá ficar em silêncio. Muito mais sensato é entender o não comparecimento como exercício do direito constitucional ao silêncio. Não é outra a inteligência do artigo 367 do Código de Processo Penal2:
Art. 367. O processo seguirá sem a presença do acusado que, citado ou intimado pessoalmente para qualquer ato, deixar de comparecer sem motivo justificado, ou, no caso de mudança de residência, não comunicar o novo endereço ao juízo
Em suma, presume-se a inocência do acusado/investigado, do que decorre que o ônus da prova é de quem acusa/investiga. Uma vez que ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo, conclui-se que o réu pode permanecer calado. Por isso, não há sentido em se falar em condução coercitiva do réu/investigado para comparecer a interrogatório, pois não é seu o ônus da prova, não podendo ser obrigado a colaborar com o seu acusador em visitas da sua própria condenação.
Diante de todo esse cenário, chama a atenção a manutenção na ordem constitucional da figura da interpelação judicial prevista no artigo 144 do Código Penal.
3.A não-recepção do artigo 144 do Código Penal pela atual ordem constitucional.
O Código Penal, diploma normativo editado na vigência do período ditatorial do Estado Novo, no capítulo dos crimes contra a honra, traz uma curiosa figura jurídica. Trata-se da chamada interpelação judicial, prevista expressamente no artigo 144:
Art. 144 - Se, de referências, alusões ou frases, se infere calúnia, difamação ou injúria, quem se julga ofendido pode pedir explicações em juízo. Aquele que se recusa a dá-las ou, a critério do juiz, não as dá satisfatórias, responde pela ofensa.
A interpelação judicial consiste em procedimento preparatório para o ajuizamento de ação penal contra pessoa que supostamente cometeu crime contra a honra. Basicamente, aquele que será eventualmente acusado é chamado para colaborar em procedimento preparatório para futura ação penal em seu próprio desfavor.
O STF já se manifestou sobre esse procedimento em algumas ocasiões.
"- O pedido de explicações constitui típica providência de ordem cautelar, destinada a aparelhar ação penal principal, tendente a sentença penal condenatória. O interessado, ao formulá-lo, invoca, em juízo, tutela cautelar penal, visando a que se esclareçam situações revestidas de equivocidade, ambigüidade ou dubiedade, a fim de que se viabilize o exercício futuro de ação penal condenatória.
"(...) A interpelação judicial, por destinar-se, exclusivamente, ao esclarecimento de situações dúbias ou equívocas, não se presta, quando ausente qualquer ambigüidade no discurso contumelioso, à obtenção de provas penais pertinentes à definição da autoria do fato delituoso. (...)."
(RT 709/401, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)3
Como se pode ver, o instituto visa sanar a dúvida do futuro acusador com a ajuda do futuro acusado. Ocorre que, em caso de dúvida, prevalece a inocência por força do princípio constitucional que a presume.
Obviamente que o futuro acusado pode se valer da interpelação em vistas de fulminar de uma vez por todas a justa causa, inviabilizando a queixa. No entanto, não deixa de causar espécie uma figura jurídica, oriunda de tempos ditatoriais, que visa afastar a dúvida razoável do futuro acusador com a ajuda daquele que virá a ser acusado.
Se há dúvida, cabe à acusação dentro de um devido processo legal afastá-la. Saná-la em procedimento preparatório significa condenar o futuro réu por antecipação. Trata-se de uma clara subversão de todo o sistema atual, o que é confirmado pela parte final do artigo 144 do diploma repressivo: "Aquele que se recusa a dá-las [explicações] ou, a critério do juiz, não as dá satisfatórias, responde pela ofensa".
Tendo em vista a atual ordem constitucional que contempla os princípios da presunção de inocência, do in dubio pro reo, do nemo tenetur se detegere, assim como a evolução legal e jurisprudencial, a exemplo da atual redação do artigo 367 do Código de Processo Penal e do entendimento firmado na ADPF 444 acerca da superada figura da condução coercitiva, imperativa se faz a conclusão pela não recepção do artigo 144 do Código Penal pela Constituição Federal de 1988.
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1 Ver esclarecedor artigo de Fernando Capez. Prisão após a segunda instância: entendimentos do STF.
2 CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Inconstitucionalidade da condução coercitiva para interrogatório. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em:
3 Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo544.htm.